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11.9.23

Lisboa: leiloa-se à maior licitação

João Rochate da Palma, in Público

Poucas palavras me restam para expressar o estado da capital portuguesa. A cada dia surgem novas evidências de que toda a cidade está num estado perpétuo de se leiloar à maior licitação.


Poucas palavras me restam para expressar o estado da capital portuguesa. A cada dia surgem novas evidências de que toda a cidade está num estado perpétuo de se leiloar à maior licitação. A piorar a situação, as condições materiais e morais de habitar Lisboa têm vindo a deteriorar-se de tal modo que um retorno à Lisboa de personalidade que atraiu a onda turística que agora a destrói parece cada vez menos viável.

Agora é a Casa Independente, lugar de passagem obrigatório no largo do Intendente, que fechará portas dado que a intenção dos proprietários do edifício é vendê-lo, provavelmente a quem mais oferecer. E quem é que mais oferece? Sempre uma grande empresa que procura “modernizar” espaços, isto é, transformá-los em alojamentos locais, hotéis ou espaços mais apetecíveis ao novo modelo de turista americanizado que o governo da cidade parece procurar.


Aquele turista ou nómada que usa, abusa, cospe na cara, não pergunta o que a cidade quer ou de que gosta. Aquele turista que está ali só para satisfazer os seus interesses e não quer personalidade ou diálogo com as ruas, com os espaços tradicionais da cidade, aqueles que lhe conferiam, outrora, estatuto de cidade histórica. É assim que Lisboa se vende.

Já este ano se perdeu, no mesmo largo, outro espaço, pelo mesmo motivo, “O das Joanas”, encerrou permanentemente. Outro espaço icónico de um largo que tanto demorou a ser reabilitado, ao ponto de hoje atrair interesses que não são locais, mas sim com a mente posta no lucro desenfreado, na expulsão da personalidade do centro da cidade.


Há uns anos, expulsaram o que restava do Imaviz, o “MetropolisClub”, que mantinha a vida acesa no centro comercial histórico de Lisboa. Agora, cerca de três ou quatro anos depois, nem existe a obra que era prevista para o espaço, nem há provas do começo da construção.


Quem dá estes exemplos dá incontáveis mais. A cidade continua a vender-se, como se vendeu à JMJ, cujo retorno foi posto em tom de humilhação na expressão de que é “espiritual”. A abdicação da cidade à devassidão Católica surgiu apenas poucas semanas antes de Lisboa ser galardoada com o prémio de ultrapassar Amesterdão como a cidade mais cara da Europa. Um prémio acompanhado da miséria e pobreza do estado da habitação, à qual não há pacote deste Governo que pareça ter qualquer efeito.

Os preços aumentam, a cidade torna-se hostil e surgem notícias de que os nómadas já nem a procuram tanto, e o ritmo de chegada chegou a abrandar, nem que temporariamente. De tanto despersonalizar a cidade, de tanto a vender, ela arruinou-se, a fim de atrair a chegada de mais cifrões. Tanto o fez que até estes perderá. E depois, que restará? Uma cidade economizada? Sem personalidade? Sem locais?

Enquanto estas perguntas surgem, a cidade continua a vender-se, sem resistência ou protesto que valha. Sem a violência de discurso necessária.

Porém, o turismo não acabará e desta onda não se vê o fim. E diga-se, o problema não é o turismo, mas sim a incapacidade de tornar Lisboa senhora que atrai turista, em vez de a vender ao turista que mais pagar, que mais vier, que mais quiser aparecer, moldando-a ao gosto do freguês. Lisboa, turística e de locais, é aquela que sempre foi: histórica, cultural, com identidade.

[artigo disponível na íntegra apenas para assinantes]



27.7.23

Uber, há um “transporte para pessoas da minha espécie”?

Lourenço Madureira Miguel, crónica, in Público


Senti-me humilhado e discriminado da pior forma. Deixei de conseguir chamar um TVDE sem pensar automaticamente que este ser pouco humano continua a poder transportar pessoas.


Não gosto de reclamar. Quando o faço é por sentir que será egoísta da minha parte não o fazer. Contudo, neste caso em específico, trata-se de não me sentir seguro depois de tantos limites serem ultrapassados.

Há cerca de um ano que luto de forma pública contra a discriminação, especialmente no mundo dos TVDE. Quero acreditar que a minha forma de protestar é, desde o princípio, frutífera – não aponto o que está mal sem apontar o que está bem e, mais do que isso, não digo os defeitos do sistema sem ter uma solução.

