Mais de um mês após o começo da Guerra na Ucrânia e com mais de 30 mil ucranianos chegados a Portugal, André Costa Jorge, diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) e coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), diz que há famílias que se disponibilizaram para acolher que já desejam a saída dos acolhidos
Não teme que a mobilização da sociedade civil na ajuda aos ucranianos e à Ucrânia seja temporária?
Todos os gestos solidários também partem de uma procura de nós próprios. A solidariedade parte sempre de um desejo de satisfação. As pessoas disponibilizaram-se para o acolhimento, voluntariado ou envio de coisas. Alguns dos gestos foram mal pensados e imediatistas. Mas são maus? Não. São é apenas em bruto e precisam de ser lapidados e melhorados. Ainda assim prefiro isso do que a indiferença. Um boom de solidariedade caótica é sempre muito melhor do que a indiferença.
A ausência do Estado ou de uma entidade que regule o acolhimento de pessoas não pode trazer problemas piores depois? Há dias, no Expresso, noticiámos que já há redes de tráfico que se aproveitam.
As pessoas bem formadas e intencionadas podem fazer disparates, mas são coisas técnicas. O problema são as mal-intencionadas. A culpa não pode ser daqueles que vão fazer o bem. A culpa é sempre daqueles que não garantiram o devido controlo, que não tem de ser um estrangulamento ou burocratização do processo. Mas é preciso garantir a proteção. Por exemplo, desde o começo deveria ter havido orientações claras de como se devia proceder caso fossem detetados menores desacompanhados. O Estado não devia ter permitido que fossem feitas publicações como: "Se gostava de receber um menor não acompanhado inscreva-se neste sítio”. A Segurança Social estava com esta campanha. Isto foi feito tudo feito de forma publicitada, pareceu um leilão.
As pessoas que acolhem têm de estar disponíveis para esse tipo de vida. Ou vivem bem com isso, ou, se não vivem, o melhor é não acolher
Quem se disponibilizou para ser família de acolhimento tem consciência que não são apenas meia dúzia de semanas?
Já há alguns contactos de pessoas que receberam ucranianos e perguntam quando é que isto vai acabar. Não falar a mesma língua dificulta muito, porque a comunicação é muito básica e limitada. Eu acredito que a experiência da hospitalidade não é algo que todos possam fazer. Recomendo apenas a pessoas que têm perfil. Muitas das instituições que fazem o acolhimento passaram as famílias para o acolhimento de particulares sem que houvesse uma clareza no acordo de acolhimento entre a entidade do Estado que entregou a família e quem acolhe. Temos de ter consciência que as pessoas vão estar em casa, com liberdade para entrar e sair, que vão usar a cozinha e a máquina de lavar a roupa. As pessoas que acolhem têm de estar disponíveis para esse tipo de vida. Ou vivem bem com isso, ou, se não vivem, o melhor é não acolher. Não vão para o inferno por causa disso.
O processo de pedido de asilo e integração de refugiados, vindos do Afeganistão ou da Síria, foi de alguma forma prejudicado devido ao acolhimento dos ucranianos?
Tanto quanto sei não, até porque não são os mesmos mecanismos. Aliás, uma das razões para haver um mecanismo específico para esta população tem a ver, por um lado, com a agilização de processos e, por outro lado, de forma a tornar os ucranianos muito próximos de imigrantes que estão disponíveis para entrar no mercado de trabalho. E, finalmente, para não entupir os processos de asilo. Já são lentos com mil pessoas, que seria com 30 mil? A proposta pública do Estado é inteligente porque não entope os processos internos de resposta aos cidadãos, mas também porque para a opinião pública fica a ideia que as pessoas têm tudo quando isso não é verdade. As pessoas têm tudo para se autonomizarem, mas faltam algumas dimensões de base que só vêm com o tempo: a estabilização psicológica, a aprendizagem da língua do país de acolhimento e os apoios sociais que lhes permitem não estar numa situação de precariedade financeira. Nada disto foi garantido, foi atirado para um papel e depois logo se vê. Os ucranianos não foram considerados refugiados. O que está na base daquilo que define um refugiado é a sua condição de vulnerabilidade, que se verifica nestes casos. E vemos é que não há um apoio correspondente por parte do Estado a estas pessoas. Há uma agilização de processos que permite que as pessoas acedam ao mercado de trabalho e possam abrir uma conta bancária, mas isso não responde ao seu lugar social de pessoas vítimas de um acontecimento traumático brutal e causa grande vulnerabilidade. Não é uma crítica a que os processos sejam rápidos, é uma crítica a que fiquem apenas pelo pacote básico, deixando a tarefa de acompanhamento e suporte destes casos apenas nas mãos da sociedade civil.
Conheço as instituições em causa e acho que sim, que algumas são de pessoas próximas à Rússia
Todas as portas estão abertas, mas as ferramentas para as passar não estão disponíveis?
Sim. Se estas pessoas são refugiadas deviam ter — e têm — direito a um conjunto de apoios específicos das pessoas refugiadas. O estatuto de refugiado, tal como a lei prevê, reconhece um determinado grau de vulnerabilidade, não é preciso estar sempre a repetir que ser refugiado é estar psicologicamente mais frágil. Um imigrante conhece também processos de privação e abuso, mas a natureza do impacto é diferente. É verdade que encontramos muitas pessoas imigrantes numa situação de vulnerabilidade social e psicológica grave. Mas, em regra, as pessoas migrantes vulneráveis em Portugal são sobretudo aquelas que migram de forma precária, colocando-se numa situação social complexa, sujeitas a todo o tipo de trabalhos mal pagos e abuso — como em Odemira, por exemplo. Mas podem sempre regressar ao país de origem sem correr perigo de vida. Apesar de tudo, é importante fazermos essa distinção: alguém que tem que fugir, perde tudo e é deslocado à força é sempre mais vulnerável do que alguém que um dia tomou a decisão difícil e planeou sair do país de origem para ir procurar melhores condições de vida. Isso é duro e o processo muitas vezes também é violento, sobretudo no itinerário, que nem sempre é possível fazer de forma segura e legal. Muitas vezes as não estão em melhores condições que um refugiado. Mas, num sentido linear, as pessoas refugiadas sofreram todo o tipo de privação e acontecimentos traumáticos que vão marcá-las para o resto do processo.
Foram denunciados casos de instituições de acolhimento de ucranianos em Portugal com ligações à Rússia. Tem conhecimento destes casos?
Conheço as instituições em causa e acho que sim, que algumas são de pessoas próximas à Rússia.
Isso preocupa-o? Pode de alguma forma prejudicar a imagem das instituições de acolhimento?
Acho que quem levantou essas questões tem toda a legitimidade para as levantar. Se entendem que têm razões objetivas para alertar o Estado português de que possa haver alguma influência russa em algumas instituições e que alguns cidadãos ucranianos possam estar a ser indevidamente encaminhados para essas associações, então cabe ao Estado português investigar nos organismos próprios. O alerta que foi feito é bastante claro e não contamina nada nenhuma outra organização. Eu não me sinto minimamente contaminado.