Odete Severino Soares ,opinião, in Expresso
As organizações internacionais têm vindo a alertar para a urgência da tomada de medidas de proteção das crianças que fogem da Ucrânia, principalmente as crianças não acompanhadas. A prioridade é registar todas as crianças para evitar que estas desapareçam. À UE exige-se liderança e uma estratégia europeia para intensificar a ação de coordenação no espaço europeu
Quando as atrocidades cometidas em Bucha, perto de Kiev, nos foram dadas a conhecer, houve um sobressalto das opiniões públicas ocidentais que levou os governos europeus e americano a considerá-las crimes de guerra. Em pouco mais de um mês desde o início da invasão da Rússia à Ucrânia, em 24 de fevereiro, mais da metade da população das crianças, estimada em 7,5 milhões, foi obrigada a abandonar as suas casas, e a procurar refúgio, principalmente em países vizinhos, como a Polónia, a Roménia, a Hungria, a Eslováquia, a República Checa e a Moldova. Até ao momento, pelo menos 153 crianças foram mortas e 245 ficaram feridas, segundo dados do Ministério Público da Ucrânia.
As organizações internacionais, como a UNICEF e a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), mas também a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu, têm vindo alertar para a urgência da tomada de medidas de proteção das crianças que fogem da Ucrânia, principalmente as crianças não acompanhadas, dado que correm um risco acrescido de violência, abuso e exploração. Existe, ainda, um risco adicional de as crianças desaparecerem e serem vítimas de tráfico, especialmente quando cruzam as fronteiras.
A par desta situação, temos mais de 100.000 crianças, metade das quais com deficiência, a viver em instituições e internatos na Ucrânia, segundo dados da UNICEF, pelo que são precisas medidas para agilizar a sua retirada e garantir a sua transferência em segurança para instalações adequadas nos países de acolhimento.
A situação exige liderança e é isso que se espera agora da UE e dos seus líderes políticos: abordar a situação específica das crianças ucranianas, assegurando que não estamos a deixar nenhuma criança para trás. Há sinais positivos. A Comissão e a presidência francesa do Conselho estão a elaborar um plano de 10 pontos para reforçar a resposta europeia. Esta inclui uma plataforma de registo de todas as crianças que fogem da guerra na Ucrânia, prevendo a possibilidade de troca de informação entre os Estados-membros, assim como a coordenação em matéria de transportes e alojamento. A par disso, estão a ser elaboradas orientações específicas para o acolhimento e apoio às crianças, em cooperação com a Agência da União Europeia para o Asilo.
A prioridade é registar, registar, registar todas as crianças para evitar que estas desapareçam, segundo as palavras da Comissária europeia dos Assuntos Internos da UE, Ylva Johansson. Isto significa que todos os países de acolhimento têm de assegurar o seu registo, de forma a garantir a possibilidade de intercâmbio das informações sobre a localização e o registo inicial das crianças, com particular atenção para as crianças não acompanhadas, que devem ser registadas em todos os países para os quais viajam, a fim de facilitar o reagrupamento familiar, evitando-se situações como aquela em que as autoridades da Lituânia estão a investigar o possível tráfico de 43 crianças para adoção.
Um dos sinais do grande desespero das famílias ucranianas é evidente na decisão de alguns pais que, temendo ser mortos, decidiram escrever contacto de parentes nos corpos dos filhos para que, caso lhes acontecesse algo, as crianças pudessem ser ajudadas e/ou identificadas, evitando o risco do seu desaparecimento.
Em Portugal foi criada, e bem, uma plataforma de registo e proteção para crianças ucranianas e também de identificação de famílias que estejam disponíveis para acolher crianças de uma forma acompanhada e controlada, com a participação de vários Ministérios e entidades públicas. De acordo com o balanço apresentado, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) comunicou ao Ministério Público a situação de 360 crianças ucranianos que chegaram a Portugal sem os pais ou representantes legais, casos em que se considera não haver "perigo atual ou iminente". Paralelamente, o SEF comunicou também à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) a situação de nove crianças que chegaram a Portugal não acompanhadas, mas com outra pessoa que não os pais ou representante legal comprovado, representando estes casos "perigo atual ou iminente". Segundo o SEF, foram autorizados pedidos de proteção temporária a 10.353 menores.
No entanto, permito-me lançar as seguintes questões, na certeza de que as respostas serão uma garantia fundamental para as crianças ucranianas que pedem proteção ao nosso país: quem tutela, quem supervisiona, quem encabeça o grupo especial de composição multidisciplinar de acolhimento e integração? Quem responderá pelos ilícitos que possam vir a surgir mercê da dispersão de responsabilidades?
Convém referir que em Portugal as crianças que cheguem ao nosso país sozinhas, são tarefa dos Tribunais, competindo, nomeadamente, aos de Família e Menores, decidirem relativamente ao seu futuro, bem como ao Ministério Público, representá-los e promover o seu bem estar físico e emocional, promovendo quer a sua integração em instituição estatal, quer o acolhimento familiar, ou, em sede de medida a aplicar em processo de promoção e proteção, destinado a acautelar situações em que a criança se encontre em perigo, aplicar a medida de proteção de confiança a pessoa (s) idónea (s).
Por sua vez, o Parlamento Europeu adotou uma Resolução, por larga maioria dos eurodeputados, no dia 7/04, sobre a proteção, pela UE, de crianças e jovens que fogem da guerra na Ucrânia, preconizando uma abordagem abrangente e de grande alcance, desde a existência de corredores humanitários prioritários para as crianças, o registo imediato de todas as crianças que chegam às fronteiras em fuga à guerra na Ucrânia para evitar tráfico e adoções ilegais, a nomeação, logo na fronteira, de tutores para as crianças não acompanhadas, até ao acesso à educação e à saúde em igualdade com as crianças dos países que as acolhem. Refere, ainda, que as crianças não acompanhadas e separadas e as crianças em acolhimento institucional devem ter, de imediato, um tutor nomeado, devendo "os serviços de proteção da criança do país de acolhimento monitorizá-los continuamente para verificar o seu bem-estar e localização após a chegada à UE".
É uma mensagem política forte que se espera que tenha eco nos líderes europeus. A UE não pode hesitar. É preciso fazer mais. Rapidamente. Exige-se a adoção de uma estratégia europeia para intensificar a ação de coordenação no espaço europeu. É nosso dever dar a estas crianças respostas concretas, construir um sistema em que as crianças sejam devidamente protegidas, tendo em conta o seu superior interesse, e por isso, baseado nas circunstâncias individuais, específicas de cada criança, como a sua situação familiar, vulnerabilidades específicas, segurança, os riscos aos quais esteve exposta, condição física e mental, entre outras. Isto significa, tratar as crianças que agora fogem deste conflito, acima de tudo, como crianças.
Entretanto, temos que continuar a registar, registar, registar.