A Música Invisível, que tem a sua estreia este sábado no Festival Política, em Lisboa, documenta as tensões que marcam a produção e a recepção da música criada por um segmento fortemente estigmatizado da sociedade portuguesa.
Quase todas as músicas que irrompem em esferas populares, ligadas a experiências de vida, associadas a microcosmos excludentes, funcionam como marcadores de identidade. Acabam por existir numa tensão – nem sempre desfeita – entre serem aceites, assimiladas e até mercantilizadas ao grande público, ou manterem a senha de resistência.
Vive-se um momento com a música criada pela comunidade cigana portuguesa onde essas tensões são visíveis. Influenciada pelo flamenco, é praticamente invisível, havendo até dificuldade em encará-la simplesmente como música popular portuguesa, apesar de pontuais casos de sucesso (como o recente de Nininho Vaz Maia) e uma aptidão global para o consumo de flamenco, como se tem visto nos últimos anos pela afirmação internacional de vários nomes espanhóis. Uma coisa parece certa: quando forem quebrados estigmas sociais, a relação com a música também se transformará. No interior da comunidade cigana. E sobretudo no todo da sociedade portuguesa.
Os ciganos são portugueses, mas é como se a sua não fosse a nossa música também.” Tiago Pereira, realizador e documentarista
Agora aí está o filme-documentário A Música Invisível, do realizador e documentarista Tiago Pereira, que é exibido este sábado, pelas 18h, no Festival Política, no cinema São Jorge, em Lisboa, e que acaba por expor algumas destas baralhações, mostrando que existe uma estimulante música na margem, como a comunidade que a cria. O filme resulta de 250 vídeos gravados em todo o país, entre 2019 e 2021, que redundaria no projecto A Música Cigana A Gostar Dela Própria, apoiado pelo Alto Comissariado para as Migrações e pela Secretaria para a Cidadania e Igualdade. “Foi a partir dessas gravações, e de outras feitas posteriormente, com actuações de música, danças e curtas entrevistas, que resolvi montar uma média-metragem”, afirma Tiago Pereira, que traça um retrato da música no quotidiano cigano com os testemunhos do músico Armando Cabreiras, ou seja Raspa, ou do guitarrista José Pedro Lima, a operarem como fio condutor.
“Acabam por funcionar como narradores paralelos” reconhece Tiago Pereira. “É curioso porque o Raspa, uma espécie de filósofo da música cigana, e o José Pedro Lima, não cigano, mas que cresceu em Viana do Castelo à beira de um acampamento, tendo, como ele diz, estudado viola e flamenco porque ouvia os ciganos tocar, acabam por coincidir nas mesmas ideias só que de forma diversa. O Raspa diz que em Espanha o flamenco já alcançou o pico, precisando agora de novas ideias, enquanto o José Pedro Lima diz não estar interessado em flamenco puro porque isso é o que toda a gente faz. Interessa-lhe um tipo de flamenco português, capaz de agregar coisas daqui, seja do folclore, ou outras linguagens.”
Resistir à normalização
Várias camadas interpretativas percorrem o documentário: por um lado, a ideia da música de rua, feita por amor de amadores, transmitida de uns para outros em momentos rituais, mas também na distensão do quotidiano que não separa vida e música; e, por outro lado, a questão de por que é que ela é invisível desde sempre. “Mesmo quando pensamos nas recolhas de [Michel] Giacometti ou de Ernesto Veiga de Oliveira percebemos que eles não gravaram os ciganos. Existem milhares de gravações desde os anos 30 em Portugal e nunca ninguém gravou os ciganos. E eles estão cá há 500 anos! Os ciganos são portugueses, mas é como se a sua não fosse a nossa música também.”
“Às tantas a criança diz: ‘Não sei cantar’. E respondem-lhe: ‘Então, tens de ir jogar à bola.’” cortesia tiago pereira Ter uma carreira artística, fazer parte de uma indústria cultural, é a ambição de alguns destes praticantes cortesia tiago pereira
Há uma comunidade viva, que resiste às formatações impostas ao longo dos anos, também através da música e da aprendizagem autodidacta. “Mesmo quando vemos que existem muitos a virar-se para as igrejas evangélicas, percebe-se que a música nunca é abandonada. A música é muito importante para eles, mesmo quando a sociedade os tenta enquadrar numa realidade que lhes é, em grande medida, estranha. É por isso que são continuamente atacados, resistindo a essa normalização.”
