A associação SOS Racismo considerou “hipócrita” o inquérito aberto pela Inspeção-Geral da Administração Interna sobre mensagens de ódio escritas por elementos das forças de segurança nas redes sociais e disse que alerta para este problema há anos.
Em declarações à agência Lusa, um dirigente da SOS Racismo, uma associação que desde 1990 luta por “uma sociedade mais justa e intercultural”, considerou que “é completamente hipócrita” que a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) abra agora um inquérito sobre a publicação, por agentes das forças de Segurança, de mensagens nas redes sociais com conteúdo discriminatório e que incitam ao ódio.
“Estamos fartos de apresentar coisas à IGAI para a abertura de inquéritos e os resultados são sempre os mesmos, ou seja, zero, ou praticamente zero. É hipocrisia completa”, criticou José Falcão.
O dirigente questionou como é referido serem casos pontuais quando a associação SOS Racismo denunciou a existência do Fórum GNR, no qual, afirmou José Falcão, era possível ler mensagens racistas e que incitavam ao ódio e à violência contra grupos como os ciganos.
“Denunciámos isso e foi arquivado porque o juiz entendeu que não dizia ‘ipsis verbis’ ‘às tantas horas vamos matar ciganos’. Isto é ridículo”, considerou.
Uma reportagem de um consórcio português de jornalismo de investigação, que inclui jornalistas, advogados e académicos, mostra que as redes sociais são usadas para fazer o que a lei e os regulamentos internos proíbem, com base em mais de três mil publicações de militares da GNR e agentes da PSP, nos últimos anos.
Para José Falcão, a posição oficial da associação sobre a reportagem é hoje igual à de há 20 anos, recordando uma reunião com o então ministro da Administração Interna António Costa, que foi alertado para a infiltração da extrema-direita na Polícia.
“As polícias do Estado estão mais entretidas e preocupadas com os ‘rapper’ e o hip-hop do que saber que isto existe”, criticou o dirigente, referindo-se ao Relatório Anual de Segurança Interna, que este ano faz uma correlação entre a criminalidade violenta dentro de grupos juvenis e gangues com um determinado estilo musical.
José Falcão assumiu estar revoltado com estas situações já desde há muitos anos, lembrando que ele próprio foi condenado por difamação de um juiz no contexto de um julgamento de um polícia pela morte de um ativista do bairro da Bela Vista, em Setúbal.
O dirigente da SOS Racismo afirmou que “é por causa destas coisas” que a associação afirma que “há um racismo estrutural” e defendeu que todos os elementos das forças de segurança identificados deveriam ser “corridos do sítio onde estão” e não voltar a integrar forças policiais como a PSP ou a GNR.
José Falcão lamentou ainda que a extrema-direita possa “dizer o que quiser”, quando o ativista Mamadou Ba, que é também dirigente da SOS Racismo, está a ser julgado por difamação, num processo movido pelo ex-líder dos Hammerskins Portugal, um grupo supremacista branco, Mário Machado.
Queixa foi apresentada pelo SOS Racismo por xenofobia.
Uma publicação divulgada a 26 de outubro num grupo de professores no Facebook levou a uma denúncia do movimento SOS Racismo à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR).
A frase "Evite levar na tola, leve um sapo para a escola" acompanhada por uma imagem do anfíbio dividiu opiniões no grupo "professores contratados". Se por um lado muitos dos integrantes olharam para a publicação com humor ou uma forma de se solidarizarem com a professora da Figueira da Foz vítima de agressões, outros docentes consideraram a situação promotora de "discurso de ódio contra minorias étnicas". A publicação, com 400 reações favoráveis, acabou por não ser retirada e desencadeou uma maior indignação junto de alguns professores, levando à denúncia por um deles.
Sobre a situação, o fundador e membro da direção do SOS Racismo, José Falcão defende que o facto de "serem professores devia ser uma agravante". "É absolutamente incrível que se passe a vida a desvalorizar a discriminação racial", acrescentou. No entanto, José Falcão esclareceu ao JN que sempre que forem denunciadas queixas deste teor serão encaminhadas para a CICDR. "Desde 1996 que defendemos a discriminalização dos atos de discriminação racional, mas o Parlamento nunca aceitou a nossa proposta", adiantou.
