in Correio do Ribatejo
O Ano Europeu de Combate à Pobreza e Exclusão Social está a chegar ao fim, mas a luta vai continuar. Não tem termo certo, como o trabalho precário de muitos portugueses. Em vésperas do Dia Internacional de Combate à Pobreza - 17 de Outubro, o Correio do Ribatejo foi ao encontro do Núcleo Distrital de Santarém da Rede Europeia Anti-Pobreza (REAPN) e ouviu a opinião de Pedro e Helena, pessoas a (sobre)viver com o Rendimento Social de Inserção. De ambos registámos duas palavras reveladoras da grande riqueza que possuem: "Não desisto".
"Ninguém é beneficiário do Rendimento Social de Inserção [RSI] por gosto. Não é esse o objectivo de nenhum ser humano". Pedro Gonçalves, beneficiário do RSI, sabe do que fala. Desempregado, com 47 anos de idade, a residir em Santarém, procura "abrir novas portas à medida que outras se fecham", como próprio diz. Está consciente de que há casos mais dramáticos do que o seu, mas afirma com clareza: "Se é preciso bater no fundo para termos uma ajuda, poderá tornar-se demasiado tarde. Quando as portas se fecham completamente, as pessoas deixam de ter forças para as abrir de novo".
Convicto de que todos nós devemos ajudar a abrir essas portas, o Núcleo de Santarém da Rede Europeia Anti-Pobreza desenvolve, desde 2003, um trabalho de investigação e intervenção, tentando sensibilizar e envolver toda a sociedade civil.
"Há muitos preconceitos em relação à pobreza na nossa sociedade. Há, por exemplo, quem pense que ela só afecta quem não quer trabalhar. Verificamos, também, ao longo do nosso trabalho, que grande parte da população associa a pobreza a gente rota, mal vestida e suja, o que não corresponde à realidade. Tentamos desconstruir ideias falsas e sensibilizar a comunidade para um combate que tem que ser de todos", disse-nos Ricardina Reis, técnica do Núcleo Distrital da REAPN.
"Dar voz"
Em funcionamento desde 2003, o Núcleo, coordenado por Fernando Lucas e Tília Fonseca, tem por finalidade desenvolver, juntamente com outras instituições, estratégias de intervenção social, com vista a erradicar/atenuar a pobreza e a exclusão social. No seu seio, existe um grupo de auscultação, constituído por oito pessoas em situação de pobreza. "São oito mas pretendemos alargar este número. É importante dar voz àqueles que vivem o problema, para que, juntos, possamos partilhar ideias e organizar propostas", explica Ricardina Reis. O grupo tem participado em reuniões e sessões de esclarecimento sobre criação do próprio emprego, entre outros temas (em breve, haverá uma sessão sobre micro-crédito).
Os contributos recolhidos pelos núcleos do REAPN existentes nos 18 distritos do território nacional continental serviram de base para o documento com cinco propostas, apresentado no passado dia 7 de Outubro, na Assembleia da República, no âmbito do II Fórum Nacional de Pessoas em Situação de Pobreza. A criação de um Programa Nacional de Combate à Pobreza, bem como a criação de um novo paradigma cultural, de sensibilização e participação a começar nos "bancos da escola" são duas das propostas apresentadas. A REAPN propõe ainda "uma economia mais humana", uma legislação "à prova de pobreza" e "a criação da década europeia de combate à pobreza".
Ricardina Reis afirma que o Ano Europeu, prestes a terminar, não irá representar o fim da acção até agora empreendida. "O combate tem que prosseguir". Até porque o fenómeno da pobreza corre o risco de aumentar. As vitórias não são imediatas, mas há sementes que demoram a dar frutos. Há que acreditar e lutar. Com base nestes pressupostos, a REAPN não desiste da sua dinâmica, tentando, acima de tudo, "servir de lobby ou grupo de pressão junto dos decisores políticos", disse a técnica.
