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9.3.22

Abono só cobre 9% do “rendimento adequado” a uma criança de 12 anos

Andreia Sanches, in Público on-line

O abono de família é apenas um exemplo de como “os baixos valores” das prestações sociais destinadas a assegurar um padrão de vida aceitável não levam, na verdade, as famílias a ultrapassar o “limiar da dignidade humana”, dizem investigadores.

Uma criança com 12 ou mais anos, num agregado com o pai e a mãe juntos, inseridos no escalão mais baixo de rendimentos, tem direito a 37,46 euros mensais de abono de família. De acordo com os cálculos dos investigadores Elvira Pereira e José António Pereirinha, este montante representa somente 9% do “rendimento adequado”, ou seja, aquele que garante a esta criança “um padrão de vida digno”, tendo em conta, entre outros, alimentação, vestuário, higiene, saúde, lazer e educação.

Para assegurar que esta criança vive com “dignidade”, são necessários, dizem, cerca de 400 euros mensais, uma estimativa que já parte do pressuposto de que os manuais escolares são gratuitos.

“Podemos ter uma ideia melhor do muito baixo apoio traduzido no abono de família em face dos encargos associados a uma criança da seguinte forma: no 1.º escalão, para uma criança de 12 anos, o valor da prestação representa menos de um terço da despesa necessária para garantir uma alimentação adequada”, explica Elvira Pereira, investigadora do Centro de Administração e Políticas Públicas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa.

A análise é feita no livro Regime de Mínimos Sociais em Portugal: Evolução do discurso político e das políticas, no qual participam professores e investigadores das universidades de Lisboa, Porto, Coimbra e Católica e que é apresentado nesta quarta-feira, em Lisboa.

São mais de 500 páginas onde se passa em revista a evolução e o impacto dos apoios do Estado que integram o chamado Regime de Mínimos Sociais, “entendido como o conjunto dos recursos que o poder político considera suficientes para assegurar um padrão de vida minimamente aceitável”.

Foram analisadas prestações como, por exemplo, o abono de família, a pensão social, o subsídio social de desemprego ou o Rendimento Social de Inserção.
O “limiar da dignidade”

Uma das conclusões da análise é que o impacto destes “mínimos” é diminuto: “Os baixos valores dos mínimos sociais implicam que seja reduzido o número dos beneficiários que ultrapassam o limiar da dignidade humana em resultado das transferências deste regime”, lê-se num capítulo assinado por Elvira Pereira e por José António Pereirinha, professor catedrático de Economia Pública e do Bem-Estar do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa.

Os dois coordenam uma obra que distingue a pobreza monetária, tal como ela é estimada nas estatísticas oficiais, do conceito de “rendimento adequado”, calculado pela primeira vez no Portugal democrático por uma equipa liderada por Pereirinha, num trabalho iniciado em 2012.

Nem todas as famílias que necessitam estão a receber apoio e aquelas que estão a receber não estão a receber o que necessitam Elvira Pereira

Para tal, a equipa constituiu grupos de trabalho com famílias de vários pontos do país, ouviu peritos de várias áreas, da habitação à saúde, da energia à nutrição. Para cada tipo de família, em função da sua composição, foi calculado o rendimento que permite viver dignamente à luz de uma “concepção de dignidade amplamente consensualizada na sociedade”. Os valores foram sendo sucessivamente actualizados ao longo dos anos.

O abono de família, prestação social criada em 1942 (Portugal foi dos primeiros países na Europa a implementar uma política desta natureza), é paradigmático das conclusões do estudo para várias das prestações analisadas. Não só o seu montante traduz uma pequena parte do “rendimento” adequado, como a sua cobertura se foi reduzindo, numa lógica de só abranger quem é realmente e tecnicamente “pobre”, embora “tenha existido um aumento ‘simbólico’ da cobertura no XXI Governo constitucional [2015-2019] com a reposição do 5.º escalão e atribuição no 4.º escalão de abono de família por criança até aos 72 meses”, diz Elvira Pereira.