Joana Gorjão Henriques (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia), in Público online
O psicólogo social Rupert Brown vem abrir esta quinta-feira, às 14h30, o ano académico do Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa, com palestra sobre discurso de ódio e efeitos nas vítimas indirectas.
Professor emérito de Psicologia Social na Universidade de Sussex, investigador que escreveu dezenas de artigos em áreas como as relações interpessoais ou o preconceito, Rupert Brown está em Lisboa para a palestra Sedas Nunes, no Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa, que irá abrir o ano académico às 14h30. O autor dos livros Prejudice: Its Social Psychology ou Group Processes: dynamics within and between groups, e de uma biografia sobre o psicólogo social Henri Tajfel: explorer of identity and differences vai falar sobre os efeitos indirectos dos crimes de ódio, algo que “não tem sido tão explorado” — ou seja, das pessoas que são do mesmo grupo identitário que as vítimas directas de crime que não foram directamente atacadas.
Em entrevista ao PÚBLICO na quarta-feira, em Lisboa, explica que nos crimes de ódio o que está em causa — tanto em relação às vítimas, quanto aos agressores — são as identidades de grupo: de um grupo minoritário, no caso das vítimas, e de um grupo maioritário, no dos agressores. Quando cometem o crime, estes agressores vêem-se como membros de um grupo maior a tentar defender a maioria contra minorias, sublinha. “Nesse momento não estão a agir como indivíduos mas como membros de um grupo. Essa foi a contribuição mais importante de Tajfel.”
No Reino Unido e em Portugal há legislação para punir quem comete crimes de ódio de acordo com as características das pessoas, da religião à origem étnica e racial ou à orientação sexual. Mas em Portugal não tem sido muito eficaz, há poucas condenações — como é que se torna mais eficaz a lei? Tive acesso a algumas estatísticas portuguesas e uma das coisas em comum com o Reino Unido é o facto de os números estarem a subir. O que é muito diferente são os números de crimes de ódio registados pela polícia [que em Portugal eram cento e pouco] e no Reino Unidos eram 120.000. Temos mais população, mas há diferença na forma como a polícia encara a seriedade do crime de ódio.
Desde o assassinato, nos anos 1990, do jovem negro Stephen Lawrence houve uma sucessão de mudanças a nível político e da polícia para que se passasse a tomar estas ofensas a sério, reconhecendo que as pessoas são atingidas por causa da pertença a um grupo, seja a cor da sua pele, a religião ou a orientação sexual. Em relação à legislação isto significa que, se alguém for condenado por um crime de ódio, a sentença é agravada. A lei foi criada por várias razões, para desencorajar, mas, mais importante, para reconhecer que este país leva o crime de ódio a sério — simbolicamente, passa a mensagem de que este tipo de crimes merece atenção especial.
Isto leva a outra questão que desenvolve: quando as pessoas em posição de liderança expressam a sua condenação de comportamentos de ódio, isso tem um efeito positivo na dissuasão... Sim, cria uma nova norma em que este tipo de crimes são vistos como ofensivos e graves.
Se tivermos pessoas em lugares de autoridade a tomar posições fortes contra a imigração ou contra grupos minoritários, claro que tem efeitos e que as pessoas no terreno vão sentir-se mais legitimadas a agir, partindo dos seus sentimentos negativos já existentes, contra grupos minoritários Partilhar citaçãoPartilhar no Facebook Partilhar no Twitter
E em relação a líderes que, pelo contrário, expressam ódio e discriminam determinados grupos? Tem obviamente o efeito oposto. É por isso que olhamos para o crime de ódio não apenas do ponto de vista dos agressores ou de algumas pessoas psicopatas; temos de perceber que, quando acontece em determinado contexto político, e que quando os partidos da extrema-direita estão em ascensão, isso cria uma espécie de influência contranormativa, contra as instituições e contra as leis. Se tivermos pessoas em lugares de autoridade a tomar posições fortes contra a imigração ou contra grupos minoritários, claro que tem efeitos e que as pessoas no terreno vão sentir-se mais legitimadas a agir, partindo dos seus sentimentos negativos já existentes, contra grupos minoritários.