Com a Bolt, conseguimos construir a categoria de Acessibilidade, que permite aos passageiros com necessidades especiais motoras (e não só) sentirem-se mais seguros e com a certeza de que a pessoa que os transporta não os vai tratar como extraterrestres por estarem numa cadeira de rodas — que se desmonta e cabe em quase qualquer carro — ou ter a conversa mais inconveniente que começa com “então, isso é de nascença ou foi acidente?”.


Acredito que esta última frase não é dita por mal, mas já a ouvi centenas de vezes. No passado dia 13 de Julho, estava a sair de um tratamento no Hospital de Santa Maria e tinha de chamar um TVDE para poder ir para casa. Não havia em nenhuma das aplicações um veículo da categoria Acessibilidade disponível, então, acabei por chamar um Uber X.


Contrariamente ao que muita gente acredita, estes motoristas não têm o direito de poder escolher se me levam ou não. São obrigados a transportar-me como a qualquer outra pessoa, salvo excepções em que não caiba mesmo a cadeira ou se, por exemplo, o motorista tiver uma condição de saúde que o impeça de pegar em pesos.


Quando está a chegar, aceno. Passa ao meu lado, de vidro aberto, e diz simplesmente “você tinha de chamar um Assist para pessoas da sua espécie”. Nem bom dia nem boa tarde. Só isto já é mau o suficiente, mas piora. Respirei fundo e esperei só que o Sr. Carlos viesse abrir a mala. “Eu até lhe faço isto, mas não devia”, disse-me. Expliquei-lhe, com muita calma, que estava a par dos meus direitos. Responde-me que não queria saber se eu estava por dentro do assunto ou não e que fazia o que lhe apetecia. Contudo, que me ia conceder o favor de transportar. Que sorte a minha!

Para facilitar o processo, enquanto continuava a reclamar comigo, já tinha eu desmontado os “pés” da cadeira, posto dentro do porta-bagagens, quando pega na cadeira de rodas e diz: “Eu nem devia transportar isto, porque você não precisa da cadeira. Está aí de pé a fingir que precisa de usar isto!”. Confesso que fiquei em choque e nem estava a conseguir acreditar no que ouvia. Foi aí que comecei a gravar o vídeo que publiquei no Instagram e que mostra parte do que me foi dito. Como é que acabou? Com o motorista a tirar as coisas de dentro da bagageira e a deixar a cadeira no meio da estrada.

Insultou-me mais um bocadinho, virou as costas e cancelou a viagem. Por mais que eu tenha a plena noção de que há motoristas impecáveis — e não são poucos! —, deixei de me sentir seguro. Senti-me humilhado e discriminado da pior forma. Deixei de conseguir chamar um TVDE sem pensar automaticamente que este ser pouco humano continua a poder transportar pessoas e a dizer e a fazer o que quer.

Claro que fiz queixa e a solução para a Uber passou por devolver-me o dinheiro daquela viagem e dizer que o que aconteceu vai contra as políticas da empresa. No entanto, expliquei que isso era insuficiente e que precisava de uma garantia de que o motorista em causa seria suspenso, mesmo que temporariamente, pois de outra forma era impossível sentir-me seguro de novo. Não quiseram saber, pois a política de protecção de dados é mais importante do que garantir o bem-estar e segurança dos clientes. Não é como se eu tivesse pedido a morada da pessoa em causa para fazer um ajuste de contas. Só mesmo a garantia de que não vou apanhar o mesmo motorista hoje quando voltar a sair de casa.


A inércia destas empresas é revoltante. Quantas vezes já me foi prometido que “iriam tomar as medidas necessárias” e depois chego a apanhar o mesmo motorista, com a mesma atitude na semana seguinte? Dá trabalho fazer justiça, dá trabalho perceber que não é qualquer um que pode transportar pessoas, dá trabalho castigar, diferenciando o certo do errado. Dá trabalho e custa dinheiro. É sempre mais fácil fechar os olhos, encobrir um crime, até porque as queixas vão acabar por se desvanecer devido à falta de resposta e à necessidade das pessoas de seguirem com as suas vidas. Não deixem de reclamar, por mais cansativo que seja. Não deixem de viver o melhor de cada dia por situações como estas.


"A inércia destas empresas é revoltante. Quantas vezes já me foi prometido que “iriam tomar as medidas necessárias” e depois chego a apanhar o mesmo motorista, com a mesma atitude na semana seguinte?"

[artigo disponível na íntegra só para assinantes aqui]