Resumindo: “Nem todas as famílias que necessitam estão a receber apoio e aquelas que estão a receber não estão a receber o que necessitam.”

Como é que isto se compagina com a aposta na redução da pobreza infantil, expressa na nova estratégia nacional de luta contra a pobreza? “Temos estado muito longe, mas também temos de reconhecer que tem sido feito um esforço, com algumas medidas”, diz Elvira Pereira. “A gratuidade das creches, que já abrange algumas famílias, é muito importante. O apoio pode ser dado também por essas vias. Mas, globalmente, a situação é muito insuficiente. Vamos ver o que nos traz o novo Governo em relação a isso.”
O “limiar de pobreza”

“Oficialmente”, uma criança só é considerada pobre se os seus pais tiverem para despender com ela menos de 166 euros por mês. E este é outro problema apontado. “O custo das crianças, aquilo que se considera que é necessário que tenham para se atingir um padrão de vida digno, é muito subavaliado quando se calculam as taxas de pobreza. O valor associado a uma criança é 166 euros. Ora só o custo da alimentação de uma criança de 12 anos anda à volta dos 130 euros”, prossegue Elvira Pereira.

José António Pereirinha reforça a ideia. Põe em causa todo o modo como em Portugal e na Europa se calcula a taxa de pobreza. “Está muito abaixo daquilo que é o rendimento digno”, explica.

Para um casal com dois filhos, por exemplo, estima-se que em 2017 fossem necessários, em média, 2300 euros mensais (entre rendimentos monetários e não monetários) para garantir uma vida digna. Nesse ano, um agregado com estas características só estava abaixo do limiar de pobreza se tivesse um rendimento inferior a 966 euros. Estes montantes não se alteraram substancialmente, dizem os autores. A situação descrita também não, acreditam.

Pereirinha gostaria de ver o “rendimento adequado” a ser utilizado como referência para os governos na definição de medidas de combate à pobreza.

Não seria uma inovação. Em 1969, o Governo de Marcelo Caetano fez um estudo que enumerava os bens e serviços a que um trabalhador não qualificado deveria aceder para obter um “mínimo social compatível com a dignidade humana”. Em mente, tinha a definição de um salário mínimo nacional.

“Foi o único estudo que foi feito para quantificar um valor adequado, de então para cá nunca mais houve nenhum a não ser o nosso”, explica Pereirinha. E era importante que fosse esta a referência “para uma série de prestações sociais, em vez de estarem indexadas a um limiar de pobreza relativa, nem que fosse para perceber a que distância estávamos do adequado. É a lógica seguida no Reino Unido, por exemplo.”

Metade das famílias em "défice social"

Os dados traçam o cenário de 2017: cerca de metade das famílias portuguesas (50,6%) não tinham um rendimento que lhes permitisse ter um padrão de vida digno. Não eram todas “tecnicamente pobres”. Ou seja, muitas até tinham rendimentos que as colocavam acima do limiar de pobreza tal como ele é calculado nas estatísticas oficiais. Mas estavam em “défice social”.

Se se excluir desta fatia dos agregados em “défice social” aqueles que vivem em pobreza relativa (ou seja, abaixo do limiar de pobreza tal como ele é definido anualmente pelo Instituto Nacional de Estatística), ainda assim, um em cada três (33,8%) estava aquém do rendimento considerado necessário para um “padrão de vida digno”. Os investigadores consideram que estas famílias vivem numa “zona cinzenta”. Não são pobres, mas também não têm “o rendimento adequado”.

“É um número elevado, é chocante, mas é verdade e confirma o que sentimos: que quem vive com um rendimento perto do limiar da pobreza não vive nada bem”, diz José António Pereirinha.

“Merece especial relevância o caso das famílias monoparentais com um filho menor, que evidenciam uma elevada incidência de défice social que as transferências sociais” não fazem reduzir, lê-se no estudo. De acordo com os cálculos apresentados, 81% dos agregados constituídos por um adulto em idade activa com um menor a cargo estavam em situação de “défice social”; apenas 19% eram consideradas pobres. Para se ter uma noção: o rendimento considerado adequado nesse ano a uma família monoparental com estas características era 1374 euros por mês. Muito acima do que, mesmo hoje, é um salário mínimo nacional.