Quais as consequências de ter essas pessoas a expressar de forma tão aberta o ódio e o preconceito? Aumenta o número de ataques ou de pessoas que são abertamente discriminatórias? É difícil fazer uma associação directa, mas podemos ver algumas conexões. Por exemplo, há seis anos o Reino Unido decidiu sair da União Europeia e isso foi estimulado por alguns políticos que estavam a fazer campanha anti-imigração. Especialmente nos dias seguintes aos resultados do referendo vimos uma subida acentuada dos ataques, e particularmente em relação a imigrantes do Leste — a grande fonte de imigração para o Reino Unido —, que eram vistos como uma ameaça específica. Aos olhos desses agressores, 52% das pessoas do país pensavam como eles — o que obviamente não era verdade, porque os motivos para o “Brexit” foram vários.
Defende que a pesquisa reforça os argumentos morais e legais para tratar o crime de ódio como uma categoria especial e que os tribunais deviam levar em conta não apenas o impacto na vítima, mas também na comunidade. Isto implica uma mudança de mentalidade no sistema judicial, assim como na comunidade maioritária e até nas vítimas. Como se pode fazer esta mudança? Isso é um grande debate que temos no sistema judicial, mas vai à questão sobre o porquê de o crime do ódio ser considerado tão sério. Quando alguém é atacado por causa da sua religião [ou outra das características], pode passar por algum trauma, mas os efeitos psicológicos de ter sido atacado por ódio duram mais e são mais graves do que num crime equivalente aleatório. Os efeitos sentem-se de forma mais ampla na comunidade a que a pessoa pertence — as pessoas vão sentir mais medo, preocupação sobre se serão os próximos.
No sistema judicial britânico, depois de o arguido ter sido condenado, há a possibilidade de a vítima ir ao tribunal e dizer quanto foi afectada por aquele crime. E porque o crime de ódio tem estes efeitos a sugestão é que os líderes — sejam imãs, líderes de grupos LGBT+ ou outros — possam ir a tribunal dizer quais os efeitos na comunidade. Isso é o reconhecimento de que o crime de ódio é mais do que um ataque individual, tem este impacto maior na comunidade.
Diz que enquanto ser vítima de um crime causa danos psicológicos, ser vítima de um crime de ódio leva a maiores níveis de stress. Isto, porque os crimes de ódio têm como alvo as identidades decisivas das pessoas e fazem-nas saber que não são toleradas. Pode explicar como isto afecta a saúde mental e pode levar à internalização do preconceito? Ser vítima de um crime afecta a nossa autonomia, e sentimentos de segurança e isso já é mau de mais — mesmo que seja uma ofensa verbal (por exemplo, as mulheres estão constantemente a ser vítimas de ofensas). Quando se é atacado, porque se é muçulmano, ou gay, ou negro ou judeu, o agressor ataca não apenas o sentimento de autonomia e individualidade e a vítima sente que a sua identidade, a sua identidade social como gay ou muçulmano está sob ameaça — “Se calhar não são apenas estes, mas há outros que nos odeiam”, pensam. É o “nós” e não apenas o “eu”. Para muitos membros destas comunidades, este aspecto é central à sua identidade — nem sempre — e pode ser sublinhada pelo ataque, mas é uma identidade que está sob ameaça, porque podia ser qualquer um da comunidade o alvo do ataque. Isso faz com que o crime de ódio seja duplamente duro e que o trauma seja mais duradouro por não ser apenas a identidade pessoal que está ameaçada, mas a identidade social mais vasta. Há alguns exemplos extremos em que a pessoa mais comum pode cometer estes actos horrendos, mas diria que em tempos normais têm de existir estes padrões de predisposição
Os efeitos no grupo são similares? Não vou dizer que a vítima indirecta sofre o mesmo que a vítima directa — ser-se agredido na rua não se pode comparar a ter-se visto alguém ser agredido. Mas o que é interessante na nossa pesquisa, quando conseguimos localizar pessoas que foram atacadas e pessoas que nunca foram atacadas mas souberam de quem foi e perguntamos sobre os seus sentimentos, é que é difícil fazer uma distinção entre os dois grupos quanto aos níveis de zanga e medo que sentiam. Pelo menos psicologicamente tem efeitos semelhantes; e quando percebemos como se sentiam e as atitudes em relação à polícia ou ao governo ou o que pretendem fazer no futuro — andar livremente na rua, depois de anoitecer, ou dar as mãos ao parceiro —, sentimos semelhanças entre as vítimas indirectas e directas. Constatámos isto ao longo do tempo.
