14.1.20

Igreja evangélica suspeita de tráfico de pessoas defende-se: “Fazemos ajuda humanitária”

Joana Gorjão Henriques (Texto) e Sara Jesus Palma (Fotografias), in Público

Num armazém entre outros tantos na Amadora fica a igreja evangélica Assembleia de Deus Ministério do Avivamento. Ali vivem 25 pessoas, em 15 quartos, divididos por paredes em pladur e com bolor. A renda são 300 euros cada, mas a igreja diz que há quem esteja lá sem pagar nada. Três pastores foram detidos pelo SEF suspeitos de tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal. Caso está em segredo de justiça.

Passa-se por armazéns de vários tipos, alguns com discotecas nocturnas, outros com venda de materiais para carros ou de iluminação. Há camiões a atravancar o trânsito que se concentra nesta manhã de segunda-feira na zona industrial da Amadora. Chega-se ao edifício azul claro e branco onde está a igreja evangélica Assembleia de Deus Ministério do Avivamento: não parece, mas este é um local de culto e de residência para cerca de 25 pessoas. Em letras grandes, na fachada, uma placa anuncia-o no topo. Não há ninguém para abrir, também não há uma campainha. Arriscamos empurrar o portão.

Numa zona que serve de parque de estacionamento estão vários carros, uma camioneta com um colchão lá dentro, algum entulho. Ao fundo, coberta por uma telha, fica aquilo a que chamam lavandaria, mas tem uma mesa, um frigorífico, há também uma mota estacionada. Aparece a missionária brasileira Ana Silva, de quase 70 anos, que está a preparar café. Vive há seis anos naquele lugar. “Coopero com a obra, como todos. É assim que Jesus ensina.” Diz que veio para Portugal ter com o filho. “Nem conhecia a igreja.”

Foi aqui que, na quinta-feira passada, uma equipa do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) fez buscas e deteve três pastores por indícios de auxílio à imigração ilegal e tráfico de pessoas. Presentes a um juiz na sexta-feira de manhã, os pastores, um casal e um homem brasileiros, foram libertados, ficando com interdição de saída de Portugal e apresentações semanais à justiça.

Gonçalo Rodrigues, director central de investigação do SEF, disse na sexta-feira ao PÚBLICO que a investigação, que durou três meses, teve origem numa denúncia que relatava actividades “enquadradas na prática de tráfico de seres humanos”, por causa “das condições do alojamento”, pela “forma como as pessoas viviam ali” e porque “o rendimento que deviam supostamente auferir regressava à igreja”. “Havia ali claramente indícios de exploração”. Apesar de haver crianças no grupo não foi identificada nenhuma situação preocupante, disse, por isso as pessoas mantiveram-se a viver no local. Se forem sinalizadas como vítimas accionam-se os mecanismos da lei, diz o SEF, mas é preciso que as próprias queiram. Há outras questões na base da investigação que o SEF não pode revelar por o processo estar em segredo de justiça.

Segundo o comunicado do SEF na sexta-feira, os pastores convenciam os imigrantes a vir para Portugal, prometendo-lhes trabalho e regularização, o que não aconteceria. A igreja é ainda suspeita de gerir “a permanência das pessoas em território nacional”.

No mesmo dia em que surgiram as notícias, a Aliança Evangélica Portuguesa demarcou-se desta entidade, publicando uma nota em que dizia que a referida Assembleia de Deus Ministério do Avivamento não fazia parte da sua associação.

SEF detém três pastores evangélicos na Amadora suspeitos de tráfico de pessoas

A missionária Ana Silva também viu as notícias desse dia. “Saiu para o mundo inteiro”, comenta. “Estamos acostumados. Deus disse que a igreja é perseguida na terra, é normal isso acontecer. A igreja tem que ser perseguida, se não for perseguida não é de Jesus”, acrescenta em pé, na zona da lavandaria.

