Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Estudo qualitativo desenvolvido no âmbito do projecto EduCig mostra que apoio da família é muito importante, mas não o ter não é impeditivo.
O que distingue a minoria de jovens ciganos que frequentam o ensino secundário da larga maioria que continua a abandonar a escola no 2.º ou no 3.º ciclos? Uma equipa de investigadores procurou respostas, analisando trajectórias de sucesso de rapazes e raparigas.
Não é uma resposta simples a que sai do novo estudo qualitativo desenvolvido pelo EduCig (2018-2022), projecto coordenado por Manuela Mendes, professora do ISCTE-IUL, que junta Olga Magano, Ana Rita Costa, Pedro Caetano, Pedro Candeias, Florbela Samagaio e outros investigadores. “Nem foi fácil identificar os jovens que estão no secundário”, diz Mendes. “São muito poucos.”
Sabiam ao que iam. O primeiro Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas, que Mendes, Magano e Candeias assinaram em 2014, não deixou margem para dúvidas: apenas 6% concluíra o 3.º ciclo e 2,5% o ensino secundário ou superior. Quando a Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e da Ciência lançou os resultados de um inquérito feito às escolas confirmou-se que essa realidade estava a mudar, mas devagar.
Havia então 25.126 ciganos inscritos no ensino público, incluindo os 2570 do pré-escolar. Só que o número diminuía de nível de ensino para nível de ensino: 11.138 frequentavam o 1.º ciclo, 6097 o 2.º, 4684 o 3.º ciclo e 651 o secundário, mais de metade no Norte do país. As taxas de retenção mais elevadas registavam-se na Área Metropolitana de Lisboa, no Alentejo e no Algarve. O Norte juntava mais de metade dos alunos do secundário.
Fizeram 31 entrevistas a estudantes com idades compreendidas entre os 15 e os 20 anos, a frequentar o secundário no ano lectivo 2018/2019 nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Metade com pai e mãe ciganos e outra metade com apenas o pai ou a mãe de etnia cigana. A maioria com frequência do pré-escolar e escolaridade superior aos pais. Quase metade com alguma retenção (sobretudo por faltas).
As barreiras vieram ao de cima nessas entrevistas demoradas. Os estudantes deram nota da “baixa expectativa dos professores”, da tendência para os encaminhar para cursos profissionais. E dos “percursos escolares marcados por imagens estereotipadas e situações discriminatórias”, que “constituem obstáculos à formação escolar” e que geram “sentimentos de revolta”, “falta de vontade de frequentar a escola, de continuar a estudar” e mesmo “dificuldades na aprendizagem”.
Entre as experiências de discriminação emergiram turmas nem sempre inclusivas, diferenciadas por etnia e género. Alguns estudantes relataram “situações de bullying que resultam na dificuldade em construir amizades com os colegas e uma relação saudável com a escola”. Também admitiram processos de auto-exclusão, como é o caso das raparigas ciganas que só falam com rapazes se forem ciganos.
O que faz com que, apesar de tudo isso, tivessem seguido em frente? “Em muitos casos, o apoio da família nuclear é decisivo”, salienta Manuela Mendes. “Isso desdobra-se na motivação que a família incute, no apoio ao trabalho de casa, no pagamento de explicações”, prossegue. “Muitas vezes, os pais protagonizam uma mudança no percurso de vida para viabilizarem o percurso escolar dos filhos. São modelos de referência, porque o pai ou a mãe ou ambos têm percursos escolares interessantes, mas não tiveram as mesmas oportunidades, transferem para os filhos as aspirações que tinham.”
Também há jovens que continuam a estudar, apesar da família. Há mesmo uma que o fez contra a família. “Era os meus pais a lutar que eu não fosse para a escola e eu a batalhar para continuar as aulas”, contou a rapariga, então com 19 anos. Acabou por fazer um corte. “Porque para ir para a faculdade, a minha família era contra e pretendia que eu casasse. Eu tive de sair de casa para conseguir prosseguir os estudos.”
Falando nesse caso concreto, Manuela Mendes conta que esta aluna gostava muito do curso de Contabilidade que então estava a frequentar. E resistia às investivas dos pais para a ver casada. “Não se revia nos valores tradicionais.” Aos 18 anos, tendo o casamento marcado, fez a prova de aptidão profissional e fugiu de casa. “Afastou-se da família e das dinâmicas do mundo cigano.” Concebeu o seu próprio projecto de vida, que inclui autonomia, espaço para as suas escolhas. “Tem muita motivação, muita resiliência, muita vontade de trabalhar.”
