29.1.20

"A pior doença que uma pessoa pode ter é ser pobre"

Inês F. Alves, Paulo Rascão, Rodrigo Mendes, in Spao24

A igualdade no acesso à saúde é "inegociável" para Céu Mateus, professora catedrática da Universidade de Lancaster e especialista de Economia da Saúde. Mas que saúde será essa? Implicará escolhas, não começa na sala de espera do hospital e será definida mais pelos valores que defendemos do que pelo dinheiro que temos disponível. "Vamos todos morrer", isso é certo, seja com 80 ou com 120 anos, a grande questão é o quão bem vamos viver (ou envelhecer).

Céu Mateus divide os seus dias entre Lisboa e Lancaster, no Reino Unido, onde é professora catedrática. Especialista em Economia da Saúde, dedica-se a estudar o impacto que a tecnologia tem saúde na forma como isso influência a qualidade de vida ou promove a justiça social.

Arrancamos a conversa com uma provocação: vai a manipulação genética ser a próxima vacina? Céu Mateus acha que não. Vai ter o seu papel no futuro da medicina, mas talvez nem seja utilizada da forma como hoje imaginamos. "Ainda não sabemos tudo", ressalva. Depois, há a questão do acesso: uma coisa é ter a tecnologia, outra é ter os recursos necessários para a disponibilizar de forma generalizada. E tal como quando se fazem as contas do mês lá em casa, também na saúde se fazem escolhas. "Se tenho cinco filhos e se tenho só um bolo, vou ter de o dividir por aqueles cinco filhos. Se eu só tiver quatro fatias, há um filho que não vai comer".
Simplifica, mas assume que o tema está longe de ser simples. A forma como decidimos dividir o bolo - para manter a analogia — tem muito mais a ver com os valores em que acreditamos do que com o dinheiro que temos disponível. Quando lhe perguntamos se a prazo estaremos a discutir em Portugal um sistema de saúde como o norte-americano (essencialmente privado, em que os acessos aos cuidados de saúde estão diretamente dependentes da capacidade económica de cada um) diz que "espera que não", mas não está segura de que não venha a acontecer.

"As sociedades são dinâmicas, evoluem, portanto, coisas que não aconteciam há 200 anos hoje acontecem (...). Os economistas são ótimos a fazer prognósticos, especialmente no final do jogo. Não sei exatamente onde vamos estar, mas estou convencida de que a sociedade vai evoluir e há princípios que vão ser importantes e que vão ser mantidos e outros que provavelmente não serão tão importantes".
Quando lhe perguntamos que valor considera inegociável coloca a "equidade" no acesso à saúde no centro das suas preocupações.

Nos últimos anos Portugal dedicou cerca de 9% do seu Produto Interno Bruto à Saúde. Para 2020, o Governo prevê um aumento no valor de 941 milhões de euros face ao praticado em 2019 — o que representa um crescimento de 10% e se traduz numa despesa consolidada de 11.225,6 milhões de euros. Esse reforço prevê novos hospitais, o reforço do plano de vacinação, o fim das taxas moderadoras nos centros de saúde. Para os críticos estes milhões são uma bolsa de oxigénio para o sistema, mas estão longe de resolver os seus problemas.

Céu Mateus considera, no entanto, que quando falamos de qualidade na saúde, a questão é anterior ao valor que se aloca ou não a esta área a cada Orçamento do Estado. "A pior doença que uma pessoa pode ter é ser pobre, (...) porque à partida há uma maior probabilidade de ter mais doenças, já que a saúde não é só resultado dos tratamentos médicos. (...) Temos a habitação, a alimentação, as condições de trabalho, o nosso emprego, a educação, toda uma série de coisas que nos ajudam a produzir aquilo que é a nossa saúde". E nesse campo, "o desafio que as sociedades enfrentam hoje" é combater as "desigualdades sociais e da pobreza".

Quando pensamos no futuro da saúde tendemos a ser transportados para aqueles filmes de ficção científica em que quase tudo é possível, mas há coisas que não estão assim tão distantes – recordo-me que, por exemplo, em 2018, um cientista espantou o mundo quando disse que tinha conseguido manipular geneticamente dois bebés gémeos. No mesmo ano, no Reino Unido, já se considerava que este tipo de procedimento podia ser aceitável desde que tivesse em conta os interesses do bebé, e aliás eu li um artigo muito recentemente que dizia que a manipulação genética em bebés é uma realidade para daqui a dois anos. Portanto, vou já começar com uma provocação: a manipulação genética pode ser a próxima vacina?