"Vim parar cá abaixo"
Alheia a lobbys tem sido a vida de Maria Helena, cidadã em situação de pobreza, residente na cidade de Santarém. Uma vida de trabalho, a fazer limpezas ou a cortar carnes em matadouros. "Cheguei a ganhar 120 contos por mês. Estive lá em cima e, de repente, vim parar cá abaixo", disse-nos com uma simplicidade desarmante.
Maria Helena, com 120 contos (600 euros), sentia-se no topo. Em 2006, ficou desempregada. "O contrato chegou ao fim…". Tem 42 anos, dois filhos (com 22 e 17 anos) e um neto (com 4 anos), a viver consigo.
"Não desisto de procurar emprego, mas não é fácil", sublinha. "A idade também não ajuda", acrescenta, deixando transparecer, na juventude do olhar, o sentimento de absurdo perante um mercado de trabalho que promove o envelhecimento precoce.
Enquanto não consegue emprego, Helena tenta valorizar-se. Completou o 12º ano através do programa Novas Oportunidades e tem feito diversas formações: "Fidelização de Clientes", "Técnicas de Venda", "Gestão de Eventos"… São tantas que até tem dificuldade em recordar o nome de todas as acções.
Helena beneficia do Rendimento Social de Inserção (perto de 190 euros por adulto), que fica longe de cobrir todos os gastos mensais, apesar da apertada contenção de despesas.
"Não foi fácil conseguir o RSI, temos que provar que somos realmente necessitados. Os técnicos são muito exigentes, o que é bom. Mas conheço pessoas que se queixam de que alguns só querem complicar… Eu não tive razão de queixa. Penso que tudo vai da maneira como se fala. Temos que ser educados, manter a calma…", explica.
Foi a equipa que avaliou o seu processo de RSI, que a encaminhou para o Núcleo de Santarém da REAPN. Desde Julho deste ano, faz parte do grupo de oito pessoas em situação de pobreza, a que o Núcleo pretende dar voz activa.
"Acho que é interessante pertencer ao grupo e espero que ele continue a sua actividade. Em cada reunião, aprendo qualquer coisa nova que pode ajudar a dar resposta aos meus problemas. Sinto, também, que não estou sozinha, há mais pessoas na mesma situação que eu, entreajudamo-nos e ouvimo-nos uns aos outros".
"Não somos ilhas"
Pedro Gonçalves, 47 anos de idade, residente na cidade de Santarém, é igualmente, um cidadão em situação de pobreza. Também ele pertence ao grupo do Núcleo de Santarém, onde exerce as funções de porta-voz, tendo sido um dos representantes da delegação portuguesa no fórum sobre a pobreza em Bruxelas, no Verão passado. Fala fluentemente, tem uma grande capacidade crítica e admite que, por vezes, se "excede" ao ponto de provocar "alguma ebulição". Mas, argumenta, "nunca é de mais reivindicar quando se trata de seres humanos".
Aprendeu a olhar os outros com olhos de ver, desde que há cerca de um ano atrás, ficou desempregado. O pai, que sempre lhe servira de suporte financeiro para os momentos difíceis, falecera. Teve que recorrer ao RSI, apoio que não o livra de privações. "Só tomamos consciência da pobreza quando ela nos bate à porta", afirma. "Vivemos numa sociedade muito egoísta, incapaz de olhar à volta. É preciso mudar este estado de coisas. Não somos ilhas. Já senti na pele a indiferença dos outros, por isso, não mais poderei ficar indiferente". Conta-nos, impressionado, o caso de uma senhora de 65 anos, que conheceu no núcleo de Santarém, a qual confessou ter que optar entre comprar comida ou comprar os medicamentos de que a sua saúde necessita. "Hoje, já tomei o pequeno-almoço, mas sei que há quem não tenha possibilidade de o tomar".
"Mudar é possível"
Pedro Gonçalves tem o 12º ano de escolaridade e vocação para o artesanato e artes plásticas, a que se dedica. É nesta área que pretende criar o seu próprio emprego. Não duvida de que é capaz, apesar das dívidas à banca, contraídas na compra de casa quando tinha uma situação económica favorável. Dívidas que lhe limitam o espírito empreendedor, mas não a capacidade de sonhar.


