Por Sara Almeida, in Expresso das Ilhas
Erradicar a pobreza extrema e reduzir a pobreza absoluta é o objectivo máximo de Cabo Verde, e todos os sectores trabalham transversalmente para o mesmo desiderato, garante Lídia Lima. O foco são as famílias, em particular as crianças. Em conversa com o Expresso das Ilhas, por ocasião do Dia Mundial da Família, 15 de Maio, a Secretária de Estado da Inclusão Social fala da situação socio-económica das famílias, dos programas em curso e de projectos futuros para proporcionar uma infância tranquila às crianças, trabalhando (também) assim para quebrar os ciclos de pobreza e garantir a continuidade do desenvolvimento do país.
Quando se fala das famílias cabo-verdianas, a secretária de Estado para a Inclusão social (SEIS) destaca, desde logo, a situação sócio-económica das mesmas. E um olhar pelos números ajuda a caracterizar essas famílias que hoje Cabo Verde tem. Neste momento, em aproximadamente 500 mil habitantes, há cerca de 175 mil pessoas pobres, 115 mil das quais em situação de pobreza extrema. Representam 31,6% da população nacional, uma taxa enorme que está no centro das preocupações do país e que mostra um retrocesso. Como lembra Lídia Lima, em 2019 a taxa de pobreza era de 26%, o que representava então um grande avanço face a 2015, em que era de 35%. Depois vieram a pandemia e a seca e a pobreza aumentou.
“São duas crises que estamos a enfrentar. Agora estamos a sair da pandemia, com uma verificação da retoma da economia, mas temos uma seca severa”, observa.
Cadastro Social
Um dos principais instrumentos no combate à pobreza, e que permite maior assertividade na definição das políticas sociais e na sua aplicação e direccionamento para quem realmente precisa, é o Cadastro Social Único (CSU).
Neste momento, estão registados no CSU 79.051 agregados familiares (305.965 indivíduos), divididos em grupos: grupo 1 – pessoas em situação de pobreza extrema (cerca de 25 mil agregados); grupo 2 - na pobreza (20.800 agregados); grupo 3 – vulneráveis (17 mil), grupo 4 - não pobres.
Embora isso mostre que de 60% da população já está cadastrada, nem todos os concelhos conseguiram registar todas as famílias pobres no CSU, lamenta Lídia Lima.
É com base no CSU que os programas vão então sendo direccionados para as famílias dos grupos prioritários. “Só que os desafios são enormes porque temos de estar constantemente a actualizar o cadastro”, explica.
Agregados que na altura do registo pertenciam a um grupo, com as crises podem ter passado para o nível abaixo. “Famílias que antes estavam no grupo 3, por exemplo, passaram para o grupo 1 ou 2”. Algumas que estavam no grupo 4 podem ter passado para o 3. “As coisas foram mudando, a situação socioeconómica mudou, então isto implica uma mudança também da situação no seio das famílias”.
Uns perderam o emprego, outros tinham um negócio que deixou de render, outros filhos emigrantes que não conseguiram continua a mandar remessa…
É então necessária uma actualização do cadastro, o que já começou a ser feito em alguns concelhos. Muitas vezes são até as próprias famílias “que já estão a entender o funcionamento do cadastro, “que se vão dirigindo às Câmaras para solicitar a actualização do seu registo”, comenta.
Programas
A pandemia veio na verdade testar um conjunto de instrumentos e iniciativas já anteriormente estabelecidos. “Veio a crise e esses programas contribuíram de uma forma espectacular para equilibrarmos a situação social”, analisa.
Um deles foi o referido CSU. Mas também o Rendimento Social de Inclusão (RSI), que como medida emergencial foi alargado a um maior número de beneficiários. Tem conta a retoma da economia e insustentabilidade da manutenção do alargamento emergencial, a medida já foi suspensa.
“É uma obrigação do Estado apoiar as famílias quando estão a passar por dificuldades extremas e não há outra saída. Fizemos aquilo que tinha de ser feito”, mas o Estado não poderia “continuar a suportar um custo de mais de 100 mil contos mensais só com o RSI”, explica.
Assim, passada a emergência (e vinda a retoma), o esforço concentra-se agora em “ajudar as famílias a ganhar a sua independência económica. Empoderá-las e ajudá-las a saírem da situação de pobreza”.
