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29.7.22

PRR para a habitação é "gota de água num oceano"

Filipe Santa-Bárbara, in TSF

Vai o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) resolver os problemas da habitação no país? Foi isso que a TSF foi tentar perceber junto de dois investigadores académicos e especialistas no tema. Teresa Costa Pinto (ISCTE) e Gonçalo Antunes (FCSH/UNL) congratulam-se pelo facto de haver verbas específicas, mas não acreditam que os problemas sejam resolvidos com a "bazuca".

"Gota de água num oceano". As palavras são da investigadora Teresa Costa Pinto, especialista em habitação e estudos urbanos no ISCTE, sobre o modo como as verbas do PRR destinadas à habitação vão ter um impacto no mercado da habitação em Portugal. Já Gonçalo Antunes, também especialista e investigador na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sublinha que o grande problema é estar a "propor políticas de habitação pública" e não "políticas públicas de habitação".

São mais de 2700 milhões de euros que estão destinados a dar um impulso para resolver os problemas da habitação em Portugal, uma grande fatia - de mais de 1200 milhões - é mesmo para o programa de apoio ao acesso à habitação e que visa dar resposta a necessidades básicas numa previsão para 26 mil famílias, um número que hoje já se sabe estar desatualizado.


"Temos um problema demasiado complexo e abrangente para ser resolvido na sua forma cabal por estes programas que estão em cima da mesa", nota Teresa Costa Pinto lembrando que, no caso da habitação pública, "partimos de um patamar muito baixo" de cerca de 2% quando a média da União Europeia está nos 7%.

Destaca a investigadora que, mesmo para chegar a uma fasquia dos 5%, como é o caso da Alemanha, seria necessário "mais de 170 mil fogos", um número que fica bastante acima daquele que está previsto no Plano de Recuperação e Resiliência.

Já Gonçalo Antunes também defende que é necessário um aumento do parque habitacional público, mas nota à TSF que "não será nenhuma panaceia" para solucionar os problemas da habitação, "muito menos todos os problemas".

"Dificilmente irá contribuir para diminuir os preços do mercado, seja na compra ou no arrendamento, como já ouvi dizer alguns responsáveis públicos. O crescimento do parque habitacional público não fará isso porque a dimensão daquilo que está previsto não é suficiente para contrariar as tendências do mercado", vinca o investigador da FCSH que considera "redutor" o modelo de aplicação do PRR por "propor políticas de habitação pública e não propor políticas públicas de habitação".

Mais regulação?

Além das respostas a carências básicas de habitação, há uma verba de 775 milhões de euros a título de empréstimo para "construção e reabilitação para disponibilização do património público devoluto do Estado, com aptidão habitacional, para promoção de arrendamento a preços acessíveis". O que, nos objetivos do governo, se traduz em 6.800 fogos de habitação acessível em todo o país.

Para ambos os investigadores, o número é manifestamente insuficiente. "Um programa destes, que se propõe disponibilizar 6.800 fogos em seis anos para o mercado de arrendamento a custos acessíveis, não creio que possa solucionar este problema que é complexo e de grande abrangência social", começa por notar Teresa Costa Pinto.

A professora do ISCTE realça que "além do problema da provisão pública, nos vários sentidos", é necessário "colocar outras variáveis na equação" que, no seu entender, "passarão muito pela regulação e pela capacidade que o Estado tiver de regular os mecanismos do mercado".

"Para mim, é um bocadinho paradoxal e completamente ausente de sentido ajudar a criar lógicas - e criaram-se lógicas com vários programas e pacotes legislativos - cuja consequência foi a especulação imobiliária e a subida exponencial dos preços e, depois, para tentar colmatar os efeitos colaterais destes mecanismos, o Estado ter de criar apoios para mitigar este problema", nota.

"Conhecemos experiências internacionais que, às vezes, nos parecem radicais e que não defendo que sejam transpostas linearmente para o contexto português, mas pelo menos deveriam desencadear uma reflexão sobre o assunto", destaca a investigadora.

Já Gonçalo Antunes é um pouco mais avesso a essa questão, nomeadamente, quando se fala em congelamento de rendas ou a fixação de tetos máximos. "Tenho de confessar que tenho sempre algum pé atrás relativamente a essas medidas, definir tetos de rendas e outras medidas similares, elas acabam por ser o contrário do mercado e negam a existência do próprio mercado", afirma o professor da Nova.

