10.1.20

Estratégia Nacional de Integração dos Sem-abrigo

Eunice Lourenço (Renascença), Helena Pereira (Público), in RR

Henrique Joaquim: “A nossa missão não é levar comida, é tirar as pessoas da rua”

O primeiro gestor da Estratégia Nacional de Integração dos Sem-abrigo, Henrique Joaquim, está confiante na meta traçada para 2023 e promete agilizar as respostas por parte do Estado. E deixa vários avisos à sociedade civil.

Henrique Joaquim: “A nossa missão não é levar comida, é tirar as pessoas da rua”
Foi durante oito anos responsável pela Comunidade Vida e Paz e é a partir de hoje o primeiro gestor da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-abrigo. “Se não for totalmente erradicado o fenómeno até 2023, não será por falta de condições”, garante Henrique Joaquim.
Na entrevista Público/Renascença, o gestor da estratégia deixa vários avisos à sociedade civil.

O que é que a sua nomeação vai permitir fazer?
A coordenação tinha vindo a ser feita até dezembro pelo Instituto de Segurança Social. A mudança ocorre porque a nova ministra do Trabalho entendeu que queria mudar o modelo de gestão e colocá-lo na sua dependência directa. O desafio é estar muito próximo dos actores locais e fazer chegar quer as necessidades, quer as potenciais soluções muito rapidamente para acelerar o processo de decisão e a operacionalização das respostas.

Durante o período em que foi responsável pela Comunidade Vida e Paz qual foi a maior dificuldade que sentia por parte do Estado?
O fenómeno que estamos a trabalhar é complexo e ágil. A problemática vai mudando com alguma rapidez e reveste-se de características que desafiam o próprio sistema de protecção social. Uma pessoa em situação de sem-abrigo não age em função de uma geografia parametrizada. O sistema de protecção social está padronizado para responder por áreas geográficas específicas. Mas encontramos muitas pessoas em situação sem-abrigo nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto que não são oriundos dessa região e temos que encontrar resposta imediata ali, sem prejuízo de o seu processo de inserção poder passar por voltar ao seu local de origem. Estas respostas muitas vezes têm que ser inovadoras, rápidas e flexíveis.

Há uma comunidade de cerca de três mil pessoas sem-abrigo em Portugal. É possível caracterizá-la?
Sim. Os dados de 2018 apontam para cerca 3.400 pessoas a nível nacional. Menos de metade eram pessoas efectivamente sem tecto. Temos que distinguir dois grandes grupos: as pessoas que estão sem tecto (estão na rua, em prédios abandonados ou em carros) e as pessoas que mesmo não estando na rua estão sem casa (têm um alojamento que pode ser temporário e não é suportado pelos seus próprios meios). A maior parte está na área metropolitana de Lisboa e são homens. Associado à condição de sem-abrigo, estão outros problemas sociais como a carência económica, problemas de dependências e de saúde, desde saúde física a saúde mental. Nas zonas metropolitanas, prevalece muito mais uma dependência do álcool, outras vezes de substâncias ilícitas. Cada processo de reinserção tem que ser desenhado à medida. Não dá resultado apresentar o mesmo projecto de vida.
O Estado está mais habituado a soluções padronizadas.
Sim e esse é o desafio. Esta resposta não é só do Estado, tem que ser nacional: do Estado central, do Estado local, das organizações, da sociedade civil, no geral, mas de forma organizada, não de forma voluntarista no mau sentido da palavra mas de uma forma voluntária, solidária e organizada sob pena de termos muitas vezes um efeito perverso da ajuda.

