Ana Castarina André, in RR
Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do Público, o psiquiatra e membro da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI), esclarece que a comissão não falou em encobrimento por parte de bispos no ativo, mas em “ocultações” e sublinha a importância de membros da hierarquia pedirem perdão publicamente.
A Comissão Independente foi constituída há quase quatro meses, que balanço faz deste período?
É um balanço de muito trabalho, temos procurado recolher testemunhos e validámos, até ao momento, mais de 300 testemunhos. Necessitamos da comunicação social para que o nosso apelo ao testemunho continue. Temos encontrado uma boa recetividade por parte das instituições que trabalham com crianças e jovens e, de uma forma geral, temos tido também um bom apoio da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Como é sabido, foi a Conferência Episcopal que, em dezembro, nomeou o doutor Pedro Strecht como coordenador e ele depois constitui a equipa. Esse apoio da CEP é fundamental para conseguirmos prosseguir o nosso trabalho.
Sabendo que o método de investigação usado pela comissão independente difere de métodos utilizados noutros países, alguns deles contestados como por exemplo em França, como é que chegaram a este método?
Temos semelhanças com o que se passa noutros países. [O método da comissão] é diferente do de Espanha, por exemplo, em que há uma firma de advogados que faz esse trabalho. Mas na Bélgica, na Irlanda, na França são comissões parecidas com a nossa. Nós preocupamo-nos sobretudo com as vítimas. Como o nosso lema diz, nós queremos dar voz ao silêncio. Queremos que as vítimas testemunhem porque o simples facto de testemunhar constitui uma reparação muito importante para a vítima.
Ou seja, a vítima está durante muito tempo envolta na sua culpa, na sua vergonha. Aquilo que pode ter confidenciado a algumas pessoas não foi validado e esse é um aspeto central: a validação que nós fazemos de uma queixa de abuso sexual. Essa queixa muitas vezes não é validada pela família, pelos professores ou pelos amigos.
Estas pessoas estão envoltas num manto de silêncio, de culpa e de vergonha. O simples facto de testemunharem é importante, através do telefone ou através do e-mail e algumas fazem-no presencialmente.
O que pensamos concluir deste estudo é podermos ter uma perspetiva preventiva, podermos recomendar às instituições, que lidem com crianças, medidas no sentido de este comportamento não se repetir. Esse é o estudo fundamental.
Qual é a sua intervenção especificamente atendendo a que é psiquiatra, está mais direcionada para esta área da triagem dos testemunhos?
Não, não sou eu que atendo o telefone. Quem atende o telefone é uma assistente social, membro da comissão, a doutora Filipa Tavares. O meu trabalho é nas reuniões presenciais. Tenho estado em todas as entrevistas presenciais e também nas entrevistas aos senhores bispos. Esse tem sido o meu papel dentro da comissão, além de discutir todas as questões que se levantam porque todos os dias se levantam questões porque praticamente todos os dias há testemunhos e é preciso também dar uma resposta ao enquadramento desses testemunhos.
Quais são as questões mais difíceis de dirimir, já que os testemunhos levantam inúmeras questões que têm a ver com os sítios onde terão ocorrido ou os autores dos crimes?
No fundamento não temos nenhuma dúvida: ninguém inventa as histórias que nos contam. São histórias de grande sofrimento e o nosso inquérito está construído com uma consistência interna que qualquer pessoa que tente preencher o inquérito a brincar, nós percebemos. As perguntas têm uma coerência.
Além disso, a situação é de tal modo difícil para as pessoas falarem que ninguém inventa os pormenores com que o inquérito é feito. É justamente a validação do testemunho que não tem levantado problemas nenhuns.
Há [também] uma questão muito importante que é o apoio às vítimas. A comissão não é uma comissão de saúde mental nem uma linha aberta para as pessoas falarem. Portanto, temos encaminhado algumas pessoas para seguimento psicológico e psiquiátrico. Não encaminhamos, aliás, recomendamos.
Em situações que foram detetadas em que há um padre que cometeu um abuso sexual, em que há indícios por parte da vítima de que tenha sido o padre “x”, há a preocupação de saber onde é que esse padre poderá estar. Porque sabemos que, em muitos casos e à semelhança de outros países, esses padres são transferidos para outras dioceses, para outros locais. E essa é uma preocupação que está entregue ao Ministério Público, que é os casos que estão de alguma forma ativos. Nós podemos ter uma ação também sobre a pessoa que fez o abuso porque isso é preocupante, porque o abuso sexual é compulsivo por parte do abusador. É altamente provável que essa pessoa repita o seu comportamento noutro contexto.