"É preciso perceber que os próprios tetos de rendas, como o exemplo de Berlim, não são nenhuma solução ou panaceia e acabam por criar outros problemas. Beneficiam uns, por norma aqueles que já estão no mercado, e muitas vezes acabam por prejudicar aqueles que estão à procura de casa", diz o investigador que reconhece que o "mercado deve ter liberdade", ainda que possa ser um pouco mais regulado.

São dois pontos de vista de académicos habituados a tratar o problema da habitação e que não acreditam que o Plano de Recuperação e Resiliência venha resolver o problema. Isto numa altura em que o Executivo tem um compromisso claro inscrito no programa de Governo: "erradicar as principais carências habitacionais identificadas no Levantamento Nacional de Necessidades de Realojamento Habitacional de 2018 até ao 50.º aniversário do 25 de abril, em 2024".

Desigualdades sociais: em 28% dos concelhos, mais de metade das famílias são pobres

Raquel Albuquerque, in Expresso

Estudo da FFMS mostra como o país é “profundamente assimétrico” nas condições de vida e de bem-estar das populações. Mas as cidades dão menos apoio a quem não tem como viver dignamente. O que mais conta para os portugueses é viver num local com qualidade ambiental, próximo da família ou amigos e com trabalho digno

Em 28% dos municípios do Continente, mais de metade das famílias são pobres. Na sua maioria, esses concelhos encontram-se em territórios de baixa densidade populacional ou intermédia. Mas é nas grandes cidades, densamente povoadas e com menor proximidade entre os moradores, que é “mais duro” ser pobre, conclui um estudo divulgado esta segunda-feira pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) que avaliou o impacto das condições de vida no bem-estar das populações nos diferentes territórios do país.

Em 28% dos municípios do Continente, mais de metade das famílias são pobres. Na sua maioria, esses concelhos encontram-se em territórios de baixa densidade populacional ou intermédia. Mas é nas grandes cidades, densamente povoadas e com menor proximidade entre os moradores, que é “mais duro” ser pobre, conclui um estudo divulgado esta segunda-feira pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) que avaliou o impacto das condições de vida no bem-estar das populações nos diferentes territórios do país.

O estudo “Territórios de bem-estar: assimetrias nos municípios portugueses”, coordenado por Rosário Mauritti, socióloga e professora no ISCTE, aferiu a pobreza por concelho com base no número de famílias que se encontram nos 40% de rendimentos mais baixos, a partir de estatísticas das Finanças, uma vez que os dados oficiais sobre pobreza, calculados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), dão um retrato apenas nacional e por região.

“A concentração da pobreza está muito disseminada nos territórios estruturalmente mais frágeis, sobretudo os de baixa densidade e intermédios. Mas também a encontramos nos territórios inovadores, com maior densidade populacional e recursos. Neles, a pobreza é muito mais dura, porque não existe a teia de apoio que encontramos nos de baixa densidade. Ser pobre, ser velho e viver numa casa sozinho, na cidade, incorpora muito mais desafios do que ter a mesma situação numa comunidade mais pequena”, explica Rosário Mauritti ao Expresso.

Na cidade, a pobreza “é envergonhada e nem sempre reconhecida”, acrescenta a investigadora. “Nos chavões destes territórios, pretende-se promover o concelho como o que acolhe os melhores estudantes ou o que quer ter a melhor capacidade produtiva. Por isso, as manchas de pobreza ficam mal e aparecem apenas referidas na periferia das periferias, nos bairros marcados por forte diversidade étnica, por pessoas desempregadas ou com baixas qualificações.”

Pelo contrário, apesar de as zonas de menor densidade populacional serem mais envelhecidas, terem menos emprego, menor atividade económica e capacidade produtiva, é nelas que se vê “maior mobilização comunitária para mitigar o envelhecimento e a pobreza”. Aliás, o sector do apoio social está entre os que geram mais emprego nas zonas de menor densidade.

Portugal é um “país profundamente assimétrico” nas condições de vida e de bem estar das populações, conclui o estudo, que se baseou num conjunto alargado de indicadores estatísticos por concelho para fazer um retrato detalhado do Continente, agrupando os municípios em cinco grupos distintos com semelhanças entre si.