E o apoio psicológico deve ser o mesmo? É difícil, porque, se pensarmos em vítimas indirectas, podem existir milhões — por exemplo, no assassinato de Stephen Lawrence houve um efeito na família brutal —, mas como pode dar-se apoio psicológico aos milhões de outras pessoas negras?
Quando alguém de um grupo maioritário comete um crime, é descrito como um indivíduo; quando é de um grupo minoritário, passa a ser o seu grupo. Porque é que isso acontece? Boa pergunta, não tenho a certeza. Acho que tem que ver com a segurança de se estar numa posição de poder e de vantagem — a identidade como membro da maioria não é questionada, nem trazida para o debate, a não ser em determinadas circunstâncias. Como indivíduos de um grupo maioritário, não somos forçados a confrontar-nos com a nossa identidade maior.
Diz que as pessoas que cometem crimes de ódio não precisam de ser fanáticas. E lista quatro motivações para os comportamentos de ódio: a excitação com a ofensa, a reacção ao que encaram como defesa de território, a retaliação e, em menor número, uma missão ideológica de repulsa. As pessoas normais podem ser agressoras com base no ódio? Em algumas circunstâncias não habituais, sim — e o exemplo óbvio é a Alemanha nazi, quando muitos milhões de alemães, que não eram de maneira nenhuma monstros psicopatas, estavam rodeados de um regime opressivo. Passou a ser completamente normalizado que os membros da comunidade judaica, pessoas com problemas mentais, e outras fossem vistas como não-pessoas. Houve um debate histórico sobre a extensão do envolvimento de alemães comuns nas atrocidades nazis, mas não há dúvida de que muitos alemães cometeram crimes. Há outros exemplos, como no Ruanda.
Há alguns exemplos extremos, em que a pessoa mais comum pode cometer estes actos horrendos, mas diria que em tempos normais têm de existir estes padrões de predisposição. Por exemplo, os que procuram a excitação: nem todos os jovens brancos vão cometer estes actos; mas sabemos que há pessoas que gostam de cometer estes actos por excitação e se combinarmos isto com outros factores, como o sentimento de que têm que defender o seu território… Depois há a minoria dos que professam a ideologia de ódio, mas que, infelizmente, têm uma influência maior do que o seu número, porque os meios para propagar o ódio estão tão disponíveis para tanta gente nas redes sociais... Um dos projectos que temos é o de olhar para os tweets de ódio, e vemos os altos e baixos de acordo com os acontecimentos. Por exemplo, depois dos ataques em Paris, houve uma subida enorme dos tweets de ódio a muçulmanos. Embora [estes ideólogos] sejam uma pequena fracção dos perpetradores de crimes de ódio, a sua capacidade para criar um clima hostil pode ter muita influência. Agora com as redes sociais há este efeito acelerador de autopropagação em que as pessoas depois se sentem legitimadas. As emoções dominantes são a raiva que sentem as pessoas que são atacadas por mais nenhuma razão do que pertencer a um grupo (e isto é válido para quem é vítima directa ou indirecta); a outra é o medo
Como é que nesse aspecto a análise do crime de ódio teve de se ajustar à maior difusão do discurso de pessoas que se escondem atrás de falsos perfis? Complexifica a análise. Fizemos um projecto em que tivemos de correlacionar o número de tweets depois de um evento específico com a proporção de tweets de ódio e parecia haver conexão; também correlacionámos isso com os registos pela polícia de crimes de ódio. Não é implausível pensar que a propagação deste discurso online de ódio leva a incidentes reais, mas é muito complicado perceber o que vem primeiro.
