20.4.22

Desemprego, baixos salários, patriotismo: o que dizem os dados sobre a origem dos soldados russos mortos na Ucrânia

Sofia Correia Baptista, in Expresso

São oriundos de pequenas cidades e aldeias, onde o nível de vida é baixo. A carreira militar é a única opção para muitos jovens das regiões mais pobres da Rússia

Desde o início da invasão da Ucrânia, a 24 de fevereiro, que a Rússia revela poucas informações sobre as suas perdas no país. De acordo com o mais recente balanço do Ministério da Defesa russo, a 25 de março, morreram 1351 militares, um número muito inferior àquele que é indicado pela Ucrânia – mais de 20 mil.

O serviço russo da BBC analisou os dados de fontes oficiais russas, como responsáveis locais e meios de comunicação, que contabilizavam 1083 militares mortos a 5 de abril. A análise baseou-se apenas em relatórios com informações específicas sobre o falecido, incluindo o nome completo e a patente e, sempre que possível, o local do enterro. Das 85 regiões russas, 80 registaram baixas. Concluiu-se que das perdas oficialmente confirmadas, cerca de 80% são das regiões mais desfavorecidas do país.

Apesar de os soldados russos serem provenientes de diferentes regiões, o especialista em assuntos de defesa e forças armadas russas Pavel Luzin explica ao Expresso que “a principal diferença é socioeconómica: a maioria são de pequenas cidades e aldeias, de regiões e/ou distritos pobres e com baixos níveis de educação”. O exército russo tem conscrição duas vezes por ano (na primavera e no outono), ou seja, os jovens entre os 18 e os 27 anos prestam serviço militar obrigatório. Luzin indica que “os soldados voluntários ou contratados – aqueles que assinaram contratos de serviço militar – são antigos soldados conscritos”.

“A principal motivação deles é a de tentar obter um salário mais elevado do que nas suas cidades e aldeias e não voltar para trás. No entanto, a maioria serve apenas durante um contrato de dois anos porque, quando se tornam um pouco mais velhos e mais autoconfiantes, saem das forças armadas e tentam encontrar um emprego nas grandes cidades”, justifica Luzin, doutorado em relações internacionais. Ainda assim, para o especialista, este “elevador social” não deve ser “sobrestimado”, uma vez que os jovens fazem esta escolha apenas “para tentar atingir algo, porque não sabem o que fazer depois da conscrição” e “é por isso que assinam contratos”.
REGIÕES COM MAIS PERDAS TÊM MAIOR DESEMPREGO E BAIXOS SALÁRIOS

De acordo com a análise da BBC, não há registo de baixas provenientes da capital, Moscovo, o que poderá justificar-se com as poucas unidades militares na zona e com os poucos residentes que se alistam no exército. Além disso, em relação ao serviço militar obrigatório, muitos jovens de classes mais altas conseguem evitá-lo, por exemplo, através da inscrição na universidade, com autorizações médicas ou mesmo pagando subornos.

Já a região do Daguestão regista o maior número de mortes: 93 militares foram lá enterrados. Seguem-se a Buriácia (52), a região de Volgogrado (48), a região de Oremburgo (41) e a Ossétia do Norte (39). No entanto, os números variam e poderão ser muito superiores. No caso do Daguestão, por exemplo, uma rádio local noticiou que pelo menos 130 soldados da região morreram. “É muito difícil encontrar todos os nomes reais, as autoridades não gostam de os publicar e os jornalistas optam por não escrever sobre o assunto, temendo consequências”, disse ao “The Guardian” a jornalista russa Olga Mutovina.

Os dados do portal Statista referentes a 2020 mostram que a região do Daguestão teve a quinta maior taxa de desemprego do país: 16,3%. A Ossétia do Norte (14,9%) e a Buriácia (10,8%) também ficaram entre as dez regiões com valores mais altos. Em fevereiro deste ano, a Rússia registava uma taxa de desemprego de 4,1%.

No Daguestão, o salário médio mensal era de 350 euros em 2020, de acordo com o CEIC Data. Na Ossétia do Norte, este valor desce ligeiramente, para 340 euros. Em Oremburgo, eram 392 euros. Em Volgogrado e na Buriácia, a média sobe para os 402 e 467 euros, respetivamente. Foram oferecidos salários entre os 1900 e os 2400 euros para recrutar soldados no Daguestão para servirem na “operação militar especial” na Ucrânia, segundo o órgão de informação independente russo Meduza.

O desemprego é elevado na região do Daguestao

Na análise às biografias dos russos que morreram na guerra na Ucrânia, encontram-se muitas histórias de homens que estudaram e tentaram ter um emprego estável, mas que depois regressaram ao exército por não terem outras opções. “O exército é um empregador importante para os territórios onde ganhar dinheiro é quase impossível. Ir para o exército garante um salário estável e segurança”, sublinha à BBC a professora Natalia Zubarevich, economista e geógrafa russa especializada no desenvolvimento socioeconómico das regiões.

Um dos exemplos é Mikhail Garmaev, de Ulan-Ude, na região da Buriácia. Depois de terminar a escola, foi para a faculdade, mas não completou os estudos e entrou para o exército como recruta. Depois regressou a Ulan-Ude e conseguiu um emprego numa empresa de instalação de sistemas de alarme mas, após alguns anos, regressou ao exército e assinou um contrato. Morreu perto de Kiev a 6 de março e a 21 foi enterrado em Ulan-Ude.

Os caixões com militares russos mortos na Ucrânia não estão a chegar só a estas regiões russas, mas também a antigos países soviéticos. A BBC relata cinco casos: dois no Quirguistão, dois no Tajiquistão e um na Ossétia do Sul, região separatista da Geórgia e reconhecida pela Rússia. Todos tinham cidadania russa e idades entre os 19 e os 26 anos. “Os migrantes que não tiveram uma boa educação e não encontraram um emprego melhor na Rússia acham a carreira no exército bastante atrativa. E a forte propaganda reforça-o”, explica à BBC Svetlana Gannushkina, ativista dos direitos humanos russa.

SENTIMENTO DE PATRIOTISMO E DEVER

Os discursos e os valores transmitidos aos mais novos também desempenham um papel importante, conforme estudou Allyson Edwards, professora da Universidade de Warwick que se doutorou no ano passado com uma tese sobre o militarismo russo nos anos 1990. “O patriotismo e o dever são um discurso proeminente perpetuado junto dos jovens em todas as áreas da vida” na Rússia, explica ao Expresso. “O cumprimento do dever patriótico é muitas vezes visto como uma continuação do sacrifício do avô ou bisavô”, destaca Edwards.

A especialista aponta que a Rússia “enquadrou as suas forças armadas como um garante de segurança” e também “glorificou o passado de vitória na guerra, criando uma sociedade hierárquica onde a comunidade veterana da Rússia está acima dos restantes”. Esses veteranos da Grande Guerra Patriótica – denominação dos russos para a Segunda Guerra Mundial – são a “maior geração da Rússia: são valorizados em eventos comemorativos, as crianças atuam em concertos para eles e os estudantes são aconselhados a respeitar aqueles que alcançaram a vitória contra a Alemanha nazi”, enumera Edwards.

Desta forma, o “orgulho nos militares” é relevante e “as circunstâncias também ajudam”. “Os discursos atuais sobre os nazis e o mundo hostil contra a Rússia irão, sem dúvida, reunir apoio à causa russa no país – alguns poderão ver o exército como uma forma de cumprirem um papel ou de promover a vitória dos seus antepassados sobre a Alemanha nazi em 1945”, sintetiza.