Designaram-nos por Territórios Industriais em Transição, Territórios Intermédios, Territórios Urbanos em Rede, Territórios Inovadores e Territórios de Baixa Densidade. E podem, daqui em diante, ser usados para ter uma visão das condições de vida e de bem estar dos portugueses, “mais próxima da realidade das suas vidas e produzida com base em estatísticas oficiais”, explica o estudo

Cada vez menos, indicadores como o PIB e o crescimento económico conseguem medir as condições de vida das pessoas nos diferentes territórios. “Percebemos isso sobretudo a partir da crise em 2008 e desde então surgiram mais estudos para medir a felicidade e o bem-estar, mas fazem-no de forma agregada, a nível nacional, e não sobre a realidade concreta das pessoas”, refere a coordenadora.

O QUE É ENTÃO O BEM-ESTAR?

Embora a ideia de bem-estar não signifique o mesmo para todos os portugueses, nem em todos os pontos do país, há algumas perceções comuns. E uma delas é viver num local próximo da família ou de amigos, com uma sensação de pertença. “Os contactos sociais são importantíssimos para os sentimentos de felicidade. Viver sozinho num terceiro andar com problemas de mobilidade e frágeis condições de recursos é ainda mais difícil na cidade”, refere Rosário Mauritti. Contudo, o estudo apurou que em mais de 60% dos municípios, um em cada cinco idosos vive sozinho.

O ambiente do local onde se vive é mesmo o traço mais valorizado, refere o estudo. A qualidade do ar, o espaço para caminhar e a proximidade do mar, de um rio ou da serra estão entre os fatores mais referidos na definição de bem-estar. E, depois do ambiente e dos contactos sociais, está também o trabalho digno, uma realidade “assimétrica” no território e muito associada à valorização do equilíbrio entre o trabalho e a vida familiar.

Saúde, habitação e educação são três grandes áreas com assimetrias no território. Em zonas mais rurais, associa-se uma fraca mobilidade à ausência de cuidados de saúde especializados. Por outro lado, mais de metade da habitação social está concentrada em sete concelhos, sobretudo urbanos, onde a concentração de população é maior. “Este é outro dilema muito significativo”, refere Rosário Mauritti, lembrando, porém, que a questão da habitação é vivida de forma distinta noutras zonas de menor densidade, onde as aldeias ficaram com muitas casas vazias.

“Outra grande questão é a qualificação da população”, acrescenta a investigadora. “Temos uma população jovem que se está a qualificar, mas a economia não está a mudar ao mesmo ritmo. A incapacidade de reconverter o tecido económico é um dos enormes desafios em Portugal. Todo o país expulsa os jovens para os territórios inovadores, que são poucos e pequenos. E isso sem essa reconversão, isso vai continuar a acontecer.”

20.7.22

Um país mais desigual mas com novas oportunidades, apesar da incerteza

Leonete Botelho, in Público

Este é um ano atípico em que, em Portugal, se conjuga um enorme crescimento económico alavancado por um envelope financeiro único com deficiências estruturais agravadas pela pandemia e desafios globais de evolução imprevisível devido à guerra. Relatório do ISCTE traça o estado da nação e olha para a recuperação em tempos de incerteza.

A boa notícia deste ano para Portugal é o crescimento recorde da economia. Num clima de incerteza global, somos um dos países da União Europeia que melhor está a resistir ao impacto provocado pela guerra na Ucrânia e o aumento dos preços, ainda que a recuperação económica seja quase uma certeza a nível mundial, depois da contracção histórica da economia global. Mas quem cá vive sabe como os problemas estruturais são persistentes e que, apesar dos progressos das últimas décadas, a pandemia deixou à vista, quando não agravou, as desigualdades sociais e as assimetrias territoriais. Em particular no acesso à saúde, à educação e à habitação, assim como as falhas de cobertura da protecção social e dos direitos laborais, que acentuaram os efeitos da crise em alguns segmentos da população.

É sobre esta conjuntura de desafios e oportunidades que trata o retrato do estado da nação e das políticas públicas elaborado este ano pelo Instituto para as Políticas Públicas e Sociais (IPPS-ISCTE). No relatório Recuperação em Tempos de Incerteza, porém, os investigadores coordenados por Ricardo Paes Mamede, não traçam apenas um diagnóstico de pontos fracos e algumas vantagens competitivas do país: deixam também pistas consistentes de como trilhar terras em brasa sem perder o pé.

