20.4.22

A justiça e o direito à divulgação racista

Fernanda Câncio, opinião, in DN

Se dependesse do Ministério Público e do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, Fátima Bonifácio poderia escrever todos os dias que "negros e ciganos são inassimiláveis" e "nada têm a ver connosco", porque "é uma opinião", e a opinião "está protegida pelo direito à liberdade de expressão".

Soube-se há dias que a socióloga Fátima Bonifácio foi pronunciada pelo crime descrito no artigo 240º do Código Penal, "Discriminação e incitamento ao ódio e violência".

Este tipo criminal prescreve pena de seis meses a cinco anos de prisão para quem "publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade", "difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica."

É esta a ofensa pela qual está pronunciada, por via de um seu texto de opinião no Público, a 6 de julho de 2019, no qual se leem frases como "africanos e ciganos não descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789 (...), não fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade"; "os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis (...). É só ver o modo disfuncional como se comportam nos supermercados (...). É só ver como desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral (...)"; " Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou "nacionalidades" rivais (...)"; "O que temos nós a ver com este mundo? Nada. O que tem o deles a ver com o nosso? Nada".

O "nós" a que a articulista se refere será o dos "lusitanos": a dada altura coloca esta "identidade" em confronto com a de "africanos" e "ciganos". O que é um lusitano Bonifácio não esclarece, como de resto não diz o que é "um africano", mas fica muito claro que se está a referir, mais do que a um local de nascimento, à etnia ou cor de pele - até porque o texto visa combater a proposta de discriminação positiva para minorias etnicorraciais no acesso ao ensino superior.

O crime tipificado no artigo 240º é público, querendo dizer que qualquer pessoa pode apresentar queixa e o Ministério Público pode abrir inquérito mesmo não havendo qualquer participação. Mas neste caso, como na esmagadora maioria daqueles em que o MP poderia, por públicos e notórios, desencadear a ação penal face a indícios de discriminação e/ou discurso de ódio, foi preciso alguém apresentar queixa - fê-lo o SOS Racismo - para que houvesse um processo criminal.

Processo no qual, de resto, o MP decidiu não existir qualquer fundamento. Como se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Julho de 2021, assinado pelos desembargadores João Carrola e Luís Gominho, o acusador público só viu, no texto de Bonifácio, a expressão "do pensamento ou entendimento sobre a integração social de pessoas, ou da falta dela, em resultado da perceção que tem, ou que escolheu ter, para a sustentar", pugnando pelo arquivamento do caso.

"A regra é a de que opiniões, nessa qualidade, não podem ter implicações criminais sob pena de restrição absurda da liberdade de expressão", certificou o juiz de instrução criminal que quis arquivar o caso

Tendo em face disso o SOS Racismo pedido a instrução, deu com um juiz que, tão placidamente como o MP, viu na redação da socióloga "meras opiniões" que por o serem "não extravasam a liberdade de expressão do pensamento, designadamente pela imprensa, na medida em que estes atos integram-se no direito fundamental dos cidadãos a uma informação livre e pluralista, essencial à prática da democracia."

E explica o magistrado em causa: "Qualquer opinião, ainda que tenha o conteúdo que o assistente [SOS Racismo] lhe atribui, não pode, assim, preencher a incriminação em análise neste processo [a do artigo 240º], com vista a permitir a mais ampla expressão de pontos de vista sobre a vida pública. A regra é a de que opiniões, nessa qualidade, não podem ter implicações criminais sob pena de restrição absurda da liberdade de expressão (...)." E, claro está, decidiu arquivar.

Inconformado, o SOS Racismo recorreu desta decisão para a Relação. Instância na qual mais uma vez o MP invocou o direito à liberdade de expressão consagrado na Constituição, na "Declaração Universal dos Direitos do Homem" (sic) e na "Convenção Europeia dos Direitos do Homem" (sic) para, sublinhando ser "uma das manifestações da liberdade de expressão precisamente o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de crítica", considerar que "a divulgação do artigo de opinião" não teve "caráter ofensivo da Honra ou consideração dos visados".

E, passando por cima dessa interessantíssima questão - quem eram "os visados"? -, o MP concluía assim: "A liberdade de expressão da arguida não ultrapassou os limites da proporcionalidade, da adequação e da necessidade, pelo que, não incorreu na prática do denunciado crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência."


Ora, como bem o SOS Racismo expõe no seu recurso, se o direito à liberdade e expressão fosse irrestrito, o artigo 240º não existiria.

Estabelecer, como fizeram o MP e o juiz de instrução, que, porque o direito à opinião existe, todas as opiniões estão dentro do Direito, é uma tautologia infantil que tem para além do mais a virtualidade bizarra de ignorar o que a lei claramente determina.

Como frisa aquela associação antirracista, "o direito à crítica, a expressar uma opinião, uma ideia, não comporta o direito de insultar e de denegrir, de manifestar ódio, intolerância e preconceitos contra determinados grupos, manifestar um pensamento que inferioriza e humilha minorias e indivíduos, que promova a exclusão social."

E isso mesmo (haja alguém com bom senso e conhecedor das leis nos tribunais) diz o acórdão da Relação: "As afirmações feitas pela arguida, porque feitas de uma forma generalizante, dirigem-se a grupos identificados pela etnia, cor de pele ou origem nacional - "africanos" e "ciganos" - e as características que lhe são apontadas traduzem-se em juízos de valor (...)".

Referindo os excertos do texto de Bonifácio já citados neste artigo, os desembargadores sublinham que a "adjetivação generalista não deixa de revelar uma manifestação de uma pretensa inferioridade de 'ciganos' e 'africanos' apresentando-os como inferiores a um outro grupo colocado a uma distância civilizacional e intelectual que partilha de 'crenças', 'códigos de honra' e 'valores' moralmente superiores", e concluem: "Não deixamos de concluir que esta apreciação se apresenta de teor explícito e inequivocamente discriminatório e ofensivo desse grupos identificados como 'ciganos' e 'africanos', estendendo-a a factos que aponta e que se apresentam como lesivos do seu direito à igualdade, à honra e à consideração."

O acórdão ordena assim que o processo regresse à instrução - o que levou à atual pronúncia, agora pelo Tribunal de Instrução de Matosinhos (por uma tecnicalidade, o caso passou para lá).

Veremos agora o que resulta do recurso que a defesa vai apresentar à Relação do Porto, e que dirá aí o Ministério Público. Pode ser que sobrevenha uma iluminação ao procurador a quem calhe o processo e repare que uma coisa é a opinião que cada um tem, necessariamente livre, por mais repugnante, porque se trata de pensamento; outra a respetiva divulgação pública, em relação à qual pode, como no caso da discriminação e do incitamento ao ódio, aplicar-se o Código Penal.

E pode até ser que - a esperança nunca morre - o MP decida finalmente assumir a sua responsabilidade no combate à banalização do discurso de ódio e comece a fazer uso da sua legitimidade de desencadear a ação penal sem esperar por queixas. Se reparar, a mesma Constituição que tanto gosta de citar quanto à liberdade de expressão e de opinião também proíbe a discriminação, consagrando a igualdade.