A música é muito importante para eles, mesmo quando a sociedade os tenta enquadrar numa realidade que lhes é, em grande medida, estranha." Tiago Pereira, realizador e documentarista
Não é apenas num olhar de fora que se manifestam diferentes perspectivas sobre a música e a realidade ciganas. No interior da própria comunidade subsistem teorias diversas acerca da música. No filme entram músicos amadores e profissionais, crianças e adultos, cantores e guitarristas com diferentes visões, das mais puristas às mais abertas a estímulos exteriores sobre o que é, e o que poderá ser, a música cigana. “Há quem resista a um lado mais comercial da música e do flamenco como são vividos em Espanha, mas ao mesmo tempo vão-se sucedendo as experiências de mistura. É por isso que no filme está lá um rapper e outros que vão trazendo outras batidas e estímulos”, reflecte Tiago Pereira, chamando a atenção para uma cena em que se vê uma criança a cantar, mostrando algumas incertezas. “Às tantas a criança diz: ‘Não sei cantar’. E respondem-lhe: ‘Então, tens de ir jogar à bola.’” É como se o leque de expectativas se resumisse a esses dois vectores. Mas é mais do que isso. “O que a cena mostra é que não existe uma aprendizagem. O que há é o lado autodidacta, o aprender de dentro, através do ouvir. É um aprender interno. Ao mesmo tempo, o filme também mostra esse lado da insistência, do trabalhar, do tentar ir mais longe pelo esforço.”
Ter uma carreira artística, fazer parte de uma indústria cultural, é a ambição de alguns destes praticantes. Com a consciência das dificuldades, que não podem ser dissociadas dos preconceitos sociais. “Existe a noção que aquilo que criam acaba por ser para eles próprios, mas depois falam do Nininho Vaz Maia como alguém que se transformou numa estrela televisiva. Ou seja, se ele conseguiu sair é porque é possível. Mas existe a noção de que é música que não passa, não vai a festivais, não tem espaço. O flamenco é visto sempre como algo de Espanha. É estranho. É como se não existisse flamenco em Portugal.”
Existe a noção de que é música que não passa, não vai a festivais, não tem espaço. O flamenco é visto sempre como algo de Espanha. É estranho. É como se não existisse flamenco em Portugal.” Tiago Pereira, realizador e documentarista
Para já, o filme vai ser exibido este sábado, seguindo-se uma actuação dos Família Gitana com o poeta António Poppe. Depois, será exibido em Braga, a 7 de Maio, com a participação de Raspa, existindo a expectativa que faça o circuito dos festivais e seja projectado em algumas das comunidades ciganas visadas no filme. “No fim de contas, o que gostaria é que a música vingasse por ela própria”, conclui Tiago Pereira, “e que conseguíssemos tratar estas pessoas como músicos, para lá da etnia.”
Ter uma carreira artística, fazer parte de uma indústria cultural, é a ambição de alguns destes praticantes. Com a consciência das dificuldades, que não podem ser dissociadas dos preconceitos sociais. “Existe a noção que aquilo que criam acaba por ser para eles próprios, mas depois falam do Nininho Vaz Maia como alguém que se transformou numa estrela televisiva. Ou seja, se ele conseguiu sair é porque é possível. Mas existe a noção de que é música que não passa, não vai a festivais, não tem espaço. O flamenco é visto sempre como algo de Espanha. É estranho. É como se não existisse flamenco em Portugal.”
Existe a noção de que é música que não passa, não vai a festivais, não tem espaço. O flamenco é visto sempre como algo de Espanha. É estranho. É como se não existisse flamenco em Portugal.” Tiago Pereira, realizador e documentarista
Para já, o filme vai ser exibido este sábado, seguindo-se uma actuação dos Família Gitana com o poeta António Poppe. Depois, será exibido em Braga, a 7 de Maio, com a participação de Raspa, existindo a expectativa que faça o circuito dos festivais e seja projectado em algumas das comunidades ciganas visadas no filme. “No fim de contas, o que gostaria é que a música vingasse por ela própria”, conclui Tiago Pereira, “e que conseguíssemos tratar estas pessoas como músicos, para lá da etnia.”