Refere que as emoções e comportamentos podem ser um reflexo da natureza hierárquica da sociedade e que os grupos dominantes em posição de poder vão defender aquilo que acreditam ser o modo adequado de estar em sociedade contra os valores de quem percepcionam como diferentes. O sentimento de superioridade numa esfera — ser branco, por exemplo — é suficiente para desencadear estas emoções? Há pessoas brancas e pobres que se podem sentir superiores a uma pessoa negra e rica. É uma questão interessante. Há algum debate sobre o que chamamos “identidades sobrepostas” ou “transversais” e torna-se complicado. Diria que em geral, quando se tem identidades sobrepostas, há possibilidade de alianças — por exemplo, há mais crimes contra mulheres negras do que brancas, mas há a possibilidade de que as mulheres brancas formem uma aliança com as mulheres negras, porque têm a categoria partilhada de serem mulheres e poderem ser também alvo de misoginia. Também pode ir em sentido contrário — os homens brancos podem ser duplamente discriminatórios em relação a mulheres negras, porque não partilham nenhuma das características de género e raciais. Em situações especialmente perigosas, há essa possibilidade de dupla exclusão. É complicado, às vezes, ir apenas à pertença de grupo. Por exemplo, a ministra do Interior britânica, Suella Braverman, é de origem minoritária, podemos celebrar isso, mas, quando fez o seu discurso ao Partido Conservador, usou esta frase de Martin Luther King: “Tenho um sonho.” O sonho era o de que todos os imigrantes ilegais fossem postos num avião para o Ruanda... Neste caso, a sua ideologia política assumiu muito mais importância do que a cor da sua pele.
As pessoas reagem de formas diferentes aos abusos — pode descrever as mais comuns? As emoções dominantes são a raiva que sentem as pessoas que são atacadas por mais nenhuma razão do que pertencer a um grupo (e isto é válido para quem é vítima directa ou indirecta); a outra é o medo e, dependendo da situação, pode sentir mais medo do que raiva, pois a pessoa sabe que está em minoria e pode reagir a esse medo fechando-se, escondendo a sua identidade de grupo. A raiva conecta-se com o que se sente ser possível fazer de positivo, como contestar, pertencer a grupos activistas, ou juntar-se a aulas de autodefesa.
O que é que a comunidade maioritária deveria fazer para reparar os efeitos do crime de ódio? É complicado. Para usar um exemplo histórico de culpa colectiva, e de como pode gerar movimentos colectivos para reparação e restituição: Portugal, como o Reino Unido, foi um país que escravizou, os dois foram colonizadores, abusaram. Atrocidades foram cometidas. Hoje em dia, a maioria das pessoas reconhece os horrores do comércio de escravos e muitas aceitam que há motivos para fazer algumas restituições a descendentes de escravos, que muitas das desvantagens prolongaram-se ao longo da história. O argumento mais complicado, que tem tido resistência dos governos, porque reconhecem as dificuldades financeiras e de tensão, é dizer que algumas comunidades deveriam ter vantagens económicas para as compensar de muitas injustiças.
Como maioria podemos sentir a culpa colectiva que faz com que pressionemos os legisladores e os agentes de autoridade e outros a criarem um ambiente em que existam menos crimes de ódio, mas não temos uma poção mágica.
Se dependesse do Ministério Público e do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, Fátima Bonifácio poderia escrever todos os dias que "negros e ciganos são inassimiláveis" e "nada têm a ver connosco", porque "é uma opinião", e a opinião "está protegida pelo direito à liberdade de expressão".
Soube-se há dias que a socióloga Fátima Bonifácio foi pronunciada pelo crime descrito no artigo 240º do Código Penal, "Discriminação e incitamento ao ódio e violência".
Este tipo criminal prescreve pena de seis meses a cinco anos de prisão para quem "publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade", "difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica."
É esta a ofensa pela qual está pronunciada, por via de um seu texto de opinião no Público, a 6 de julho de 2019, no qual se leem frases como "africanos e ciganos não descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789 (...), não fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade"; "os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis (...). É só ver o modo disfuncional como se comportam nos supermercados (...). É só ver como desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral (...)"; " Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou "nacionalidades" rivais (...)"; "O que temos nós a ver com este mundo? Nada. O que tem o deles a ver com o nosso? Nada".
