Isabel Arriaga e Cunha, Bruxelas, in Jornal Público
A Conferência Intergovernamental arranca hoje e tem três meses para definir o texto do novo documento magno da União Europeia
Um novo projecto de tratado destinado a substituir a fracassada Constituição Europeia vai hoje ser apresentado por Portugal aos seus pares da União Europeia (UE), abrindo um processo de negociações que Lisboa espera concluir num prazo máximo de três meses.
Se tudo correr como previsto, as negociações, que serão hoje formalmente inauguradas pelos ministros europeus dos Negócios Estrangeiros durante a primeira sessão de uma Conferência Intergovernamental (CIG) convocada para o efeito, serão concluídas com a aprovação do novo tratado na cimeira de líderes dos Vinte e Sete de 18 e 19 de Outubro, em Lisboa.
Portugal, que preside à UE desde 1 de Julho, foi incumbido na última cimeira, em Junho passado, da responsabilidade de pilotar a redacção do novo tratado com base num mandato "claro e preciso" então aprovado. Este texto, laboriosamente negociado pela anterior presidência alemã da UE, determina de forma detalhada as disposições da Constituição que deverão ser retomadas no novo texto e de que forma, e aquelas que deverão ser eliminadas, caso, nomeadamente, dos símbolos europeus - bandeira, hino ou moeda. O que significa que o que resta agora fazer será sobretudo a tradução jurídica dos termos do mandato para um novo texto.
O risco polaco
Este plano poderá, no entanto, ser ameaçado pela Polónia, o país que maiores dificuldades teve em aceitar o mandato, por discordar do novo sistema de dupla maioria qualificada (55 por cento de Estados e 65 por cento da população) que vai passar a vigorar nas decisões do Conselho de Ministros da UE. Os gémeos Lech e Jaroslaw Kaczysnki, respectivamente Presidente e primeiro-ministro da Polónia, só se associaram ao acordo final depois de terem obtido o adiamento da aplicação da dupla maioria para uma data entre 2014 e 2017, a par da garantia de perenização de um mecanismo que obriga o Conselho de Ministros a adiar uma votação e prosseguir as negociações sempre que um grupo de países com um número de votos próximo de uma "minoria de bloqueio" o pedir. Este mecanismo, mais conhecido por "compromisso de Ioanina", está previsto desde 1994 no processo de decisão da UE, mas nunca foi invocado.
Já depois da cimeira, o Governo polaco anunciou a intenção de reabrir a discussão sobre esta questão durante a CIG para garantir que a suspensão de uma votação ao abrigo do "compromisso de Ioanina" poderá durar dois anos, alegando que foi isso que lhe foi prometido na cimeira de Junho. Os restantes líderes da UE negam esta versão, mas os gémeos Kaczynski, sob a pressão dos parceiros eurocépticos da coligação governamental, mantêm-se firmes.
Reabrir a caixa de Pandora?
O risco de reabertura do mandato de negociação que todos os outros países querem manter intacto, de modo a evitar o risco de uma discussão em cadeia sobre outros temas, comprometendo o calendário para a conclusão do processo, suscitou um sem-número de contactos telefónicos de alto nível nos últimos dias - incluindo entre o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, e a sua homóloga polaca, Anna Fotyga - para convencer Varsóvia a mudar de ideias.
A presidência portuguesa da UE mantém-se, no entanto, serena e procura desdramatizar os cenários pessimistas: "Não temos qualquer indicação de que a Polónia ou outros Governos queiram reabrir o mandato" de negociação, afirmou um responsável da presidência. "Pelo contrário: as indicações que temos dos polacos é que querem respeitar o mandato que aprovaram", acrescentou.
Ninguém exclui, igualmente, a possibilidade de o actual Governo do Reino Unido levantar outro tipo de obstáculos ligados às cláusulas de isenção obtidas pelo anterior primeiro-ministro, Tony Blair, à aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais e à cooperação policial e judiciária em matéria penal.
Ninguém prevê, no entanto, que eventuais dificuldades surjam durante a primeira fase das negociações: o mais provável é que, se aparecerem, se manifestarão nas discussões ministeriais da CIG, a partir do início de Setembro, ou mesmo já na própria cimeira de líderes de Outubro.
O que é e como funciona a CIG
Menos de uma hora é o tempo que deverá durar a cerimónia de hoje entre os ministros dos Negócios Estrangeiros dos Vinte e Sete que marcará o arranque formal da Conferência Intergovernamental (CIG) encarregada de acordar um novo tratado europeu.
Além da distribuição a todas as delegações do primeiro projecto de tratado que constituirá o ponto de partida dos trabalhos dos próximos meses, e de alguns discursos de circunstância, não está prevista para hoje qualquer sessão de negociação.
As coisas a sério arrancam amanhã, com a primeira reunião de um grupo de juristas representantes de todos os países, que iniciam um longo trabalho de passagem do texto a pente fino para garantir a sua coerência, e que ocupará, previsivelmente, todo o mês de Agosto. Eventuais problemas que possam surgir neste processo serão analisadas por um segundo grupo, constituído pelos representantes pessoais dos primeiros-ministros, em reuniões que serão convocadas se e quando necessário.
A arbitragem política, e a consolidação dos avanços conseguidos nos dois grupos técnicos ficará a cargo dos ministros dos Negócios Estrangeiros, que terão uma primeira discussão durante a sua reunião informal de 7 e 8 de Setembro, em Viana do Castelo, e pelo menos mais uma, um mês depois, no Luxemburgo.
Mesmo sendo o calendário apertado, a expectativa generalizada entre os Vinte e Sete é de que o facto de esta CIG dispor de um mandato de negociação preciso deverá permitir concluir todo o processo em três meses.
O facto de o Tratado da UE reconhecer o direito a todos os países de apresentarem propostas à CIG permitirá, no entanto, à Polónia dos gémeos Kaczynski (nas fotos) , se o entender, voltar à carga com o sistema de votos no Conselho de Ministros da UE.
Uma CIG é a única instância que tem o poder de alterar os tratados europeus. Nesta encarnação por excelência da componente intergovernamental da integração europeia, todos os países têm o mesmo peso. Os seus trabalhos podem durar escassos minutos, à margem de uma reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros, para aprovar uma decisão menor do direito primário europeu. Em regra, no entanto, arrastam-se durante vários meses, em reuniões envolvendo diferentes níveis de poder, até ao acordo final, por unanimidade, ao nível dos chefes de Estado ou de governo.
A que será hoje lançada será a sexta "grande" CIG desde aquela que levou ao Tratado de Roma, em 1957, e tem boas possibilidades de ser uma das mais curtas de sempre. Se tudo correr como o previsto.