É com esse o objectivo que está ser implementado o programa inclusão produtiva, actualmente a funcionar em 9 concelhos e que deverá ser alargado a todo o país até ao final do mandato. O programa, que nesta fase abrange cerca de 2000 famílias, “consiste na capacitação profissional das famílias pobres e também aquelas que estavam a receber o RSI”. As mesmas receberão ajuda na criação de actividades geradoras de rendimento e gestão do autonegocio. O desafio, continua a SE, é paralelamente, levar as famílias que estão no sector informal a formalizar o seu negócio. Aliás, a pandemia veio mostrar bem essa necessidade de ter uma rede de apoio a nível da segurança social.
Foi inclusive essa falha que levou, também na pandemia, à necessidade de estabelecer o rendimento solidário (RSO), outra medida de emergência, “para socorrer muitas famílias que não tinham nenhum tipo de segurança social”.
“Então, estamos a trabalhar para garantir que essas pessoas que vivem do comércio informal, formalizem o seu negócio e estejam realmente incluídos nessa rede de segurança social. Ajuda o país. Ajuda as famílias. E em momentos de crise podemos estar mais aptos, também a nível de governação para gerir todas as situações que vão surgindo”.
Além dos programas já referidos, outro que se destaca no apoio às famílias é o Programa Nacional de Cuidados, que Lídia Lima avalia ter sido “muito bem estruturado, implementado”. Aqui o desafio é, agora, “reforçar a sua actuação e alargar o número de beneficiários”.
A SE refere ainda o programa Apoio Integrado às Famílias, gerido pela direcção-geral de inclusão social e implementado através de contratos estabelecidos com as câmaras municipais, e que apoia as famílias com despesas de educação, saúde, criação de actividades geradoras de rendimento, entre várias outras.
No meio disto tudo, é ainda importante sensibilizar a “sociedade para aderir e aproveitar esses apoios que o Estado, através do Ministério da Família, vai concedendo”, sublinha a SE.
Crianças
Se tirar as famílias da pobreza é uma prioridade, o foco principal, e assumido, são então as crianças. Como refere, falando no geral, Lídia Lima: “O governo tem definido um conjunto de prioridades em todas as áreas, mas as crianças são a nossa prioridade absoluta e quando pensamos nas crianças estamos a pensar no futuro país, de acordo com os objectivos do desenvolvimento sustentável.”
Assim, reforça, “temos de trabalhar para erradicar a pobreza extrema, temos de trabalhar com os grupos mais vulneráveis, mas temos de dar uma maior atenção, às crianças, porque, para termos garantia de sustentabilidade, temos de ter crianças bem preparadas, inseridas socialmente para que possam no futuro também dar continuidade ao processo de desenvolvimento do país.”
Ora, há, neste momento, 91 mil crianças registadas nos grupos 1,2 e 3, do CSU. Ou seja, 91 mil crianças são pobres em Cabo Verde. “É um número expressivo, preocupante e que nos apela para intervenções rápidas e urgentes”, considera. Até porque priorizar as novas gerações é também dar ênfase à eliminação do ciclo de pobreza.
Para além da pobreza, outras situações que preocupam – e estão muitas vezes relacionadas com a pobreza - são: o abandono por parte das famílias, a desestruturação familiar, a falta de responsabilidade parental e a agressão sexual a crianças.
Vários ministérios, como o da Justiça (recorde-se que foi revista recentemente, no âmbito do novo código penal, a legislação sobre crimes de agressão e violação sexual das crianças) ou da Educação têm também tomado várias medidas para protecção dos menores, e da parte sob alçada particular do Ministério da Família está a haver um reforço do ICCA, tanto a nível das instalações como do aumento de recursos humanos.
“O ICCA está também a trabalhar com planos. Já foi avaliado o plano de combate à violência sexual contra as crianças de 2017-2021 e agora temos o novo Plano que vai até 2023. Vamos contratar um coordenador para trabalhar nesse plano, que iniciará as suas funções ainda neste mês de Maio”.
Está também a ser feita a revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma actualização que deverá resolver questões como o conceito de menor e situações que limitam a “intervenção judicial em determinados casos”, entre outros.
Responsabilidade parental
Neste desafio de proteger as crianças e proporcionar-lhes uma infância tranquila há, pois, dois actores fundamentais. Um deles é o Estado, que tem o dever de amparar, criar condições lá onde haja necessidade e apoiar as famílias quando estas, sozinhas, não conseguem responder a todas as necessidades.
O outro actor fundamental são, como é óbvio, as famílias e é importante passar essa mensagem “de que a família tem as suas responsabilidades”.
