Carlos M.B. Geraldes, opinião, in Mais Beiras
«A guerra é a origem de todas as coisas e de todas elas é soberana, e a uns ela apresenta-os como deuses, a outros, como homens; de uns ela faz escravos, de outros homens livres»
Que raio de bípede político é este que está sempre em guerra?
Como falar acerca da guerra?
Porquê esta estranha vontade de vida?
Quando questionamos e nos confrontamos com a afirmação inicial de Heraclito (540-470 a.C.), filósofo pré-socrático da Ásia Menor, somos prendados com um modo de vida terreno em que o horizonte mental do género Homo, uma espécie bípede de Homo sapiens, vive numa permanente disposição para a guerra.
Porquê esta nossa estranha vontade de vida, hein?!
Ora, perante o apresentado a questão que no imediato se coloca é saber onde encontrar a decência mental para podermos dar, de forma definitiva, um salto qualitativo para aquilo que todos desejam: o bem-estar físico, mental e espiritual, numa pureza harmoniosa.
Falar de guerra exige não esquecermos os registos escritos, textos ditos fundadores da nossa civilização, dado que o bípede político e a sua imbecil vontade de poder emerge como um ser que vive na indecisão entre o estar em guerra ou no receio de ser efetivamente um bom ser humano. Isto é entre a guerra e a negação conveniente de uma alternativa mais conveniente à sua evolução é como se vivesse num permanente eterno retorno do erro político.
No erro porquê? Em primeiro lugar, é toda uma vontade que vive num impertinente estado de pré-guerra e num incessante desejo de poder, com o intuito de fomentar cultos, interpretá-los, impô-los e estabelecer (híper)ligações que visam único e exclusivamente satisfazer as suas conveniências. É disso exemplo os deuses cultuados pelos povos antigos, independentemente da latitude temporal, e toda a sua narrativa mitológica, veiculadas pelos artefactos, pintura, tradição oral e escrita. No que concerne ao ocidente, sob a influência greco-romana, há deuses (Atena, deusa da sabedoria e da guerra, Hefesto, deus do fogo e das artes manuais, Apolo, deus da luz, da poesia e da música, Ares, deus da guerra, etc) a quem sem a sua devida existência mental não se produziriam vontades violentas. Como prova, tomemos em consideração Homero, Ilíada, Livros Cotovia, Lisboa, 2005, Canto I, 1, um dos textos edificadores do nosso modo de vida ocidental, quando tem como mote inicial a exaltação de uma violenta irritação que contraria a vontade de Aquiles:
«Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida/ (mortífera! que tantas dores trouxe aos Aqueus/ e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades, /ficando seus corpos como presa para cães e aves de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus»
Como nos diz Hannah Arendt, no livro A Promessa da Política, «Homero celebra esta guerra de aniquilação.» Daqui decorre que vivemos segundo uma matriz obsoleta, porque para além de ter medo de morrer não é capaz de assumir um projecto de vida que ultrapasse, em definitivo, o seu estado de homo sapiens sapiens: um regime ontocrático.
Antes prefere insistir na sombra da linguagem desabrida do erro político e da retórica rotineira dos regimes políticos que optam ser mediados pelos conceitos de guerra, violência, medo, conformismo, obediência e morte. É toda uma imposição que, paulatinamente, em nome de nada, se alicerçou no silêncio da humanidade. Deixou-se vencer ao não permitir veicular um regime ontocrático fundado no princípio do ser de facto, de liberdade, de amor, de diferença na igualdade e de um sim à vida inteligente.
«Oh, fala-me da selvajaria deste mundo» grita o Dhritarashtra, o rei cego de Kaurava, quando fica a saber que os seus cem filhos foram todos dizimados em combate.
Se somos capazes de identificar o mal porque não assumir uma vontade generativa que consiga criar um outro modo de vida?!
Não será a guerra uma falsa manifestação de inteligência humana?!
Será assim tão difícil esbater a fronteira entre uma realidade má e uma fantasia de um mundo melhor?!
Que fazer com a maldade existente nos seres humanos?!
Em segundo lugar, a Humanidade terá que encontrar novas formas de a combater. Não com mentes alicerçadas em qualidades negativas e prolongadas em armas forjadas nos metais. O Mal instalado tem que se submeter aos princípios éticos de se viver uma vida humanamente saudável, preservação da humanidade, e ser constantemente confrontado com esta questão ética fundamental: como fazer bom uso da liberdade? Não pode ser cobarde de si mesmo, nem criar uma desordem conveniente atribuindo a sua cobardia de ser a um Deus, como se fosse ele o culpado, pois a liberdade existe para bem fazermos dela bom uso. Caso a usemos mal, seremos a sua vergonha, isto é, não seremos dignos da Sua grandeza, e, quiçá, pagaremos pelo mau uso dos verdadeiros valores. Deus, de certeza que, na sua liberalidade, não dará a bem-aventurança a quem seja má pessoa ou mau chefe de estado. O mais lógico e natural será o Abismo, onde possa sentir o mal que infligiu aos outros para saciar os seus apetites mais maléficos e subversivos, ao querer arrastar egoisticamente as pessoas para causas que nunca foram e nem serão dignas de Bem agir no mundo e de Bem liderar, apesar de todas as nossas imperfeições. Ter-se a noção de que somos mortais na terra é ter o bom senso de que somos finitos perante os outros seres humanos.
Em terceiro lugar, há que colocar fim a um certo modo de ser da vontade com inclinação a multiplicar-se negativamente, criando maiorias humanas artificiais, controladas, como se de um estado eterno de guerra se tratasse, travando combates, guerrilhas, falsas revoluções e discursos vazios de conteúdo ou como diz um verso das escrituras hindus, o Bhagavad Gita : «Agora, tornei-me a Morte, o destruidor de mundos». Neste sentido, a guerra bélica é substituída por uma guerra supostamente mais simples, isto é, uma guerra psicológica, com novos padrões, que corresponde a uma mudança de objetivos nas relações entre os pares.
É triste saber-se que quem usa o poder desconhece, na sua consciência, que ele é efémero como a vida e que o poder continua e que quem o usa, mais tarde ou mais cedo será abandonado e julgado por ele. Assim sendo, podemos dizer que perante a História estamos, em certa medida, confrontados com uma tendência para o desastre do “eu indelegável”, isto porque, incubamos um poder na nossa acção, uma intencionalidade de querer dominar o outro por todos os meios que possamos ter ao nosso dispor, nomeadamente, a guerra, a lei, a palavra e a consciência do Mal. Nesta perspetiva, somos autoviolentos e monstruosos face à nossa condição humana, ou seja, transformamo-nos em seres repugnantes, por causa da negação da bem-aventurança que o germe humano relegou para o esquecimento da sua origem.
Que futuro queremos? Reorganizar os conceitos, a consciência, as aspirações, nem que para isso tenhamos de recorrer aos nossos recursos mais profundos (razão, perdão, cultura e tecnologia) para que consigamos sair da era do gatinhar mal e porcamente do ser humano para algo efetivamente Bem- aventurado para todos os seres humanos?!
Carlos M.B. Geraldes (Ph.D.)
Homero, Ilíada, Livros Cotovia, Lisboa, 2005, Canto I, 1;