Os cálculos do "rendimento adequando" (incluindo rendimentos monetários e não monetários) foram feitos para sete tipos de agregados familiares, os mais comuns em Portugal: casais em idade activa sem filhos, ou com um ou dois filhos menores; um adulto em idade activa com um filho a cargo; indivíduos em idade activa que vivem sós; indivíduos com 65 ou mais anos que vivem sós e casais onde ambos têm 65 ou mais anos.

Para analisar os rendimentos disponíveis nestes diferentes tipos de composição familiar os investigadores socorreram-se do Inquérito às Condições de Vida e Rendimentos de 2018, que faz o retrato dos rendimentos disponíveis em 2017, e que era o mais recente quando os autores trabalharam os dados agora apresentados no livro Regime de Mínimos Sociais que acaba de ser publicado. De então para cá, várias medidas como a generalização da gratuitidade dos manuais e diminuição das despesas com transportes poderão ter reduzido o valor do “rendimento adequado”. Outros factores, como o aumento dos custos com habitação, terão tido o efeito contrário.


28.1.16

“Alimentação digna” de uma família custa 766 euros por mês

Romana Borja-Santos, in "Público"

Portugal surge como o 10.º país europeu com um valor mais elevado nesta estimativa. Valor tem em consideração a quantidade e qualidade dos alimentos bem como algumas actividades sociais

"Alimentação digna." Este é o conceito que está na base das contas feitas pelo projecto Rendimento Adequado em Portugal, com o objectivo de chegar ao valor médio mensal para um casal e dois filhos viverem sem dificuldades e darem resposta às necessidades alimentares numa cidade como Lisboa. Para estas contas não entram, por isso, apenas os produtos básicos.

O cálculo tem em consideração a quantidade de alimentos, mas também a qualidade dos mesmos e outros factores, como algumas refeições esporádicas fora de casa e receber amigos. No total, um homem e uma mulher com cerca de 40 anos, uma filha de 14 anos e um filho de 10 anos precisariam de cerca de 766 euros mensais - um valor que aproxima Portugal dos países mais caros.

Os dados foram apresentados ontem por José António Pereirinha, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa, no âmbito de uma conferência, da organização não governamental Oikos, dedicada à integração de políticas públicas na área da segurança alimentar e apoiada pela Direcção-Geral da Saúde e pelo Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa. O investigador explicou que há dois projectos sobre este tema a decorrer, um de âmbito nacional, mais baseado na percepção de um grupo de mais de 2000 pessoas, e outro integrado com mais países europeus, sobretudo para efeitos de comparação, e que tem como base alguns estudos científicos, contando com a percepção de menos pessoas.

Os valores apresentados fazem parte do trabalho europeu, que olha para o rendimento que os cidadãos precisam de destinar a uma determinada área como aquela que "permite uma participação adequada na sociedade". Ou seja, explicou José António Pereirinha, os montantes abarcam "tudo o que é necessário para uma pessoa ser saudável, sentir-se segura, relacionar-se com os outros e sentir-se respeitada na sociedade. Deve permitir escolhas livres e informadas".

O processo para chegar a estes valores é complexo. Por exemplo, no campo da alimentação, antes de ouvir as pessoas, os investigadores determinam as necessidades energéticas, as proporções de macronutrientes e respectivas quantidades e, entre outras coisas, criam planos diários de alimentação que sirvam de modelo.

Solteira? 202 euros...

Além da família com dois filhos, são apresentados valores para um mulher de 40 anos que viva sozinha. Em Lisboa, para uma "alimentação digna" precisaria de 202 euros. Para um homem da mesma idade, o valor seria de 206 euros e para um casal ficaria nos 386 euros. Já uma mulher que viva sozinha com os dois filhos menores gastaria 583 euros e o homem 587. O valor mais elevado, de 766 euros, corresponde ao casal com dois filhos e é o mais frequentemente utilizado nas comparações internacionais. Neste caso da estimativa familiar, só na Dinamarca, Finlândia, Grécia, Luxemburgo, Suécia, Eslovénia, Chipre, Malta e Letónia foram registados valores mais elevados. Pelo contrário, a "alimentação digna" regista os valores mais baixos na Hungria, República Checa, Polónia, Estónia, Letónia e Roménia.