Eu não creio que a manipulação genética possa ser a próxima vacina. Há uma diferença entre aquilo que a tecnologia nos permite e depois uma utilização generalizada, isto é, aquilo que a tecnologia pode trazer a um grupo mais alargado da população. De facto, há doenças que desejaríamos eliminar — e há umas que já é possível eliminar através da vacinação e as pessoas não querem tomar as vacinas, daí os casos de epidemias que estamos a ter novamente de sarampo, rubéola, etc., onde as taxas de mortalidade estão a aumentar. E estas são tecnologias baratas, onde há bastante evidência, pois sabemos que funcionam, mas a população rejeita com medo dos efeitos secundários ou por desconhecimento de facto do impacto positivo que as vacinas em muitas circunstâncias têm. Por outro lado, há de facto um grande apelo por tudo aquilo que é mais high-tech, e as pessoas acreditam mais em tecnologias que lhes são difíceis de compreender e para as quais também há menos evidência. A questão da manipulação genética é de facto uma possibilidade. Em relação ao caso que falou do cientista chinês, já há neste momento dúvidas sobre o que é que ele fez efetivamente, se de facto fez o que disse ou se terá feito outra coisa. Também há limites não tecnológicos, em relação àquilo que é a nossa compreensão do corpo humano e dos mecanismos biológicos que nos podem parecer básicos, porque existem há milhões de anos, mas sobre os quais a nossa compreensão não está completamente desenvolvida, como o comportamento das células e a biologia celular. Ainda não sabemos tudo, daí que ainda não se tenha conseguido avançar em muitas áreas que não dependem da manipulação genética. Por exemplo, ainda há caminho a percorrer em relação ao cancro e a outras coisas que decorrem de fatores celulares. Eu acho que a manipulação genética vai ter um papel no futuro da medicina, se é exatamente a manipulação genética como nós a vemos hoje e como acontece hoje, isso já não sei.
20/30. 20 perguntas daqui até 2030

O que estamos dispostos a fazer por um futuro sustentável? Vamos ter serviço nacional de saúde daqui a dez anos? A tecnologia faz mal à nossa cabeça? Quando o tema é imigração, quem dita as regras? Vai Portugal perder o barco no 5G?

Este e só o início de uma série de perguntas que o SAPO24 decidiu colocar em cima da mesa para os próximos dez anos. 2020 convida-nos a pensar a década — como é que o mundo vai mudar e como é que nós mudamos com ele — e foi esse o desafio que colocámos a vários convidados nas conversas que serão publicadas ao longo de um mês em 24.sapo.pt.

20/30. 20 perguntas daqui até 2030 é o nome da série em vídeo, texto e fotografia que vai abordar temas como o ambiente, as migrações, a inteligência artificial, o futuro da ciência, relacionamentos e violência, o mar, o 5G, o humor, o futebol, a televisão, o consumo, o Interior, a saúde mental, o Espaço, o Brexit, a educação (para a inovação), as startups o envelhecimento, as redes sociais ou as cidades de amanhã.
Veja aqui todas as entrevistas.

E você, se tivesse de lançar um tema para o debate, qual seria? Envie a pergunta para a década para 24@sapo.pt.

20/30 é um projeto com assinatura MadreMedia no SAPO24, que poderá também acompanhar em 24.sapo.pt, no portal SAPO (sapo.pt) e respectivas redes sociais. Siga-nos no Facebook, Twitter e Instagram.
"As pessoas acreditam mais em tecnologias que lhes são difíceis de compreender e para as quais também há menos evidência"

Quando falamos aqui sobre ser ou não a próxima vacina passa exatamente pela questão do acesso – porque nós hoje vemos as vacinas como uma tecnologia à qual temos facilidade de acesso, pelo menos nas que dizem respeito ao plano nacional de vacinação.

Voltando a pegar no caso das vacinas, que é um excelente exemplo: as vacinas não são todas baratas. Estou-me a lembrar, por exemplo, de quando foi introduzida a vacina do Vírus do Papiloma Humano (HPV), que foi introduzida há cerca de 15 anos em Portugal.

E só um aparte, mas que eu acho que é importante: Portugal tem de facto um plano nacional de vacinação que é muito generoso, nós temos muitas vacinas incluídas e muitas vacinas gratuitas ou com taxas de comparticipação de facto baixas. E as vacinas que estão fora do plano nacional de vacinação, de um modo geral, são vacinas para patologias que não são frequentes na população portuguesa, e daí não fazer sentido que sejam comparticipadas por toda a população, porque a percentagem de ocorrências é de facto muito baixa.

A vacina do HPV ou vacina da Hepatite, entre outras vacinas mais recentes, são mais caras e quando foram introduzidas teve que haver um mecanismo para se conseguir perceber quais é que eram os grupos da população aos quais fazia sentido o Estado comparticipar ou pagar na totalidade o custo daquela vacina, porque há uma diferença entre termos a tecnologia disponível para todas as pessoas ou termos uma tecnologia que é paga e disponibilizada para um determinado grupo de pessoas. Isso acontece muitas vezes, porque nós não conseguimos oferecer todos os tratamentos a todas as pessoas existindo recursos limitados. Aquilo que eu acho que é desejável é que se consiga maximizar os resultados em saúde da população com os recursos que temos. Para nós conseguirmos maximizar os resultados temos que ver quais é que são os grupos da população que vão beneficiar mais daqueles tratamentos. Isso foi o que aconteceu, por exemplo, no caso da vacina do HPV, porque a vacina foi disponibilizada para raparigas entre os 12 e os 15 anos e foi feito um catch-up [alargamento] para miúdas que estavam próximas daquele grupo etário, para se conseguir vacinar um grupo maior de pessoas.

Quando é introduzida uma vacina como a do HPV ou quando mais tarde foi introduzido o tratamento para a Hepatite C, há um custo fixo muito grande, porque há um grupo enorme da população que ainda não foi tratado e, portanto, nesse momento o problema muitas vezes não é tanto o custo da tecnologia, mas um problema de tesouraria.