Qual é aqui a diferença entre voluntário e voluntarismo?
Temos uma coisa muito boa em Portugal que é a solidariedade espontânea. A pobreza extrema toca-nos. Mas a boa vontade, quando não é organizada, tem um feito perverso. Um caso crítico é a distribuição dos bens de primeira necessidade, da alimentação. Há zonas da cidade onde são oferecidas à mesma pessoa três refeições na mesma noite. Isto não faz sentido. Apelo à sociedade civil que nunca mate a vontade de ser solidária. Mas a pergunta sacramental deve ser: “Haverá alguma coisa que ainda não está feita e que nós possamos contribuir?” ou “Do que já está feito, onde é que nós podemos acrescentar valor?”. Nomeadamente, a movimentos e organizações de cariz religioso eu faço esse apelo. Não deixem de ser solidários, não deixem de ser voluntários, não deixem de ter uma resposta assistencial, mas não caiam no assistencialismo. O assistencialismo não tira a pessoa da rua, não resolve o problema ainda que naquela noite tenha matado a fome a uma pessoa, não a tira dessa condição. O objectivo tem que ser sempre tirar a pessoa daquela condição [de sem-abrigo]. O louro não é só de quem conseguiu naquela noite ouvir o ‘sim’ e encontrar resposta. Se calhar, conseguiu naquela noite porque houve quem andasse lá nas 300 noites anteriores. Sozinho, ninguém resolve o problema, mas desorganizados também não e estamos a criar frustração em nós próprios. Na Comunidade Vida e Paz dizíamos sempre que a nossa missão não é levar comida, é tirar as pessoas da rua.

A actual estratégia nacional prevê que ninguém fique na rua mais de 24 horas. Isso é possível?
É possível, criando estes canais de comunicação e a sociedade civil sabendo como sinalizar uma situação. Quantos mais dias uma pessoa está na situação de sem-abrigo, mais difícil é reverter essa situação. A intervenção de emergência tem que ser rápida.
Nos últimos dois meses houve dois casos, da jovem que deixou um bebé no ecoponto e um homem que foi encontrado morto na tenda onde vivia. O que falhou no sistema nestes dois casos?

São dois casos limite que é muito difícil dissecar. Há aqui um factor comum, ao que parece, que é ambas as pessoas envolvidas tinham uma resistência ao apoio que era prestado.
Mas esse é um traço muito comum entre as pessoas sem-abrigo.
É, daí a importância de que se reveste a proximidade e a empatia. Nós, que estamos a intervir, temos que ser em primeiro lugar muito próximos e muito humildes para perceber que se não conseguimos dar resposta temos que encontrar alguém que consiga. Jamais alguém pode ficar sem qualquer tipo de ajuda. Infelizmente, num dos casos a pessoa ficou sem qualquer tipo de resposta. No outro caso, apesar de ter havido alguma ajuda, houve um encobrimento [da gravidez] e não consegui apurar as razões fundas que levaram a esse encobrimento.

O Estado, que agora representa, tem que tirar lições destes casos. Que lições tira?
Temos que investir muito numa humanização dos serviços e aproveitar muito o capital solidário que o país tem.

O OE destina especificamente 7,5 milhões em 2020 para a estratégia de apoio aos sem-abrigo. Vai ser gasto em quê?
Tal como foi anunciado, fundamentalmente em resposta de habitação mas também no esforço de intervenção de rua. É crítico que 2019 foi um ano de viragem na habitação. Os preços inflacionaram-se. Hoje em dia é praticamente impossível alugar os quartos que se conseguiam alugar em Lisboa, pelo Estado central, autarquias ou a misericórdia de Lisboa. As autarquias de Lisboa, Cascais ou Leiria estão a fazer um esforço nesta metodologia do housing first. Temos que apostar também noutros modelos de habitação partilhada, há pessoas que preferem sentir-se acompanhadas. A chave é que as pessoas que tenham pouco tempo de rua não percam os poucos laços que têm e as que têm muito tempo de rua voltem a reganhar esses laços. Ganhando laços afectivos e sociais e de protecção é muito mais fácil trabalhar um projecto de vida.

A maior dificuldade em tirar as pessoas da rua é uma questão de dinheiro e de casa?
São duas das dificuldades. Mais uma vez voltamos à questão da complexidade. Para as pessoas que têm dependências há todo um processo de as trazer outra vez ao serviço nacional de saúde e de lhe propor um tratamento. Muitas vezes as pessoas estão resistentes aos serviços, já houve muitas tentativas falhadas. Mas temos sempre que valorizar as tentativas e não os falhanços e temos que capitalizar a motivação das pessoas que é, muitas vezes, oscilante. Às vezes, à noite, nas nossas intervenções, a pessoa diz que ‘sim’ e no dia a seguinte já não quer ir ao atendimento. Quando se acumulam situações na área da saúde mental, temos que trazer os serviços às pessoas. Temos que permanecer lá. A gente nunca sabe qual é o dia e o momento em que a pessoa vai dizer que sim.