Além do trabalho de José António Pereirinha, a conferência da Oikos discutiu estudos relacionados com a pobreza e a insegurança alimentar em Portugal - uma situação que se agravou após a crise, segundo os dados apresentados por Pedro Graça, director do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável. Números corroborados por Mónica Truninger, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e coordenadora de um inquérito nacional sobre a insegurança alimentar, que demonstrou que os últimos anos privaram mais famílias de alimentos, com a classe média a mostrar ter tido mais dificuldades em adaptar-se, até por desconhecer os circuitos de apoios sociais.

Projecto junta 30 cidades portuguesas para melhorar alimentação urbana

Romana Borja-Santos

Cerca de 30 autarquias aderiram ontem a um programa voltado para as cidades e que tem como principal objectivo criar sistemas alimentares "mais integrados, justos e sustentáveis" nas zonas urbanas em Portugal. A assinatura do chamado "Pacto de Milão sobre Política de Alimentação Urbana" decorreu em Lisboa, durante uma conferência da organização não governamental Oikos. A meta é reunir municípios de todo o mundo, e também a sociedade civil, instituições públicas e Governo.

"O compromisso e envolvimento das cidades são essenciais para atingir o objectivo de alimentar o mundo; cerca de 15% dos alimentos disponíveis no mundo são produzidos em áreas urbanas e estima-se que a proporção global de pessoas a viver em cidades atingirá os 65% em 2025", explicou o presidente da Oikos, João José Fernandes. "A integração das políticas sectoriais, a articulação dos vários níveis da administração pública (nacional e local), bem como a criação de espaços de articulação é fundamental para combater a insegurança alimentar que atinge muitas das famílias portuguesas com graves prejuízos para a saúde", acrescentou.

O Pacto de Milão tem, por isso, diversas vertentes para concretizar a ligação entre a produção rural e a urbana e o consumo rural e urbano. Um dos propósitos passa por tornar os sistemas alimentares das cidades mais seguros, mas também por garantir que os cidadãos têm acesso a uma alimentação mais variada, saudável e a preços acessíveis. "Procederemos à revisão de todas as políticas, planos e regulamentos urbanos existentes, de modo a encorajar o estabelecimento de sistemas alimentares equitativos, resilientes e sustentáveis", explica o documento assinado pelas autarquias.

Muitas das intervenções previstas no campo da promoção de dietas "saudáveis, seguras, culturalmente apropriadas, amigas do ambiente e baseadas nos direitos humanos" visam as escolas, mas também as instituições de apoio social, os mercados e os próprios media. As autarquias comprometem-se ainda a lidar com as doenças associadas a uma dieta inadequada, nomeadamente a obesidade, "dando especial atenção à redução, quando apropriada, do consumo de açúcares, sal, gorduras". Facilitar o consumo de água potável através de bebedouros públicos é outro dos objectivos.

O pacto tem também acções dirigidas para as questões de igualdade social e económica, por considerar que a alimentação está muito relacionada com a capacidade financeira das populações. "Promover emprego decente para todos" e utilizar os fundos relacionados com a alimentação para promover o acesso a bens saudáveis são duas das propostas.

Por fim, há acções específicas para promover melhores compras públicas nos circuitos agro-alimentares, favorecendo o consumo de proximidade e outras ideias para combater as "perdas e desperdício alimentares".

A Oikos aproveitou o momento para deixar recomendações, propondo que se defina um rendimento adequado para que as famílias portuguesas possam escolher uma alimentação saudável. Uma das ideias considera que "uma via possível é a criação de um meio de pagamento electrónico (ex: cartão pré-pago) parcialmente condicionado à satisfação de necessidades alimentares e higiene, privilegiando a compra na agricultura e comércio de proximidade".

