14.1.20

“A maior parte das mulheres sem abrigo tem filhos e sofreu violência doméstica”

Bernardo Mendonça, in Expresso

A violência e os abusos que as mulheres sofrem em casa são uma das principais razões que as levam à rua. A investigadora Ana Ferreira Martins lançou o livro “As Sem Abrigo de Lisboa – Mulheres que Sonham com uma Casa” que faz uma radiografia a esta dura realidade na capital


As mulheres sem abrigo de Lisboa são na sua maioria jovens, sem emprego, com baixa escolaridade, sem formação profissional e têm filhos. Foi esta a conclusão a que chegou Ana Ferreira Martins, diretora do departamento de ação social da Assistência Médica Internacional (AMI), depois de ter investigado esta população para a sua tese de mestrado (Prémio Madalena Barbosa 2009, da Comissão da Igualdade de Género) que acabou por dar origem ao livro “As Sem Abrigo de Lisboa – Mulheres que Sonham com uma Casa”, editado pela Chiado Editora. A autora alerta para a realidade duplamente devastadora que é para uma mulher não ter acesso a uma casa e discorda do conceito de sem abrigo do INE. Para si a tónica deve estar na habitação e não na rua.

Por norma associa-se a vida de sem abrigo aos homens e não às mulheres. Foi por isso que se interessou por estudar este grupo?

Foi de facto essa a razão. Percebi desde muito cedo que o pouco que estava escrito sobre os sem abrigo em Portugal era relacionado com os homens. De facto esta realidade é dominantemente masculina. Há mais homens na rua do que mulheres. Os estudos apontam para que existam cerca de 20 a 21% de mulheres entre o total de pessoas em situação de sem abrigo. Na amostra do meu estudo, que serviu de base para o livro, sinalizei 56 mulheres comparativamente aos 252 homens que encontrei. Claro que o número real de sem abrigo em Lisboa é bem maior. E nos estudos que li não havia nada que nos falasse das mulheres sem abrigo...
Quais as principais razões que levam estas mulheres a ficarem sem abrigo?

A violência doméstica é sem duvida um dos principais fatores que levam as mulheres a saírem de casa e ficarem sem lar. Quase todas as mulheres que entrevistei, e sobre as quais estudei as suas formas de vida, foram vítimas de abusos e violência física, além dos evidentes abusos psicológicos. E depois há os filhos. Ou seja, a maior parte das mulheres sem abrigo tem filhos e sofreu violência doméstica.
Essa situação é duplamente devastadora. Para uma mulher pode ser ainda mais desestruturante não ter casa do que para um homem?

Uma casa é algo essencial tanto para um homem como para uma mulher. Mas de facto, aquele ditado “A mulher em casa e o homem na praça” diz tudo em relação à questão de género entre os sem abrigo. A rua é muito mais masculina do que feminina. Ao longo dos séculos as culturas têm educado a mulher para uma casa, uma família, os filhos. E quando isto falta na vida de uma mulher, falta-lhes tudo. O sentido de viver. E a tal felicidade. É, de facto, duplamente penoso para uma mulher estar na rua e viver sem uma casa. E muito mais se houver filhos, porque o drama acresce.
Mas há respostas sociais para estas mulheres sem casa, mas com filhos. Não vão parar à rua…

Sim. O facto de muitas destas mulheres serem mães permite-lhes proteção enquanto os filhos são pequenos. Há mais respostas institucionais para as mulheres com filhos pequenos. E essas mulheres que são institucionalizadas com os seus filhos não fazem parte do numero do INE e das estatísticas oficiais dos sem abrigo. O que na minha opinião é errado. Essas mulheres vão parar a outro tipo de estatísticas que têm em conta as casas de abrigo e outro tipo de respostas. Não pode ser. Considero que estas mulheres com filhos, institucionalizadas, também são sem abrigo porque não têm uma casa. A tónica do que é ser ou não ser sem abrigo deve estar no ter ou não ter acesso a uma habitação.

Estas mulheres vêm de situações familiares e emocionais muito desestruturantes, imagino...
Sim, estas mulheres passaram por muitas ruturas afetivas, muitos abandonos, divórcios, têm filhos de diversos pais. E só num contexto de uma habitação e de um lar haverá condições para estas mulheres terem acesso à felicidade.

E a uma vida estruturada. Sem casa é impossível conseguir isso...
Claro. Era importante cruzar dados para para se saber quantos sem abrigos existem em Portugal. Os últimos censos do INE têm referência de um certo número de sem abrigo. O problema aqui é a definição. O que é que se entende por sem abrigo? A estratégia nacional definiu um conceito e os critérios do INE não são tão abrangentes. O conceito de sem abrigo usado nos CENSUS é diferente do conceito nacional e é também diferente daquele que usei na minha investigação, que é o mesmo conceito a nível europeu, que é mais vasto e abrange todas as situações de precariedade habitacional. Ou seja, não é especificamente só aquilo que a gente vê na rua, não são só aqueles e aquelas que vemos a dormir num carro, numa paragem de elétrico, mas são também todas as pessoas que vivem escondidas numa casa sem luz, sem água, sem esgotos. Esses e essas também são sem abrigo. Por isso insisto, a tónica deve ser posta na falta de habitação e aí é que se deve considerar se uma pessoa é ou não sem abrigo. Daí o nome do meu livro “As sem abrigo – Mulheres que sonham com uma casa”...
Este seu livro pretende ser um alerta para que surjam soluções para estas mulheres e homens? Claro. É urgente que as políticas dirigidas à pobreza e às mulheres e homens sem-abrigo contemplem medidas que resolvam de uma vez esta problemática. Porque acredito que num país europeu não se justifica que existam homens ou mulheres a viver na rua.

Este seu livro reúne uma série de testemunhos de mulheres sem abrigo. Recorda-se de um deles que a tenha marcado especialmente?
Foram tantos. E com todas usei técnicas associativas, perguntei a todas que palavras associavam determinados conceitos como “natureza”, “família”, “cidadania, ”lar”, “solidão” ou “beleza”. E, quando referi o conceito “beleza”, uma destas mulheres respondeu-me o seguinte: “Gostava de ser bonita, sei lá. Gosto de ver as minhas filhas sempre bem vestidas com roupa que me dão, não quer dizer que por ser pobre não vista as minhas filhas, agora eu não. Nunca tive roupa nova. Nem praticamente sei o que é isso. Ontem à noite uma filha disse-me ‘oh mãe, sabes que a avó ontem escondeu o leite”. O que ela faz agora já ela fazia a mim e aos outros filhos... “. É engraçada a maneira como esta mulher associou a beleza (ou a falta dela) ao leite escondido no frigorífico pela sua mãe. Até eu própria que já li estes testemunhos centenas de vezes...sempre que regresso a eles continuam a tocar-me o coração...