27.1.20

A memória de Auschwitz é uma guerra que se trava hoje

Maria João Guimarães, in Público on line

Hoje assinalam-se 75 anos da libertação de Auschwitz, símbolo do Holocausto. Rússia, Polónia e Israel lutam pelas suas interpretações da História. E nem a Alemanha, exemplar na sua política de memória, é excepção no utilitarismo.

A luta pela memória é a luta do presente. Nas comemorações do 75º aniversário da libertação de Auschwitz, uma guerra revisionista entre a Rússia e a Polónia, envolvendo Israel, afastou as atenções do objectivo primeiro do que é, também, o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto: lembrar as histórias dos sobreviventes.

Será esta a última sociedade matriarcal da Europa?
Em nenhuma comemoração ficou tão evidente esta divisão entre visões diferentes, com um evento em Jerusalém na quinta-feira a ter o líder russo, Vladimir Putin, como orador (algo que foi recusado ao Presidente polaco) e outro hoje, em Auschwitz, na Polónia, onde Putin (que representa os libertadores soviéticos do campo) não vai estar. No centro do debate estão as visões cada vez mais diferentes da Rússia e da Polónia do que foi a II Guerra Mundial.

Nesta luta no modo de olhar passado, o presente é o mais importante.

“Só em parte é que esta discussão tem a ver com a História”, disse Tobias Ebbrecht-Hartmann, professor do Fórum Europeu da Universidade Hebraica de Jerusalém onde ensina temas de memória e conflitos políticos associados a ela. “Tem muito mais a ver com a situação presente”, com governos nacionalistas na Europa, um Governo de direita em Israel, e com interesses diplomáticos e de segurança. “Não tem a ver com um entendimento correcto do passado”, queixa-se.

O último round é entre a Rússia e a Polónia: Putin tem vindo a culpar a Polónia pelo início da II Guerra Mundial aludindo a um entendimento com os nazis (a Polónia reagiu lembrando que foi Estaline que fez um pacto de não agressão com Hitler e acusou Putin de branquear Estaline). O round anterior fora entre a Polónia e Israel, com Varsóvia a proibir quer o uso da expressão “campos polacos” (os campos eram, de facto, administrados por nazis alemães na Polónia ocupada) quer a referência a uma “culpa polaca” no Holocausto e Israel a fazer notar os muitos judeus mortos por polacos e o anti-semitismo até no governo no exílio.

No round anterior, Polónia e Israel encontraram um meio termo – apesar da oposição dos historiadores do centro Yad Vashem. “O Governo, ao contrário do Yad Vashem, tinha interesse em chegar a um acordo com os polacos”: Varsóvia é uma das capitais europeias importantes para Netanyahu, que gostava de contar com a Polónia ou a Hungria (apesar da campanha anti-semita do Governo de Viktor Orbán) “para ter uma voz mais pró-israelita na União Europeia”.

No round actual, Israel viu-se entre Rússia e Polónia. E também foi o pragmatismo que levou a que escolhesse Moscovo. Há razões de curto e médio prazo: Netanyahu anda há meses a tentar que Putin liberte a israelita Naama Issachar, de 26 anos, condenada a sete anos e meio de prisão por posse de uma pequena quantidade de marijuana no aeroporto de Moscovo, onde fazia escala vinda da Índia (o que provocou muita comoção no país; Putin visitou a mãe de Issachar no dia da evocação do Holocausto em Jerusalém).

As razões mais óbvias são outro conflito recente entre Israel e a Polónia sobre os campos polacos e a insistência da Polónia em sublinhar o seu lado de vítima e não o de agressor de judeus, e a aproximação de Netanyahu a Putin, o novo senhor do Médio Oriente, cuja intervenção decidiu o destino da guerra na Síria a favor de Bashar al-Assad.

Mas Tobias Ebbrecht-Hartmann dá mais nuances à relação entre Israel e a Polónia. “Foi marcada por uma profunda desconfiança que afectou a percepção israelita sobre a Polónia, que nem sempre foi historicamente correcta.”