O "nós" a que a articulista se refere será o dos "lusitanos": a dada altura coloca esta "identidade" em confronto com a de "africanos" e "ciganos". O que é um lusitano Bonifácio não esclarece, como de resto não diz o que é "um africano", mas fica muito claro que se está a referir, mais do que a um local de nascimento, à etnia ou cor de pele - até porque o texto visa combater a proposta de discriminação positiva para minorias etnicorraciais no acesso ao ensino superior.
O crime tipificado no artigo 240º é público, querendo dizer que qualquer pessoa pode apresentar queixa e o Ministério Público pode abrir inquérito mesmo não havendo qualquer participação. Mas neste caso, como na esmagadora maioria daqueles em que o MP poderia, por públicos e notórios, desencadear a ação penal face a indícios de discriminação e/ou discurso de ódio, foi preciso alguém apresentar queixa - fê-lo o SOS Racismo - para que houvesse um processo criminal.
Processo no qual, de resto, o MP decidiu não existir qualquer fundamento. Como se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Julho de 2021, assinado pelos desembargadores João Carrola e Luís Gominho, o acusador público só viu, no texto de Bonifácio, a expressão "do pensamento ou entendimento sobre a integração social de pessoas, ou da falta dela, em resultado da perceção que tem, ou que escolheu ter, para a sustentar", pugnando pelo arquivamento do caso.
"A regra é a de que opiniões, nessa qualidade, não podem ter implicações criminais sob pena de restrição absurda da liberdade de expressão", certificou o juiz de instrução criminal que quis arquivar o caso
Tendo em face disso o SOS Racismo pedido a instrução, deu com um juiz que, tão placidamente como o MP, viu na redação da socióloga "meras opiniões" que por o serem "não extravasam a liberdade de expressão do pensamento, designadamente pela imprensa, na medida em que estes atos integram-se no direito fundamental dos cidadãos a uma informação livre e pluralista, essencial à prática da democracia."
E explica o magistrado em causa: "Qualquer opinião, ainda que tenha o conteúdo que o assistente [SOS Racismo] lhe atribui, não pode, assim, preencher a incriminação em análise neste processo [a do artigo 240º], com vista a permitir a mais ampla expressão de pontos de vista sobre a vida pública. A regra é a de que opiniões, nessa qualidade, não podem ter implicações criminais sob pena de restrição absurda da liberdade de expressão (...)." E, claro está, decidiu arquivar.
Inconformado, o SOS Racismo recorreu desta decisão para a Relação. Instância na qual mais uma vez o MP invocou o direito à liberdade de expressão consagrado na Constituição, na "Declaração Universal dos Direitos do Homem" (sic) e na "Convenção Europeia dos Direitos do Homem" (sic) para, sublinhando ser "uma das manifestações da liberdade de expressão precisamente o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de crítica", considerar que "a divulgação do artigo de opinião" não teve "caráter ofensivo da Honra ou consideração dos visados".
E, passando por cima dessa interessantíssima questão - quem eram "os visados"? -, o MP concluía assim: "A liberdade de expressão da arguida não ultrapassou os limites da proporcionalidade, da adequação e da necessidade, pelo que, não incorreu na prática do denunciado crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência."
Ora, como bem o SOS Racismo expõe no seu recurso, se o direito à liberdade e expressão fosse irrestrito, o artigo 240º não existiria.
Estabelecer, como fizeram o MP e o juiz de instrução, que, porque o direito à opinião existe, todas as opiniões estão dentro do Direito, é uma tautologia infantil que tem para além do mais a virtualidade bizarra de ignorar o que a lei claramente determina.
Como frisa aquela associação antirracista, "o direito à crítica, a expressar uma opinião, uma ideia, não comporta o direito de insultar e de denegrir, de manifestar ódio, intolerância e preconceitos contra determinados grupos, manifestar um pensamento que inferioriza e humilha minorias e indivíduos, que promova a exclusão social."
E isso mesmo (haja alguém com bom senso e conhecedor das leis nos tribunais) diz o acórdão da Relação: "As afirmações feitas pela arguida, porque feitas de uma forma generalizante, dirigem-se a grupos identificados pela etnia, cor de pele ou origem nacional - "africanos" e "ciganos" - e as características que lhe são apontadas traduzem-se em juízos de valor (...)".
