Por José Manuel Fernandes e Graça Franco (Renascença), fotos de Adriano Miranda, in Jornal Público
Escolheu a diplomacia para falar do Governo e procurou ser didáctico na doutrina, nas relações entre as religiões e o Estado até ao papel da imprensa católica
O antigo bispo auxiliar de Lisboa, D. Manuel Clemente, trocou recentemente a capital pelo enorme Paço Episcopal do Porto, debruçado sobre o Douro. À frente da segunda maior diocese do país, debate-se com uma crescente falta de vocações e de novos padres, ao mesmo tempo que continua a ser uma das vozes mais ouvidas da Igreja Católica. Prudente, explicou-nos os porquês da tensão entre os bispos e o Governo vivida na semana passada.
Após sinais de uma crise nas relações entre o Estado e a Igreja, o encontro do primeiro-ministro com a conferência episcopal parece ter resolvido os problemas mais delicados. Foi só um arrufo momentâneo?
A nossa sociedade é hoje tão complexa que é natural existir alguma tensão no seu interior. Há sempre muitos interesses em jogo, mas se houver vontade de cooperar será sempre melhor para os portugueses. Tanto mais que a Igreja está presente em todos os sectores da vida e da sociedade.
Contudo ainda na quinta-feira D. Jorge Ortiga, em Fátima, disse que estamos perante "uma voragem laicista que de uma forma camuflada ou aberta procura afastar Deus da História do país e dos homens"...
D. Jorge tem o direito de reflectir sobre o que classifica como laicismo, até porque é indiscutível existir uma corrente que considera que tudo quanto é religioso não deve ter presença pública ou institucional, antes deve ser remetido para a chamada "consciência individual", que nem sei bem o que é porque a consciência é sempre relacional.
Quando se discute o conceito de Estado laico, há os que defendem que este não deve seguir qualquer religião mas respeitar os seus espaços e os que entendem que nos espaços públicos não há lugar para as religiões. Estas visões são realmente diferentes?
São. E são porque há quem entenda que um Estado laico é aquele que não dá espaço a mais nada para além das suas próprias instituições, e os que pensam, como eu, que um Estado laico deve dar lugar a tudo o que existe na sociedade. A laicidade do Estado não deve excluir realidades, sendo que algumas têm conotação religiosa.
O Estado laico é o Estado não confessional, não o Estado que exclui as religiões?
O Estado não deve condicionar os cidadãos às regras de uma religião, nem deve condicioná-los excluindo as religiões. O cidadão deve ter a oportunidade de conhecer e decidir, de poder escolher, e o Estado laico é o que permite que isso aconteça. Nas cerimónias públicas, por exemplo, deve ter em conta a tradição, a cultura, os sentimentos dos portugueses. Tanto deve ser neutro como deve respeitar o que sentem aqueles que participam nessas cerimónias.
Ao deixar que criasse um vazio legal, por falta de regulamentação, após a aprovação da Concordata em 2004, o Estado faltou às suas obrigações?
Estaria a faltar, mas julgo, pelo que se passou na conversa entre os representantes da Conferência Episcopal e o primeiro-ministro, que havia sobretudo inadvertência.
Porque é que a falta de regulamentação inquieta tanto os representantes da Igreja?
Porque nuns locais se aplica ainda a Concordata anterior, noutros a nova, noutros remete-se para a Lei da Liberdade Religiosa. Ora isso deixa à discricionariedade de um hospital ou de uma prisão saber se há ou não uma capelania, ou de em cada repartição de finanças qual o regime de IRS a aplicar, ou das escolas o estatuto dos professores de moral católica. A solução de aplicar a Concordata anterior até à regulamentação da Concordata de 2004 pareceu-me equilibrada e justa.
Então por que falou D. Jorge Ortiga de "voragem laicista"?
D. Jorge falava do problema mais global, onde se cruzam vários debates. Neste momento a preocupação foi só a de garantir que se conheciam as regras a aplicar até à regulamentação da Concordata.
A Igreja Católica possui muitas instituições de ensino e costuma ser acusada de andar sempre a pedir ao Estado. Desta vez pareceu notar-se uma inflexão no discurso, pois falou-se antes de garantir a liberdade de escolha das famílias, sobretudo das mais carenciadas, subsidiando-as em vez de subsidiar as escolas. Houve uma mudança de posição?
É verdade que muitas vezes houve a preocupação imediata de assegurar que as escolas sobreviviam, mas a opção de fundo deve passar por garantir a liberdade de escolha, a liberdade de educação. Essa preocupação corresponderia a uma leitura positiva da laicidade, pois o Estado gere um dinheiro que não é dele, é dos cidadãos, e se houver cidadãos que prefiram uma escola privada, se esta cumprir as regras estabelecidas, porque não há-de o Estado apoiar os alunos que, se esses apoios não existirem, ficarão privados, na prática, da liberdade de escolherem? Se numa área houver uma escola privada que funciona bem, porque há-de o Estado, que é responsável por gerir o bem comum, de criar a seu lado uma outra só para lhe fazer concorrência? E se essa escola for de uma confissão religiosa, qual é o problema? É apenas um sinal de expressão da sociedade que somos...
Mas a Constituição prevê que a rede pública cubra todas as necessidades...
Devemos olhar para essa disposição num quadro de subsidiariedade. O Estado não tem de actuar como sendo o executor único do bem público, antes deve actuar como catalisador de uma sociedade participativa.
É preciso ver a aplicação prática dessas leis. Mesmo a melhor legislação pode às vezes dar origem às piores práticas.