27.1.20

Portugal instado a enfrentar racismo contra os ciganos

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Comité consultivo da Convenção para a Protecção das Minorias Nacionais visitou Portugal no ano passado e avaliação que fez foi esta segunda-feira divulgada. Dirigente associativo diz que ciganofobia libertou-se na internet e está nas ruas. André Ventura anunciou no Parlamento que recebeu uma multa “há umas semanas”.

O comité consultivo da Convenção para a Protecção das Minorias Nacionais insta, num relatório divulgado esta segunda-feira, Portugal a combater, com determinação, a discriminação enfrentada pelas comunidades ciganas. E a condenar, com firmeza, todas as expressões de racismo e intolerância. Há quem, como Bruno Gonçalves, vice-presidente da Letras Nómadas, confesse um medo nunca antes sentido.
No plano legal, a situação até melhorou. O novo Regime Jurídico de Prevenção, Proibição e Combate à Discriminação, em vigor desde 2017, alargou o conceito e reforçou o papel da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), o órgão que tem como missão prevenir, proibir e sancionar a prática de actos discriminatório. Na prática, o resultado é diminuto.

Há dois anos, a CICDR recebeu 346 queixas, 74 das quais referentes à população cigana. Só oito chegaram ao fim, e resultaram em duas admoestações e seis multas, duas das quais deram origem a recurso. Uma delas dizia respeito a declarações públicas que associavam os ciganos a comportamentos censuráveis e outra a uma escola que organizou uma turma de acordo com critérios discriminatórios. No ano passado, os desfechos não foram muitos diferentes, a julgar pela publicidade das decisões condenatórias (seis multas e três admoestações).

O comité que acompanha esta Convenção-Quadro do Conselho da Europa julga que “a existência de vários mecanismos paralelos torna o sistema complexo e confuso”. Além da CICDR, as queixas de discriminação racial podem ser apresentadas ao Provedor de Justiça, ao Ministério Público e a diversos corpos sectoriais, como a Inspecção Geral da Administração Interna, a Entidade Reguladora para a Comunicação, o Concelho Nacional Contra a Violência no Desporto. O baixo valor das multas pode “fazer com que o sistema não seja dissuasor o suficiente”. E há o efeito da “falta de confiança” e da “lentidão no sistema”.
Ventura e um medo novo

Na sexta-feira, o deputado André Ventura anunciou, em plenário, que foi condenado pela CICDR. “Ainda há umas semanas, eu próprio recebi uma multa em casa. Uma multa, uma multa, por fazer uma publicação no Facebook. Que país é este que multa pessoas por fazerem comentários no Facebook e que podem ter uma qualquer interpretação racista?”, questionou, dirigindo-se à ministra da Presidência, Mariana Silva Vieira, manifestando o seu desacordo com a criação de um observatório do racismo e da xenofobia.

Aproveitou para dizer que Portugal tem “um problema” com as comunidades ciganas. “O que é que o seu Governo vai fazer? O que vai fazer em relação às mulheres que saem da escola aos 12 anos, que saem da escola e casam aos 12 anos?”, perguntou. E ninguém lhe respondeu, como explica Bruno Gonçalves, que é “muito raro haver casamentos nessas idades”, embora possam acontecer em comunidades mais fechadas, tradicionais, rurais. O mais comum é as pessoas “casarem-se” por volta dos 17-18 anos, o que cabe dentro da lei.

Bruno Gonçalves, com uma longa carreira de mediador e uma licenciatura em Animação Socioeducativa, já se cansou de recolher declarações nas redes sociais e de as encaminhar à CICDR. Uma vez, aliou-se a outros activistas para apresentar dezenas de queixas. Foram sendo arquivadas – umas ali, outras no Ministério Público. E as razões de queixa não param de aumentar.

Parece-lhe haver um antes e um depois de André Ventura ter sido eleito para a Assembleia da República, em Outubro do ano passado. “Ele tem uma máquina muito bem oleada e está a propagar o ódio contra os ciganos. Muita gente sente-se encorajada a dizer coisas que antes guardava para si”, diz.

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A ciganofobia libertou-se na internet e está agora nas ruas e nos cafés de um modo que Bruno Gonçalves, agora com 43 anos, nunca vira. “Neste momento, tenho medo”, confessa. Ouve comentários impensáveis há poucos anos. Basta que se forme um grupo para que haja olhares desconfiados provocatórios – a tomar a parte pelo todo.
O estigma é tão forte que qualquer boato ou rumor negativo se pode propagar, sem questionamento. Exemplar, para Bruno Gonçalves, é a reacção à morte de Giovani Rodrigues, na sequência de agressões que sofreu às mãos de um grupo de jovens, em Bragança. No blogue de um professor do ensino superior, as agressões foram atribuídas a um “grupo de rapazes ciganos”; no dia seguinte, um site nacionalista reproduziu o embuste; dias depois, Carlos Anjos, ex-inspector da polícia judiciária e presidente da Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes disse num programa de TV que “aparentemente” os agressores eram ciganos.

As associações Letras Nómadas, Ribaltambição- Associação para a Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas, APODEC - Associação Portuguesa para o Desenvolvimento da Etnia Cigana, Sílaba Dinâmica, Associação Cigana de Coimbra, AMUCIP- Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas, Agarrar Exemplos, Costume Colossal e um conjunto de activistas ciganos emitiram um comunicado a exigir um pedido de desculpa a Carlos dos Anjos, mas esse pedido nunca chegou.