Referindo os excertos do texto de Bonifácio já citados neste artigo, os desembargadores sublinham que a "adjetivação generalista não deixa de revelar uma manifestação de uma pretensa inferioridade de 'ciganos' e 'africanos' apresentando-os como inferiores a um outro grupo colocado a uma distância civilizacional e intelectual que partilha de 'crenças', 'códigos de honra' e 'valores' moralmente superiores", e concluem: "Não deixamos de concluir que esta apreciação se apresenta de teor explícito e inequivocamente discriminatório e ofensivo desse grupos identificados como 'ciganos' e 'africanos', estendendo-a a factos que aponta e que se apresentam como lesivos do seu direito à igualdade, à honra e à consideração."
O acórdão ordena assim que o processo regresse à instrução - o que levou à atual pronúncia, agora pelo Tribunal de Instrução de Matosinhos (por uma tecnicalidade, o caso passou para lá).
Veremos agora o que resulta do recurso que a defesa vai apresentar à Relação do Porto, e que dirá aí o Ministério Público. Pode ser que sobrevenha uma iluminação ao procurador a quem calhe o processo e repare que uma coisa é a opinião que cada um tem, necessariamente livre, por mais repugnante, porque se trata de pensamento; outra a respetiva divulgação pública, em relação à qual pode, como no caso da discriminação e do incitamento ao ódio, aplicar-se o Código Penal.
E pode até ser que - a esperança nunca morre - o MP decida finalmente assumir a sua responsabilidade no combate à banalização do discurso de ódio e comece a fazer uso da sua legitimidade de desencadear a ação penal sem esperar por queixas. Se reparar, a mesma Constituição que tanto gosta de citar quanto à liberdade de expressão e de opinião também proíbe a discriminação, consagrando a igualdade.
Campanha alerta para seis tipos de discriminação, como o machismo, o racismo e a homofobia. Todos os internautas são chamados a participar na campanha, através da difusão de mensagens que visam gerar uma reflexão sobre diversos preconceitos
Cinco mensagens de alerta para a discriminação estão a ser amplamente difundidas online, no âmbito de uma campanha lançada pela Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN Portugal). A campanha é exclusivamente direcionada para as redes sociais e encontra-se a mobilizar diversas figuras públicas, que envergam t-shirts com as palavras que dão forma à campanha.
É possível ler mensagens como: “Faziam bem era se fossem trabalhar com ordenados dignos. Se vêm para cá têm é que respeitar e ser respeitados. Toda a gente sabe que o lugar da mulher é onde ela quiser. Vai mas é para a tua terra, aqui não há lugar para o racismo. Se tem algum jeito, uma pessoa ser aquilo que é”.
A campanha alerta assim para seis forma de discriminação: o classismo, xenofobia, machismo, racismo, homofobia e transfobia. Miguel Januário, mentor da campanha, explica que esta é uma forma de “defender um discurso humano, digno e com algum humor, com o objetivo de desarmar a futilidade com que muitas dessas ofensas são proferidas, provocando uma reflexão crítica sobre esses preconceitos”.
Com um âmbito nacional, a campanha contra o discurso do ódio tem como lema “O discurso de ódio não é argumento”, sendo difundida com as hastags “Dar a volta ao texto” e “EAPN”. A campanha foi lançada terça-feira, 6 de abril, no contexto da oitava edição da Semana da Interculturalidade, que está a decorrer até ao próximo domingo, dia 11. Todas as pessoas são convidadas a aderir à campanha, através da difusão destas mensagens. “Não hesite. Junte-se a nós neste combate ao preconceito”, apela a EAPN
Quando se dá a volta ao texto, uma frase ofensiva pode tornar-se num grito de guerra, numa reivindicação. "Vai mas é para a tua terra?" Pode ser complementada com: "Aqui não há lugar para o racismo". "Faziam bem se fossem trabalhar"? Com "salários dignos". É o que a European Anti Poverty Network (EAPN) Portugal está a fazer, com a campanha "O Discurso de Ódio não é Argumento", que se insere no âmbito da Semana da Interculturalidade — a sexta edição organizada pela EAPN.