PAN quer menu vegetariano nas cantinas

Inês Moreira Cabral

O Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) defende a inclusão obrigatória de uma opção de menu vegetariano em todas as cantinas públicas e apresentou uma proposta nesse sentido no Parlamento, no final da semana passada. O partido recomenda ainda ao Governo a elaboração de um estudo sobre o impacto da distância percorrida pelos alimentos, desde a produção ao consumo, e das consequências para os pequenos produtores.

"Se tivermos uma alimentação mais correcta, vamos ter menos doentes, menos medicamentos e menos despesa, logo, vamos ter um SNS mais sustentável. A prevenção primária faz-se muito por via da alimentação", sublinha André Silva, deputado do PAN e autor do documento.

Na proposta, o PAN refere que a produção pecuária é responsável por 52% da totalidade das emissões de gases com efeito de estufa e argumenta que face à crescente procura de uma alimentação vegetariana "Portugal possui condições que beneficiam esta escolha, já que possui uma produção vegetal de elevada qualidade, com variedade sazonal e diversificada".

Mais de 11 pessoas assinaram até agora a petição da Associação Vegetariana Portuguesa (AVP), em defesa dos menus vegetarianos nas escolas, universidades e hospitais. Manuel Metello, presidente da associação, congratula-se com a proposta do PAN, que vem concretizar os esforços da AVP nesse sentido. "O vegetarianismo tem crescido, especialmente entre os mais jovens", diz Manuel Metello, vegetariano desde 2005, altura em que "não existiam tantos produtos disponíveis no mercado".

O mais recente levantamento sobre vegetarianismo no país foi levado a cabo pela Nielsen e promovido pelo Centro Vegetariano em 2007 e dá conta de que em Portugal existiam então cerca de 30 mil vegetarianos, e que 5% da população tinha excluído uma das categorias alimentares tradicionais: carne, peixe, lacticínios ou ovos. O estudo revela que 2% dos portugueses não consomem carne.

"Estimamos que o número de vegetarianos tenha aumentado. E são cada vez mais as pessoas que abdicam da carne ou que têm uma alimentação mais próxima da vegetariana", afirma Cristina Rodrigues, directora do Centro Vegetariano.

29.4.15

“Não estamos aqui para viver vidas úteis, mas vidas belas”

Vanessa Rato, in Público on-line

O conhecido economista checo Tomás Sedlácek vê o capitalismo como a nova religião global, com a sua própria cultura corporativa e escola ético-moral – a do egoísmo. Os novos padres não diferem muito das antigas videntes de feira a olharem para bolas de cristal, diz ele
Tomás Sedlácek tornou-se consultor do presidente checo Václav Havel logo aos 24 anos


Em 2001, com apenas 24 anos, tornou-se consultor do presidente Václav Havel e cinco anos depois a Yale Economic Review apontava-o como um dos cinco melhores jovens pensadores na área da economia. O autor de Economics of Good and Evil esteve em Lisboa como orador do fórum O Lugar da Cultura, organizado pela Secretaria de Estado da Cultura. Pôs a hipótese de estarmos a atravessar não uma crise, mas o momento a seguir ao clímax em que temos de voltar a traçar objectivos. Pediu também que deixemos de parte o imperativo capitalista de nos consumirmos em “vidas úteis” – Sedlacék, que vê a economia como um sucedâneo das humanidades, diz que o que temos de ter são vidas belas.