“Dízimo é voluntário”
A sair do armazém vem Carol, empregada doméstica que há um ano e meio vive ali, com a filha e o marido.

Ninguém quer aparecer na fotografia. Todos dizem que vivem bem, que os pastores estão presentes quando eles precisam. “O nosso serviço na igreja é voluntário. Se eu posso ajudar, porque não vou ajudar?”, interroga, retoricamente. Pelo quarto faz “uma doação de 300 euros” não é “para a igreja”, mas é para o senhorio. Também dá o dízimo porque “a Bíblia diz” para doar a décima parte do que a gente tem. “A história está mal contada”, critica, comentando as notícias. E vai embora porque tem que “resolver coisas”.

Um outro membro da igreja que não quer ser identificado diz que “a gente faz por seguir o que está na Bíblia” e o dízimo “é voluntário”. “Eu dou o meu dízimo espontâneo.”
Não querem mostrar o interior do armazém. Pedem para sairmos. Ligamos ao pastor e este remete para o seu advogado, Paulo Santos, que por seu lado afirma que os clientes não se revêm na prática dos crimes dos quais são acusados e têm todo o interesse em ver esclarecidas as acusações. “Confiam na justiça”, afirma.

Na fachada lateral do armazém há poucas e pequenas janelas. David Ramos, de 31 anos, trabalha no armazém colado à igreja que vende artigos de iluminação. De vez em quando vê os miúdos a brincar na rua, não sabe quem entra e sai. Mas vê as portas do culto abertas. E ouve-os cantar frequentemente. Do outro lado da estrada, Paulo Almeida, que costuma fazer uns biscates por aquela zona, diz que via frequentemente pessoas a chegar de malas e em carros com o dístico TVDE, mas não percebia porquê – percebeu quando viu as notícias.

“Deus cura. O que o médico não pode fazer, Jesus faz: cura aids [sida], coração, coluna. É maravilhoso”, diz a missionária Ana Silva, dentro do espaço que agora é improvisado para o culto pois a igreja está em obras, a renovar o chão.
O pastor Mike chega perto do meio-dia para a celebração, pede para abrirem a Bíblia no salmo 121. Há três mulheres na assistência, pelo menos duas delas vivem ali, e aparece um terceiro residente. Ajoelham-se. O cheiro a fritos inunda a sala. Não nos deixam subir a um primeiro andar, uma espécie de mezanino, mas aquela também é uma zona com residentes. Ao longe, por cima de uma mesa vê-se uma garrafa de óleo e tupperwares. Saberemos depois que vivem no armazém 25 pessoas, em 15 quartos.

Aparece então a filha do casal de pastores, já naturalizados portugueses, segundo diz: Ludmylla Pereira, de 23 anos. Com cabelo escuro e liso, calças de ganga e casaco amarelo, Ludmylla Pereira conta que estão implementados ali há 15 anos, e têm mais dois locais de culto, em Cascais e na Costa da Caparica. Ao contrário do que acontece na Amadora, lá não há alojamento. Têm ainda uma quinta no Montijo, mas serve apenas para reuniões sociais, afirma.

Ela vive com os pais na linha de Sintra e trabalha como auxiliar num hospital em Lisboa. Os pais já eram pastores no Brasil, “independentes”. As acusações são “completamente falsas”, afirma. “Não têm nenhuma prova disso. Há várias pessoas que chegam do Brasil e nem sequer conheciam os meus pais antes, nem sabem o que é essa igreja. Quando chegam, os brasileiros não têm dinheiro para alugar uma casa, e por conhecimento de outros sabem que estamos aqui, deixamos ficar até se estabilizarem, até arranjarem trabalho e casa. Mas muitos quando arranjam trabalho não querem sair porque é mais acessível.”
Segundo Ludmylla Pereira, os que ali vivem dão aquilo que podem para “ajudar a pagar a renda” do armazém. Outra moradora, além de Carol, também diz pagar 300 euros.
A filha dos pastores nega que ajudem na regularização dos imigrantes, ou que prometam o que quer que seja – garante que à excepção de uma pessoa que acabou de chegar, todos os outros têm um pedido de autorização de residência feito no SEF. “Acho que há um pouco de discriminação. A nossa igreja não tem ajuda da Segurança Social, não tem ajuda de ninguém. Pagamos cinco mil euros de renda e mil e tal euros de água e luz.”. E defende-se: “Fazemos ajuda humanitária.”