“A maioria dos sobreviventes dos campos era da Polónia e da Europa de Leste; muitos dos judeus alemães e austríacos conseguiram sair, antes, para a Palestina”, lembra. “Estes têm uma memória do Holocausto muito diferente. Os muitos judeus que vieram para Israel da Polónia tiveram esta experiência pessoal de terem sido desintegrados da sociedade polaca, traídos pelos vizinhos polacos, até de anti-semitismo após o Holocausto, o que influenciou muito a imagem da Polónia em Israel.”
E a partir dos anos 1980, diz Ebbrecht-Hartmann, muitos israelitas começaram a visitar os locais de assassínio – na actual Polónia – “e a sua experiência da Europa era feita unicamente pela lente dos centros de morte, o que provoca um laço estreito, mas muito dominado por esta história negativa”.

Como os centros de extermínio estavam, por definição, fora das fronteiras do Reich alemão, em território que hoje é polaco (os campos de concentração na Alemanha não tinham como objectivo principal matar os presos, embora isso acabasse muitas vezes por acontecer), isto faz ainda com que o país visitado não corresponda ao país que promoveu a ideologia anti-semita e nazi, mas sim um outro, que tem uma história especialmente extremada de ser vítima e ser carrasco.

A Polónia era o único país em que ajudar judeus era punido com a pena de morte, ainda assim, é o país com mais cidadãos distinguidos pelo museu Yad Vashem por salvar vidas de judeus durante a guerra. A Polónia teve um governo no exílio que lutou contra os nazis, mas que também foi anti-semita. E dos mais de três milhões de judeus polacos que caíram nas mãos dos nazis, só sobreviveram cerca de 3%, o que põe a Polónia no fim da lista dos países europeus, diz o historiador Gunnar S. Paulsson, especialista em Holocausto.

Ebbrecht-Hartmann nota que, depois de anos a não falar da História e a tentar branqueá-la, “os polacos perceberam que na UE é preciso ter em conta a História, e assim estão a chamar a atenção para quem salvou judeus, estão a tentar reintegrar as vítimas na sociedade polaca”. Mas “isto também é ligeiramente problemático, porque parece fingir que não havia tensões dentro da sociedade polaca, que não havia anti-semitismo, e claro que houve – houve muitos polacos a colaborar”, diz o professor. “Eram muitos milhares”, disse o ‘caçador de nazis’ Efraim Zuroff, do Centro Simon Wiesenthal.

O que fica esquecido: “Muitos polacos exilados também tinham ideias comunistas, e lutaram juntos com o Exército Vermelho contra os nazis. O realizador polaco Aleksander Ford, por exemplo, fazia parte do Exército Vermelho, e era comunista – foi dos primeiros a chegar aos campos de concentração. Isto é também parte da História polaca. Não foram os russos que governaram a Polónia entre 1945 e o final dos anos 1980… eram polacos, e eram polacos que acreditavam no comunismo. E, mais trágico ainda, Ford foi expulso junto com muitos outros judeus durante os anos 1960 por causa de uma nova vaga de anti-semitismo no governo polaco.”

E o Governo de Varsóvia fez outras afirmações problemáticas: “Quando o Governo polaco diz que 1945 não foi uma libertação, que o exército soviético não libertou Auschwitz, e não libertou a Polónia dos nazis… isto também não é verdade”, sublinha Ebbrecht-Hartmann.

A estratégia de Putin
A Rússia também tem, claro, uma memória muito selectiva: “Houve sempre um entendimento muito específico do que foi a II Guerra, uma memória muito forte de sofrimento, e isto está certo, civis russos e forças militares sofreram como nenhum outro na Europa com a guerra”. Este grande sofrimento da população não foi, durante muitos anos, reconhecido, especialmente na Alemanha “onde houve uma continuidade do ressentimento anti-russo que foi recuperado como anti-bolchevique, anti-comunismo”. Este sofrimento esteve, “aliás, na origem também das violações brutais dos russos na Alemanha e na retaliação contra a população civil alemã”.