Na sua conferência começou por questionar se não estaremos hoje a viver uma espécie de “depressão pós-coito” em relação à União Europeia e ao capitalismo. O que é que isto quer dizer, exactamente?
Se pensarmos bem, as nossas queixas contra a União Europeia (UE) e o capitalismo são muito semelhantes. Em ambos casos achamos que o sistema de certa forma funciona, mas o sentimento é de alheamento, de que o sistema tem uma lógica técnica própria que poucos, se é que alguns, entendem, de que tem a estrutura, os ossos e os ligamentos, mas lhe faltam a alma humana, um propósito e por aí fora. Toda a gente lê a [actual] situação [de crise] como se o capitalismo e a UE não nos tivessem dado suficiente, mas e se pudermos ler de forma oposta? Que em larga medida a UE e o capitalismo nos deram tudo o que puderam. Que em breve poderá chegar o tempo em que esgotámos a possibilidade de reformas e de novas ideias, que a economia ocidental não poderá já prosseguir a sua marcha de forma tão impressionante e que a integração em breve estará completa. E se o não-crescimento não for um percalço mas sim uma tendência? Em psiquiatria, um dos espoletadores surpreendentes da depressão é o atingir dos nossos objectivos. Porquê? Se nos focarmos de mais nos objectivos e os atingirmos, deixamos de ter sonhos, deixamos de ter motivo para acordar cedo pela manhã. A motivação perde-se não porque o objectivo fosse impossível de atingir, mas, precisamente, porque foi possível. O objectivo foi conseguido, o desígnio está morto. Precisamos de encontrar uma nova fantasia – mas não temos a certeza de qual. Não é esta, de certa forma, a nossa actual situação?

A UE e o capitalismo já cumpriram os seus objectivos?
Nada é perfeito. Até um programa de computador – o mais perfeito sistema criado pela humanidade, previsível, matemático, exacto – bloqueia de tempos a tempos e passa por um período de crise. Portanto, não estou a dizer que a UE e o capitalismo sejam perfeitos, mas essa também nunca foi a promessa.

Permita-me uma parábola. Um homem está a mugir uma vaca. A dada altura, a vaca deixa de dar leite. Por isso o homem começa a gritar com ela e a bater-lhe. Então, magicamente, a vaca abre a boca e pergunta: “Porque é que me estás a bater? Já te dei todo o meu leite! E tu nem sabes quantos baldes! A única coisa que sabes é que queres mais. Mas alguns dos teus baldes estão perdidos, outros a apodrecerem, a entornarem-se... E bates-me por não te poder dar mais leite?” É isto que tenho em mente. Que queremos medir o desenvolvimento – ou seja: o leite fresco –, mas nem temos as estatísticas correctas nem queremos saber quanto é que já temos. Tanto o capitalismo como a UE já nos deram muito leite, mas criticamo-los por não nos darem mais. Isto não é uma crise do capitalismo, é uma crise de crescimento do capitalismo. Eu olho para o capitalismo como olho para a UE: não é um sistema muito bom, mas é o melhor que temos. Ponto número um. Ponto número dois: a democracia precisa de estímulo, protecção e cultura constantes para se manter democrática; a democracia é constituída por leis, mas mais ainda pela cultura da democracia. O mesmo é verdade para o capitalismo. Ambos morrem se não forem cuidados.

O capitalismo e a UE já cumpriram os seus objectivos? O problema é que não sabemos realmente quais são esses objectivos. Em relação à UE era a paz através do comércio. A paz era o objectivo primário, o comércio o secundário. E temos paz dentro da UE e temos comércio – o Norte da Finlândia faz trocas comerciais com o Sul da Grécia com uma facilidade sem precedentes. Quanto ao capitalismo, nunca discutimos objectivos. Até que o façamos ele nunca os vai cumprir.

Uma tomada de consciência relativamente recente em termos colectivos na sociedade ocidental é a da “inumanidade do capitalismo”. Parecemos querer o capitalismo, mas com um rosto mais humano. É possível?
Sim. O capitalismo será cada vez mais humano se trabalharmos nisso. Mas nunca será completamente humano – pela simples razão de nem os humanos serem completamente humanos. Há 20 anos o capitalismo era muito diferente do que é hoje, não tinha quaisquer preocupações ecológicas, nenhumas soft skills, e tinha Recursos Humanos muito primitivos. Mas era, assim mesmo, capitalismo. Mudou por dentro. Há 100 anos, o nosso capitalismo tinha trabalho infantil, mulheres completamente discriminadas e protecção laboral zero – nem a mais extrema direita política quer isto hoje! O capitalismo e a democracia precisam de massa crítica para funcionar melhor.