Quartos divididos com pladur
No espaço improvisado como igreja, que segundo Ana Silva era uma antiga discoteca, há um balcão onde estão pousados os panfletos para a doação do dízimo e de votos, com o número do NIB da conta bancária em baixo.
São cerca de 100 crentes que vão à igreja semanalmente. Nem todas dão o dízimo, diz Ludmylla Pereira. E há quem esteja alojado naquele espaço, mas não pertença à igreja, afirma. Todos pagaram o seu bilhete de avião para Portugal, garante.

Subimos ao primeiro andar do armazém, onde vivem sete adultos, e crianças – uma delas não terá mais de dois anos. Passamos por um corredor escuro, sem luz, onde há uma pequena sala com brinquedos, desenhos pintados nas paredes. As casas de banho são partilhadas, nas paredes vêm-se manchas de bolor. Numa das zonas que dá acesso aos lavabos está um grande fogão, encostado à parede, inactivo.
Os quartos são divididos por paredes em pladur - entre si, mas também da parede que os separa do corredor. O quarto dos filhos de Elisabete Azevedo, de 54 anos, que diz estar de visita como turista, tem um grande sofá e uma televisão plasma enorme onde estão a passar bonecos animados. Atrás da cama de casal há uma zona de arrumação da roupa, junto da janela está um armário que é usado para produtos de mercearia. Há uma janela para a rua, e mais bolor.

“Fiquei chocada [com as notícias]. Porque ele [o pastor] ajuda. Se fosse tráfico de pessoas eu como mãe teria denunciado, não ia vir do Brasil!”, diz Elisabete Azevedo. “A minha filha [de 24 anos] jamais iria deixar-se passar por uma situação dessas”, afirma.

A missão desta igreja é pregar o evangelho e a ajuda humanitária, afirma a filha dos pastores. “Fazemos cesta básica [cabaz de alimentos] para quem precisa, se tem gente doente os pastores vão a casa deles. É como se fosse uma família, se um não tem, o outro ajuda”.

O pastor Mike, de 35 anos, chegou a viver naquele espaço durante um ano, enquanto a sua casa estava em obras e “nunca” pagou “um cêntimo”, afirma. Diplomata de carreira, diz que fala sete línguas – é tradutor intérprete. Francês, filho de pais angolanos, converteu-se noutra igreja evangélica. “Quando vim para aqui [para a Assembleia de Deus Ministério do Avivamento] senti algo diferente”. Isso foi em 2008. Só há cerca de um ano é que Mike – que não quer dizer o apelido – é pastor.

Elogia o trabalho com as crianças, conta que fazem várias actividades e aprendem a tocar instrumentos, da bateria ao órgão. Sobre o posicionamento daquela igreja em relação a temas como as relações sexuais antes do casamento afirma: “Não condenamos as pessoas, condenamos o acto. Aconselhamos os jovens a conservarem a vida sexual para depois do casamento.” Já sobre a homossexualidade diz: “A ordem divina condena a prática, não as pessoas. A nossa regra de fé é o amor.” Afirmam que aceitam todos: “Temos ex-prostitutas, ex-toxicodependentes, ex-homossexuais.” Mike nega também que defendam posições políticas durante o culto. “Oramos por eles [políticos]. O presidente Marcelo Rebelo de Sousa tem feito tudo ao seu alcance, o primeiro-ministro António Costa também.”
Quanto à investigação judicial, comenta: “Acreditamos que vai ser feita justiça”.