No meio de tudo isto, nem os judeus nem o Holocausto eram importantes na cultura de memória russa. “É interessante que Putin traga agora o tema para a frente da discussão”.
Também na memória do pós-guerra a Rússia tem algo que os seus vizinhos não têm, diz Ebbrecht-Hartmann: “Uma nostalgia dos grandes tempos soviéticos, quando a Rússia era um poder mundial e um império”.
Putin é um produto desse tempo e, mais, o seu background e treino é de espionagem e serviços secretos; a sua estratégia é de desinformação, nota Ebbrecht-Hartmann. “É o que se passa aqui. Divulga-se um mito que os polacos colaboraram com os nazis antes do início da II Guerra Mundial, e alguma parte disso vai ficar.”

Ameaça constante a judeus
Em Israel o Holocausto foi igualmente sendo visto de modo diferente ao longo dos tempos.
O recém-criado Estado hebraico ignorou a Shoah. Mais, “não foi fundado por causa do Holocausto, e sim apesar do Holocausto” – se a guerra tivesse durado um pouco mais, não haveria, por um lado, população para fundar o Estado judaico e, por outro, a presença judaica na Palestina antes da criação do Estado também seria ameaçada pelas tropas nazis que marchavam em direcção ao Médio Oriente, sublinha Ebbrecht-Hartmann.

A primeira geração dos fundadores do Estado de Israel “não tinha muito interesse em manter viva a memória do Holocausto, porque era uma memória de fraqueza e de derrota”. Só mais tarde, depois da guerra do Yom Kippur, em 1973 (quando Israel foi atacado por uma coligação liderada por Egipto e Síria), o Holocausto se tornou no que é hoje: “O paradigma para perceber a ameaça constante das pessoas que vivem em Israel”. E em Israel, a diversidade também tem influência. Por exemplo, a vaga de imigração após o fim da União Soviética, com pessoas que também trouxeram “a sua cultura de memória da guerra para o Estado hebraico, com comemorações militares, pessoas vestindo os seus uniformes da altura, etc.”, conta o professor da Universidade Hebraica.

Alemanha não é excepção
Poderia pensar-se que a Alemanha, o país dos criminosos, e que é visto como o modelo exemplar na forma como lida com o passado, escapa deste uso utilitário da memória. Mas Tobias Ebbrecht-Hartmann sublinha que também no país houve mudanças significativas, e pragmatismo.
“Mesmo na Alemanha houve muita vitimização, durante 40 anos o tema do sofrimento durante a guerra foi muito forte, havia a ideia de que a Wehrmacht [o exército regular] era um exército moral, e apenas os nazis tinham cometido crimes”, um mito que se manteve até meados dos anos 1970, por exemplo.
“Mas após a reunificação, a Alemanha quis provar que mudou”, depois de também perceber que “confrontar directamente o passado é uma vantagem nas relações internacionais”, diz Ebbrecht-Hartmann.

Isto “não quer necessariamente dizer que seja um reflexo de um entendimento profundo na sociedade”: o partido de direita radical Alternativa para a Alemanha (AfD), por exemplo, tem criticado muito a cultura de memória (embora se tente apresentar como um partido pró-Israel e pró-judeus, tendo mesmo uma “ala judaica”).
Tobias Ebbrecht-Hartmann lamenta este revisionismo. “Gostava que encontrássemos modos de proteger a memória deste sequestro político”. Com as testemunhas directas a desaparecer, “talvez isto seja um prenúncio do que vai acontecer”, avança.

De qualquer modo, o especialista rejeita a ligação, feita na conferência de Jerusalém no Yad Vashem (organizada pelo Congresso Mundial Judaico, liderado por Moshe Kantor, próximo de Putin), entre assinalar o Holocausto e lutar contra o anti-semitismo: “Recordar o Holocausto e lidar com a memória do Holocausto é muito importante, mas não é a estratégia educacional certa para combater o anti-semitismo”, sublinha. “A luta contra o anti-semitismo exige uma estratégia muito mais complexa.”