Esta responsabilidade familiar, em sentido lato, passa por diversos aspectos. Um deles é o próprio planeamento. A SE refuta que a aposta, feita desde há décadas, no planeamento familiar não funcionou. “Já estamos a verificar uma diminuição da natalidade”. Porém, é necessário continuar a empoderar as famílias, particularmente as mulheres, até para “saberem fazer a gestão da sua vida, do seu estado emocional, do seu corpo, etc”, considera.
Depois há fenómenos a que os pais também devem ser chamados a responder e ser responsabilizados. Por exemplo, crianças sozinhas a deambular pelas ruas são um fenómeno relativamente comum, com efeitos perversos conhecidos (vulnerabilidade à violência, ao abuso sexual, ao consumo de drogas, etc).
Existe inclusive uma proposta de lei apresentada pelas Aldeias SOS, e que vai nesse sentido. A proposta foi partilhada e discutida entre parceiros, em reuniões em que a SE também participou. Infelizmente, nem todos concordam com a necessidade da existência dessa lei. “Há um foco na questão de subsídio de alimentação, mas essa lei não está a defender apenas esse direito da criança. Tem a ver com outras responsabilidades” parentais.
Lídia Lima, por seu turno, defende a necessidade de uma lei que efectivamente promova essa responsabilização. “As famílias estão a perder muitos dos bons princípios, dos bons valores. Então resgatar posturas e responsabilidades perante esta matéria, tem que ser através da lei. Só com valores, já não dá”, avalia. Através da Lei e com possível penalização “em relação ao acompanhamento e à educação dos filhos”.
“Não podemos desenvolver as sociedades sem regras, sem leis. Quando as pessoas não fazem algo, socialmente, de forma tranquila, tem de ser por imposição”, insiste.
Depois, é preciso fazer vigorar a lei e para tal “as instituições têm que ter mecanismos para realmente fiscalizarem o comportamento dos pais, mas também os estabelecimentos” que permitem menores no seu interior. A par dessas medidas deve haver “muita sensibilização e informação”.
“Temos de mostrar às famílias que elas também se vão perdendo quando os filhos se começam a perder”, acrescenta.
ATL
Voltando ao papel do Estado, neste caso do governo, Lídia Lima defende que mais do que projectos de grande envergadura, este trabalho de combate e prevenção de certas situações, deve ser feito com “pés no chão” e com respostas céleres e sustentáveis. Praticidade nas iniciativas. “Acho que nos falta-nos isso”.
“Há coisas que são muito simples, que se podem fazer com vontade e junção dos esforços- sociedade civil, governo, câmaras”.
Em relação, por exemplo, “à problemática da situação das crianças” que ficam nas ruas, esta é uma situação que tem a ver, muitas vezes, com a dificuldade de as famílias que trabalham acompanharem os filhos, em períodos contrários às aulas.
“As mães vão trabalhar e não sabem o que os filhos ficam a fazer durante o dia”.
Assim, uma proposta da SEIS, desde que entrou no governo, é “agilizar, de forma simples e sem muita burocracia, a criação de espaços nas diferentes localidades, nos bairros mais vulneráveis, para responder às necessidades dessas mulheres”. Ou seja, criar espaços onde as crianças possam ficar no período contrário às aulas.
Embora já existam alguns espaços assim, em alguns concelhos, estes são manifestamente insuficientes.
“Defendo a proliferação desse tipo de iniciativas, porque é assim que o Estado tem de ajudar”, sublinha. Ajudar as famílias, no sentido de “prevenir o surgimento de situações de crianças na rua e garantir o aproveitamento escolar das crianças. Tem que ser assim”.
Esses espaços devem, defende ainda, funcionar sob uma conjugação de esforços, num trabalho integrando vários sectores e tutelas. “As associações sozinhas não conseguem, mesmo com financiamentos, devem ser acompanhadas, apoiadas a diversos níveis”. E o trabalho deve ser feito não só com a criança, mas com a “criança integrada dentro da sua família”.
Entretanto, a criação desses espaços tipo ATLs implica envolvimento de parceiros como as CM ou Instituto do Património, para resolver questões como, por exemplo, o espaço onde os mesmos podem funcionar. Algo que não é muito simples. “São coisas que vão fazem-nos perder muito tempo, quando devia ser rápido”.
Mas este é um projecto de que se pretende ver surgir ainda nesta governação.
“Aquando estamos a fazer isso estamos a trabalhar para um país mais seguro. Tudo isso também dará respostas à questão da delinquência juvenil, à questão do surgimento do thugs, vários outros problemas. Então vamos falando, só falando de todos esses problemas, quando as soluções são tão simples”. Falta então juntar esforços, simplificar e realmente avançar…
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1068 de 18 de Maio de 2022.