"Começamos a perceber que as questões do discurso de ódio têm vindo a ganhar muito espaço e achamos que seria importante organizar uma campanha contra ele", contextualiza Sandra Araújo, directora executiva da EAPN Portugal. Por isso, convidaram o criativo Miguel Januário para "pegar em algumas narrativas e ideias estereotipadas, frases típicas de discurso de ódio e tentar contra-argumentar com algum sentido de humor".
Nasceu assim uma campanha para alertar para diferentes tipos de discriminação e desconstruir frases feitas, que está a ser, desde esta terça-feira, amplamente divulgada nas redes sociais com a hashtag #Daravoltaaotexto. O escritor Valter Hugo Mãe, Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade e Surma são algumas das personalidades que vestiram (literalmente) a camisola da campanha — que também imprimiu as frases em t-shirts. Apesar de não estar previsto inicialmente, vão ser feitas t-shirts para venda. Os interessados devem enviar email para a EAPN (geral@eapn.pt) e indicar qual a frase que pretendem. Todas elas "simples, mas que fazem parte do nosso quotidiano e nos dizem muito".
Notícia actualizada às 18h07 de 6 de Abril de 2021: foram acrescentadas declarações de Sandra Araújo ao P3.
Várias figuras públicas nacionais já vestiram a camisola pela iniciativa promovida pela EAPN Portugal.
A associação sem fins lucrativos EAPN Portugal lançou, esta terça-feira, uma campanha nacional contra o discurso de ódio, sob o lema 'O Discurso de Ódio não é Argumento'.
Em comunicado, a organização explica que a iniciativa tem como objetivo alertar para diferentes tipos de discriminação.
"[A campanha visa] defender um discurso humano, digno e com algum humor, com o objetivo de desarmar a futilidade com que muitas dessas ofensas são proferidas, provocando uma reflexão critica sobre esses preconceitos", esclarece Miguel Januário, mentor da campanha direcionada para as redes sociais.
A iniciativa conta com cinco mensagens: "Faziam bem era se fossem trabalhar. Com ordenados dignos"; ´ "Se tem algum jeito, uma pessoa ser aquilo que é"; "Vai mas é para a tua terra, aqui não há lugar para o racismo"; "Se vêm para cá têm é que respeitar e ser respeitados"; "Toda a gente sabe que o lugar da mulher é onde ela quiser".
A ação de sensibilização também conta com o apoio de algumas figuras públicas que, "literalmente", aceitaram vestir "esta camisola e lançar a mensagem na sua própria rede social para que chegue ao maior número de pessoas".
A secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade Rosa Monteiro, o músico Carlão, o apresentador Jorge Gabriel e a artista Capicua, foram algumas das personalidades que já aderiram à campanha.
A EAPN Portugal representa a European Anti Poverty Network (EAPN), desde a sua fundação, em 1990. A EAPN é uma associação sem fins lucrativos (ASBL), sediada em Bruxelas, estando representada em cada um dos estados-membro da União Europeia, por Redes Nacionais.
Selma Uamusse, Gisela João e Carlão, entre outros, vestiram as t-shirts de uma campanha contra o racismo e o discurso de ódio intitulada “Dar a Volta ao Texto”, que mostra mensagens como “Toda a gente sabe que o lugar da mulher é - onde ela quiser” ou “Vai mas é para a tua terra - aqui não há lugar para o racismo”
Vários músicos portugueses associaram-se a uma nova campanha contra o racismo e o discurso de ódio, partilhando fotos suas com t-shirts dessa mesma iniciativa.
Nas mesmas, é possível ler frases habitualmente conotadas com o preconceito, completadas em sentido contrário (exemplo: "Toda a gente sabe que o lugar da mulher é - onde ela quiser" ou "Vai mas é para a tua terra - aqui não há lugar para o racismo").
Veja aqui o exemplo de algumas dessas t-shirts, envergadas por Selma Uamusse, Carlão, Gisela João, Surma ou Capicua.
Pode ver mais exemplos de t-shirts da campanha Dar a Volta ao Texto, uma ação da EAPN/Rede Europeia Anti-Pobreza, aqui.