O psiquiatra António Bento, que trabalha também há muitos anos com sem-abrigo, diz que enquanto ignorarem a psiquiatria, não pode deixar de haver sem-abrigo na rua. Temos meios de saúde mental para dar resposta aos sem-abrigo?
Destaco o compromisso público da ministra da Saúde de que iria haver um reforço dessa área. Os meios actualmente carecem de ser reforçados. Mas não podemos colocar todas as pessoas sem-abrigo na gaveta da saúde mental. Mais uma vez foco a proximidade e a personalização das respostas. Não devemos partir do princípio que todas as pessoas sem-abrigo vão ser integradas por via do emprego, é um mito, nem que não conseguiremos resolver o problema porque há sempre pessoas com problemas tão graves, tão graves que não há solução.

O que mantém mais tempo as pessoas na rua? A pobreza, as dependências?
É tudo junto. As frustrações acumuladas, as tentativas que não resultam. Há pessoas menos diferenciadas que caem nesta situação. Pode começar por um desemprego, uma desestruturação familiar, um conflito. Já encontrámos pessoas com doutoramento, que tiveram cargos públicos.

Há, de facto, pessoas que permanecem na rua porque querem?
Não acredito nisso. Nunca encontrei nenhuma e duvido que vá encontrar. Isso para mim é um mito urbano. Há pessoas que sabem que se nos disserem isso, nós nos afastamos com mais facilidade. Agora, quando ganhamos essa relação percebemos que no fundo elas não querem. Quando a solução que lhes é apresentada vai mais ao encontro das suas expectativas, elas não querem. Ninguém quer, a não ser por um devaneio de juventude, um estilo de vida mais alternativo, mas isso não é uma pessoa em situação de sem-abrigo. Em oito anos de trabalho na rua, nunca encontrei ninguém que conscientemente me dissesse: “Deixe-me em paz. Esta é a minha casa. Eu quero viver aqui”. Às vezes, demora mais a chegar lá. Há pessoas que rejeitam, até agressivamente. Daí, a importância de se dizer que se não é este o voluntário mais adequado, quem é? Interessa encontrar o laço.
O Presidente da República colocou como objectivo que não tenhamos pessoas na situação de sem abrigo em 2023. É uma meta razoável? Ou nunca vamos deixar de ter pessoas em situação de sem abrigo?
Essa meta foi há quatro anos. Estávamos a falar de duas legislaturas e uma já passou.

Todas as instituições estão comprometidas com esta meta ou é só o PR?
Hoje, dia 2 de Janeiro, a consciência colectiva é significativamente maior e melhor. Não está ganha, mas está no bom caminho.

Então será possível a meta de 2023?
Acredito que, se não for totalmente erradicado o fenómeno, é possível não ter ninguém na rua por falta de condições. Se não atingirmos o zero, teremos dado passos muito significativos nesse sentido.

Pode-se dizer que há um antes e depois de 2016, ou seja, quando foi eleito este Presidente?
Há, sem dúvida. Antes de 2016, não havia um documento formalmente aprovado. A primeira proposta de estratégia é de 2009. Nunca chegou a ser aprovado como documento legal embora a sociedade civil e algumas autarquias se tenham apropriado dos princípios ali vertidos. Quando este Presidente pegou no assunto, ele ganhou outro lastro. O PR contribuiu para que em 2017 houvesse uma estratégia nacional, envolvendo associações, autarquias e Governo. O PR não só faz isso à mesa, sentando estas instituições, como faz na rua, acompanhado pela ministra, por vereadores e associações da sociedade civil. Um traço que sempre teve e que mantém é falar directamente com as pessoas que estão na rua. Há muitas pessoas em situação de sem abrigo extremamente lúcidas, têm sonhos, têm expectativas, embora tenham frustrações. É preciso ganhar a proximidade e confiança para os fazer emergir.