Na sua conferência questionou também a hipótese de ao centro do capitalismo estar não um vazio ético, como parece, mas, antes, uma escola moral muito forte. Que escola é essa?
Pois, achamos que a economia não tem ética nem cultura, que ao centro do sistema há um vácuo moral e cultural, um vazio. Mas a realidade é bastante mais complexa. A economia e os negócios já têm uma ética e uma cultura próprias: a ética do egoísmo, de não querer saber do impacto das nossas acções porque a misteriosamente invisível mão do mercado alegadamente toma conta disso, a crença de que as pessoas existem para aumentar a sua utilidade, a postura de que os mercados são racionais e se auto-regulam, etc. Isto compõe uma escola ética muito forte. E que é contrabandeada para dentro do nosso sistema de valores disfarçada de ciência com bases matemáticas. Na verdade, é uma ideologia, uma nova religião global com a sua própria cultura corporativa, ética, crenças e padres.

É uma escola totalitarista? Por outras palavras: permite a existência de outras escolas de pensamento ou é mais como uma religião proselitista e que não concebe a coexistência de várias verdades?
Está entre as duas coisas. É bom notar que os economistas acreditam na liberdade humana, no livre arbítrio. Aos estudantes de Economia é que não é dada escolha entre escolas, crenças, etc. Para mim, a Economia é um sucedâneo das humanidades e deveria ser ensinada como tal. Imagine-se que numa área como a Filosofia apenas uma escola de pensamento era ensinada aos estudantes! Muitas escolas de Economia nunca usaram devidamente, ou usaram muito pouco, as ferramentas de análise matemática disponíveis. Pense-se em Keynes, Hayek ou Schumpeter…

E qual o lugar da arte no contexto de uma religião que concebe apenas a utilidade? Foi encandeados por essa religião que começámos, por exemplo, a medir o impacto da arte e da cultura no PIB dos países? Sim, como aconteceu com outros valores do passado, a arte tornou-se num subproduto da economia – só é permitida se tiver uso económico. Mas eu sempre pensei que a arte estava isenta do imperativo da utilidade económica. Nem tudo na vida tem de ser útil, não me parece que estejamos aqui para viver vidas úteis, mas sim para viver vidas belas e que ofereçam o mesmo à maioria das pessoas.

Na sua conferência comparou os modelos da economia contemporânea às antigas bolas de cristal das videntes de feira. É esse o seu grau de desconfiança neles?
Até hoje os teólogos debatem se Deus é ou não um ser omnipresente e com conhecimento perfeito do futuro. Muitos acham que não. Então porque haveriam os economistas de conhecer o futuro quando nem as entidades divinas o conhecem? E porque não podem conhecer? Porque isso quebraria a possibilidade da verdadeira e imprevisível liberdade humana. O paradoxo é que essa imprevisível liberdade é uma das crenças centrais da Economia. Um modelo basicamente diz isto: se tudo acontecer da maneira que esperamos, acontecerá da maneira que esperamos. Nunca podemos antecipar as mudanças importantes, apenas escrever o prólogo das tendências. Além disso, as estatísticas sobre o PIB só são estabelecidas retrospectivamente, às vezes à distância de dois anos. Portanto, nem os gabinetes de estatística sabem qual é o actual PIB de um país, quanto mais o seu futuro PIB. Mas todas as religiões precisam de ter os seus profetas, os seus videntes, aqueles a quem se pede que antecipem e interpretem o futuro.

E o que podem esses videntes dizer com segurança sobre o papel da arte e da cultura?
Que a democracia sem cultura morre, à semelhança do que aconteceu à economia como a conhecíamos. Podemos ter dois países exactamente com as mesmas leis. Se um tiver homens de negócios cultos, compreensivos e conscienciosos, esse país estará bem (mas, mesmo assim, viverá flutuações na economia, é inevitável). Se o outro país tiver as mesmas leis mas não tiver cultura, apenas egoísmo cego e autista, nas artes, na economia, na política, esse país será um sítio mau e triste onde viver.