Enquanto economista, Ricardo Paes Mamede valoriza muito o tema das agendas mobilizadoras lançado pelo Governo para concretizar uma grande fatia do Plano de Recuperação e Resiliência, de cujos apoios vão beneficiar, para já, 51 consórcios de empresas, que se propõem assegurar 83% dos 7572 milhões de euros a fundo perdido do PRR. Mas o coordenador deste trabalho deixa um alerta: “O sucesso das economias depende mais do sistema produtivo do que de algumas empresas: o que é fundamental é dar apoio a projectos de desenvolvimento.”

Esses projectos devem ter em conta as novas dinâmicas económicas para dar resposta, por exemplo, às dificuldades no abastecimento de matérias-primas, bens intermédios e produtos finais de importância estratégica sentidas na pandemia e agravadas pela guerra na Ucrânia. Tanto mais que, como é evidenciado no relatório, “acentuaram-se tendências anteriores de reorganização das redes internacionais de produção, com algumas actividades a privilegiar lógicas mais regionais (e menos globais) nas cadeias de abastecimento”.

“Temos novas oportunidades de atracção de investimento, mas o nosso problema é garantir que o investimento que atraímos é aquele de que mais precisamos”, sublinha Paes Mamede, sustentando que “só se deve privilegiar o investimento qualificado”, dando oportunidade aos centros tecnológicos de “dar um salto qualitativo” e garantindo que “as pequenas e médias empresas sejam capazes de aproveitar a presença das multinacionais para entrar nas cadeias de produção global”.

Por outro lado, sustenta que o desenvolvimento de que Portugal carece hoje é sobretudo “um desenvolvimento inclusivo, pois a pandemia veio tornar claro que há segmentos da população que ficaram mais trás”, pelo que o crescimento económico actual é “uma oportunidade única para focarmos a nossa atenção” nessas pessoas. De facto, como escreve na introdução do estudo, nos anos da pandemia tornaram-se mais visíveis alguns problemas estruturais da sociedade portuguesa.

Problemas persistentes​

Na saúde, o acesso a consultas médicas continua a ser condicionado pelas capacidades das famílias. Por outro lado, “a mobilização dos serviços de saúde na resposta à covid-19 e as dificuldades de atender a todas as outras necessidades dos utentes acentuaram a pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde e a necessidade de repensar os recursos que lhe são destinados e o modo como são geridos”, sublinha o relatório.

Na educação, a oferta de ensino e os desempenhos escolares dos alunos são marcados por assimetrias territoriais relevantes. A pandemia pôs também a nu a falta de protecção, no emprego e no desemprego, dos trabalhadores informais e precários, traduzindo-se em níveis elevados de desemprego entre os jovens. Quanto aos idosos, a sua exposição à covid-19 revelou a reduzida cobertura dos cuidados de longo prazo geriátrico, além de ter exposto as insuficiências da rede de lares.

Na habitação, os confinamentos revelaram as más condições em que vivem muitos agregados familiares mais desfavorecidos, e, em simultâneo, o contínuo aumento dos preços das casas nos centros metropolitanos dificultou o acesso à habitação por parte das classes médias. No domínio da mobilidade, os receios de infecção terão afastado muitos cidadãos do uso de transportes públicos, pondo em causa os esforços de redução do peso do transporte individual nas zonas urbanas. Na cultura, acelerou-se a transformação dos padrões de consumo, com os serviços de streaming e outras actividades à distância a ganharem peso face aos eventos presenciais.

Um sector que conquistou enorme relevância na pandemia foi a investigação científica. “A resposta à pandemia convocou a ciência e a tecnologia para o desenvolvimento de novas vacinas, tratamentos e equipamentos, mas também para o esclarecimento das populações e para o planeamento adequado das políticas públicas na resposta aos desafios emergentes, alterando a percepção geral sobre a relevância social dos cientistas e das instituições de investigação”, lê-se no relatório. Que recomenda “um apoio político mais significativo ao investimento na ciência”.

Apesar de tudo, Paes Mamede faz questão de sublinhar que os problemas estruturais do país são, por definição, persistentes, e que “a evolução tem sido moderadamente positiva ao longo das últimas décadas”, sobretudo na saúde, educação e protecção social. E frisa a palavra décadas, para evidenciar que essas políticas públicas não são exclusivas de governos concretos: “Houve um consenso nos diferentes governos face a estas políticas, que depois têm tradução ao nível económico.” Ou seja, as políticas sociais traduzem-se em mais-valias para o país.