A investigação confirma a tensão entre os percursos escolares mais prolongados e algumas práticas tradicionais, como o casamento de endogamia. É evidente que muitos estudantes sentem ambivalências e debatem-se com alguns dilemas, mas resistem, sobretudo porque percebem a escola como única via de ascensão social. “Alguns querem, de forma clara, dissociar-se das actividades tradicionais, como a venda ambulante”, diz. “Querem mostrar aos não ciganos que os ciganos podem e querem fazer outros trabalhos. E aos ciganos que continuam a ser ciganos.”
Na escola, estes jovens dão valor ao que aprendem e às relações que estabelecem. Além de professores e outros profissionais, apreciam o contacto com os colegas, incluindo outros “ciganos que valorizam a escola, que estão num processo de continuidade na escola, que acabam por ser modelos de referência”.
O que eles dizem sobre a escola
Escola como facilitadora de competências transversais
“A escola digamos que abre horizontes, a história… a história tira-nos aquelas duas palas que… que os burros usam. A escola é fundamental, porque abre mesmo os nossos horizontes.” (MD, 18, AML
“Primeiro, ensina-nos a estar com outro, dá-nos valores, dá-nos experiências que nunca teríamos, se não estivéssemos na escola (…).” (VG, 19, AMP)
“A escola serve para combater uma coisa que, infelizmente, desde que o mundo foi criado existe cada vez mais (...) que é a ignorância. A escola ajuda-nos a combater preconceitos, ignorâncias, estereótipos. (...) Às vezes, as pessoas… (...) não tiveram oportunidade de saber mais. Nunca... a única educação que levaram foi a de casa e, em geral, a educação de casa costuma ser uma educação mais retrógrada. Então, eu acho que a escola é importante (...) porque aprendemos que temos que lidar, desde cedo, com outras pessoas, temos que, desde os seis anos de idade, lidar com mais 29 crianças, quando nós não lidámos com ninguém em casa. Eu acho que a escola é um bom sítio, porque para além de... de matéria, temos também a parte social.” (BC, 19, AMP)
Escola como espaço de socialização
“O tempo de recreio é um tempo de convívio (...), trocamos ideias. Eu falo por mim, eu fora da escola, é raro estar com pessoas assim que tenham diferentes ideias de mim – que os meus amigos todos têm as mesmas ideias que eu – então gosto de na escola socializar. Sempre troco ideias com pessoas que têm outro tipo de pensamento.” (LR, 17, AML)
“Ao primeiro, quando eu comecei, havia um bocado aquela discriminação. Tanto que eu cheguei ao 3º ano e nem sabia ler nem escrever. (...) Passavam-me sempre. Sem estudar, praticamente. Primeira, segunda, terceira, não sabia ler. Não aprendi. Havia a tal coisa, discriminação. Metiam-me sempre à parte, deixavam-me ali, entregavam-me uma ficha e faz a ficha, desenrasca-te e já está. Praticamente aprendi só a ler no 4º ano.” (ZF, AML)
Escola como preparação para futuro profissional
“Muita. Porque sendo cigana ou não, eu acho que a escola para nós é importante. Porque se nós ficarmos com o 9º ano, ou vamos mais longe, se ficarmos com o 4º ano, o que é que temos hoje em dia? Nada. Ficamos a limpar escadas. (...) Então eu acho que a escola é fundamental para o ensino e para a vida de trabalho hoje em dia.” (PB, 19, AML)
“A mim abre portas para o futuro (...). Se tirar o 12º ano consigo ter mais área de trabalho, tenho mais portas para o futuro.” (V 15, AMP)
“Para que possamos ter um futuro. Que seja diferente. Porque já não estamos no tempo em que fazíamos uma feira e ganhávamos 5000€ por mês” (BO, 19, AML)
Escola como meio de mobilidade social
“Hoje em dia, quem não tiver escolaridade e não tiver a escola toda feita não é ninguém na vida, acho que não consegue ter um bom futuro (...). Eu não gosto de andar na escola, acho que ninguém gosta. Mas tenho que lutar pelo meu futuro. Tenho que investir nisso.” (SM, 16, AML)
“A escola para mim tem uma importância muito grande. É algo que vai escolher o que vamos ser mais tarde. Muita gente não gosta da escola, mas temos de pensar que é ela que vai dar um rumo à nossa vida.” (PR, 18, AML)
“Eu quero estudar, quero tirar o meu mestrado, mas também quero trabalhar por mim próprio, não vai ser na venda, vai ser uma coisa que eu vou construir, uma empresa minha.” (BO, 19 AML)
Fonte: “Trajectórias e aspirações dos estudantes ciganos no ensino secundário”, equipa Educig.