14.1.20

Menos 200 euros de propina não ajuda os pobres

Susana Peralta, in Público

O objetivo é estimável, mas é improvável que reduzir (ou mesmo abolir) as propinas sirva para alguma coisa.

O governo vai voltar a reduzir a propina máxima de licenciatura, dos 871 euros do ano letivo 2019/20 para 697 euros, medida que agrada ao Bloco de Esquerda, que defende a abolição das propinas para reduzir as desigualdades socioeconómicas no acesso. O objetivo é estimável, mas é improvável que reduzir (ou mesmo abolir) as propinas sirva para alguma coisa.

No Selina trabalha-se, dorme-se e come-se (tudo em salas diferentes)
O acesso ao ensino superior em Portugal tem dois problemas. Chega a poucas pessoas e deixa de fora os mais pobres. O Education at a Glance de 2019 relembra-nos que apenas 25% dos adultos entre 25 e 64 anos de idade completaram o ensino superior, muito abaixo da média da OCDE de 40%. Como não temos informação para analisar a desigualdade de acesso com base no rendimento das famílias, os relatórios existentes socorrem-se da educação dos pais e da percentagem de bolseiros. O Education at a Glance de 2018 diz-nos que os jovens entre os 18 e os 24 anos que têm pelo menos um progenitor com diploma universitário ocupam 40% dos lugares nas universidades, quando representam apenas 20% dessa camada etária na população do país. Um relatório recente da Edulog – Fundação Belmiro de Azevedo mostra que os menos favorecidos que chegam ao ensino superior têm acesso a escolas e cursos de menor prestígio (com o correspondente salário mais baixo no futuro) do que os jovens de famílias mais abonadas.

Mas serão as propinas o principal entrave à equidade de acesso ao ensino superior?
É pouco provável. Mesmo se as barreiras monetárias fossem as mais importantes, o valor do alojamento, livros, material escolar e informático relegam a diminuição das propinas para a categoria do irrisório. Isto sem contar o custo mais elevado de todos, que é a perda do salário que se pode ganhar ingressando mais cedo no mercado de trabalho. Por outro lado, sabemos, graças ao estudo da FFMS da autoria de Hugo Figueiredo, Miguel Portela, Carla Sá, João Cerejeira, André Almeida e Diogo Lourenço, que a melhoria salarial depende hoje mais do mestrado do que da licenciatura. Portugal optou por não regular as propinas de mestrado, contrariamente à maior parte dos restantes países da UE, e por isso um mestrado pode custar hoje perto de dez mil euros. Então, que diferença fazem estes 200 euros da propina de licenciatura?
Um outro estudo recente, da University College of London, mostra que a introdução de propinas no Reino Unido em 1988 não teve impacto na desigualdade de acesso, devido ao aumento simultâneo das bolsas. A importância de programas de bolsas e empréstimos bem geridos e generosos resulta em vários estudos como o fator mais importante para promover a equidade de acesso. Já agora: a maior parte destes estudos analisa países onde as propinas são mais elevadas do que as portuguesas, mesmo ajustando para o poder de compra.

Mas nem tudo são barreiras monetárias. As desigualdades de percurso têm origem logo nos primeiros anos de vida, antes da idade pré-escolar e mesmo do nascimento. Por exemplo, o artigo “Long-Run Impacts of Childhood Access to the Safety Net”, publicado em 2016 na American Economic Review, estuda os chamados food vouchers, que são vales que as famílias podem gastar em comida, em mercearias e supermercados, introduzidos progressivamente no território dos EUA entre 1962 e 1975, durante a “Guerra à Pobreza” do Presidente Johnson. Os autores do artigo conseguiram ligar informação sobre os adultos atuais com a freguesia em que viviam enquanto crianças e durante a gravidez das suas mães e concluem que as pessoas cujos inícios de vida (dentro e fora do útero) aconteceu em locais onde havia food vouchers têm melhor saúde e mais auto-suficiência económica.
Já não vou falar do facto de em Portugal não haver um programa integrado de apoio à primeira infância, mas mesmo na face mais evidente de uma tal política, que é a das creches de qualidade, estamos mal. Sabemos que a creche é crítica sobretudo para os filhos de mães menos educadas: ora, em Portugal as crianças com mães educadas têm uma taxa de inscrição em creches 17 pontos percentuais acima das restantes (ainda segundo a OCDE). Creches públicas e gratuitas continuam a ser uma miragem. Quanto ao pré-escolar, ainda não há cobertura nacional para todas as crianças a partir dos três anos.

O próprio sistema de seleção no acesso à universidade cria desigualdades fenomenais. Já não é surpresa para ninguém que os rankings do ensino secundário têm por detrás disparidades socioeconómicas, tanto entre escolas privadas e públicas como entre escolas públicas de bairros caros (onde vivem os privilegiados) e as outras, dos bairros remediados e pobres. E depois há essa indústria obscura, sem qualquer escrutínio, que são as explicações. Não é difícil imaginar que impacto têm nos rankings e no sucesso dos jovens cujas famílias podem pagar esse pequeno empurrão no acesso ao ensino superior. O artigo “The effect of abolishing university tuition costs: evidence from Ireland”, publicado no Journal of Labor Economics em 2014, mostra que abolir propinas não melhorou o acesso dos jovens menos privilegiados devido – precisamente! – às desigualdade no ensino secundário.

O mais trágico de tudo isto é que ao fim de 30 anos nunca houve uma avaliação rigorosa do impacto das propinas. No Reino Unido, por exemplo, Theresa May nomeou um painel de especialistas independente que durante um ano e meio estudou o financiamento do ensino superior. Por aqui, legisla-se às escuras. Sendo improvável que as propinas mais baixas levem mais estudantes pobres ou remediados à universidade, então esta redução é um presente para os filhos de ricos que lá chegam. Será isto que queremos?