Dar meios e poder às entidades competentes
Nesta quarta avaliação, divulgada esta segunda-feira pelo Conselho da Europa, o comité revela “satisfação” por ter encontrado um clima de tolerância. Reconhece, contudo, que “ao mesmo tempo o discurso de ódio e o racismo estão presentes no discurso público e afectam em particular as comunidades ciganas e as comunidades imigrantes”. Por isso mesmo, além de pedir às autoridades que condenem qualquer expressão de racismo e xenofobia, pede-lhes que se empenhem em desconstruir estereótipos e preconceitos.

No ensejo de “combater de forma firme a discriminação directa e indirecta enfrentada pelos ciganos”, o grupo de peritos aconselha a intensificar esforços para aumentar o conhecimento no seio das próprias comunidades ciganas – sobre as leis que as protegem, os órgãos competentes para receber queixas e as respostas disponíveis para vítimas de discriminação, ódio e racismo.

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Recomenda ao Estado português que reforce o orçamento destinado à Provedoria de Justiça, alargando-lhe a capacidade de ir ao terreno. E que a dote e aos órgãos sectoriais de poder para investigar e impor sanções. Pede-lhe ainda que “monitorize de forma efectiva os casos de discriminação, ódio e racismo”, “reduza e simplifique os procedimentos de queixa” e dê feedback a quem se queixa.

Volta a sugerir que Portugal tire a CICDR da alçada do Alto Comissariado para as Migrações, conferindo-lhe independência. Algo que o Governo já disse que fará, passando-a para a tutela da Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, com o futuro observatório do racismo e da xenofobia.

Situação contraditória
A situação é paradoxal. Portugal assinou esta convenção em Fevereiro de 1995 e procedeu à sua ratificação em Maio de 2002, mas nunca conferiu estatuto de minorias às comunidades ciganas ou aos falantes de mirandês. Apesar da diversidade, há uma ideia de país homogéneo e monolingue.

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Os membros do comité reconhecem que Portugal tomou medidas para melhorar as condições de vida desta minoria. A Estratégia Nacional de Integração das Comunidades Ciganas foi revista e alargada (2013-2020 para 2013-2022) e o Conselho Consultivo para a Integração das Comunidades Ciganas duplicou o número de representantes ciganos (quatro para oito). Não deixam, no entanto, de apontar o muito que há a fazer.

No ano passado, quando estiveram em Portugal a averiguar o esforço que está a ser feito para executar a convenção, andaram por Porto, Figueira da Foz, Torres Vedras, Lisboa e Moura. Apesar dos avanços, verificaram que os ciganos “continuam a ser sujeitos a discriminação” e a “viver à margem”, amiúde em habitações precárias, com fraca escolaridade, alto nível de desemprego.

Para enfrentar a exclusão e a pobreza em que muitos ciganos parecem encurralados haverá que agir em várias frentes. A começar pelos “planos nacionais e locais para desenvolver condições de habitação acessíveis e adequadas”, dando prioridade ao realojamento dos que vivem em condições precárias e alargando o Programa Intercultural de Mediadores Municipais.

Os aspectos sinalizados e as recomendações feitas pelo comité não surpreendem a investigadora Maria José Casa-Nova, que está de saída da coordenação do Observatório das Comunidades Ciganas. “São os mesmos que, regular e consistentemente, tenho feito em todos os órgãos a que pertenço ou pertenci”, diz.

Não acredita que uma exclusão tão estrutural se resolva com meias medidas. Tem “defendido a discriminação positiva”, incluindo um sistema provisório de quotas, como uma forma de aceder a princípios basilares de justiça social”. “Provisório porque deixaria de ser necessário quando qualquer diferença alvo de discriminação fosse naturalizada em todas as esferas do social”.

No ano passado, o Observatório das Comunidades Ciganas criou um prémio ao qual se podem candidatar empresas que empreguem cinco ou mais pessoas ciganas. Julga que as instituições governamentais têm de dar o exemplo, oferecendo emprego em “funções compatíveis com os níveis de escolaridade de jovens a adultos ciganos, que vão do 4º ano de escolaridade ao curso superior”.

Autarquias e habitação
Mas tudo começa na habitação. Mais de 32% da população cigana portuguesa mora em construções abarracadas ou tendas, sem electricidade nem água canalizada. “Importa construir políticas nacionais e locais integradoras de todos os seres humanos independentemente da sua pertença nacional, cultural ou fenotípica, porque é de seres humanos que estamos a falar”, salienta.

“A habitação condigna é fundamental no processo de socialização e na construção de um sentimento de pertença e os municípios têm recusado esse acesso, tornando-se hostis a estas populações como forma de condicionar a vinda de outros cidadãos ciganos e como forma de agradar à maioria dos munícipes que elegem os órgãos camarários”, lamenta Maria José Casa-Nova. “Qualquer candidato sabe que se incorporar no seu programa eleitoral medidas de combate a todas as formas de discriminação, nomeadamente no acesso à habitação por parte de pessoas ciganas, os restantes munícipes não votarão neles”, reforça.

Depois de mais de 20 anos de trabalho pela inclusão, Bruno Gonçalves teme que o país tenha entrado numa fase em que dá votos a quem cavalgar os estereótipos e os preconceitos contra os ciganos. Foi assim que aconteceu, por exemplo, em Elvas. E um pouco por toda a Europa se tem vindo crescer a hostilidade contra as comunidades ciganas.

Maria José Casa-Nova prefere focar-se nos aspectos positivos. “Costumo dizer que estamos num ponto de viragem fundamental em termos políticos, de organização de associações ciganas, de organizações não governamentais. Mas o trabalho que falta fazer é imenso. As mudanças são demasiado lentas, mas estão a acontecer de forma mais regular. E é essa mudança que importa continuar. Persistentemente.”