Leonete Botelho, in Público
Este é um ano atípico em que, em Portugal, se conjuga um enorme crescimento económico alavancado por um envelope financeiro único com deficiências estruturais agravadas pela pandemia e desafios globais de evolução imprevisível devido à guerra. Relatório do ISCTE traça o estado da nação e olha para a recuperação em tempos de incerteza.A boa notícia deste ano para Portugal é o crescimento recorde da economia. Num clima de incerteza global, somos um dos países da União Europeia que melhor está a resistir ao impacto provocado pela guerra na Ucrânia e o aumento dos preços, ainda que a recuperação económica seja quase uma certeza a nível mundial, depois da contracção histórica da economia global. Mas quem cá vive sabe como os problemas estruturais são persistentes e que, apesar dos progressos das últimas décadas, a pandemia deixou à vista, quando não agravou, as desigualdades sociais e as assimetrias territoriais. Em particular no acesso à saúde, à educação e à habitação, assim como as falhas de cobertura da protecção social e dos direitos laborais, que acentuaram os efeitos da crise em alguns segmentos da população.
É sobre esta conjuntura de desafios e oportunidades que trata o retrato do estado da nação e das políticas públicas elaborado este ano pelo Instituto para as Políticas Públicas e Sociais (IPPS-ISCTE). No relatório Recuperação em Tempos de Incerteza, porém, os investigadores coordenados por Ricardo Paes Mamede, não traçam apenas um diagnóstico de pontos fracos e algumas vantagens competitivas do país: deixam também pistas consistentes de como trilhar terras em brasa sem perder o pé.
Enquanto economista, Ricardo Paes Mamede valoriza muito o tema das agendas mobilizadoras lançado pelo Governo para concretizar uma grande fatia do Plano de Recuperação e Resiliência, de cujos apoios vão beneficiar, para já, 51 consórcios de empresas, que se propõem assegurar 83% dos 7572 milhões de euros a fundo perdido do PRR. Mas o coordenador deste trabalho deixa um alerta: “O sucesso das economias depende mais do sistema produtivo do que de algumas empresas: o que é fundamental é dar apoio a projectos de desenvolvimento.”
Esses projectos devem ter em conta as novas dinâmicas económicas para dar resposta, por exemplo, às dificuldades no abastecimento de matérias-primas, bens intermédios e produtos finais de importância estratégica sentidas na pandemia e agravadas pela guerra na Ucrânia. Tanto mais que, como é evidenciado no relatório, “acentuaram-se tendências anteriores de reorganização das redes internacionais de produção, com algumas actividades a privilegiar lógicas mais regionais (e menos globais) nas cadeias de abastecimento”.
“Temos novas oportunidades de atracção de investimento, mas o nosso problema é garantir que o investimento que atraímos é aquele de que mais precisamos”, sublinha Paes Mamede, sustentando que “só se deve privilegiar o investimento qualificado”, dando oportunidade aos centros tecnológicos de “dar um salto qualitativo” e garantindo que “as pequenas e médias empresas sejam capazes de aproveitar a presença das multinacionais para entrar nas cadeias de produção global”.
Por outro lado, sustenta que o desenvolvimento de que Portugal carece hoje é sobretudo “um desenvolvimento inclusivo, pois a pandemia veio tornar claro que há segmentos da população que ficaram mais trás”, pelo que o crescimento económico actual é “uma oportunidade única para focarmos a nossa atenção” nessas pessoas. De facto, como escreve na introdução do estudo, nos anos da pandemia tornaram-se mais visíveis alguns problemas estruturais da sociedade portuguesa.
Problemas persistentes
Na saúde, o acesso a consultas médicas continua a ser condicionado pelas capacidades das famílias. Por outro lado, “a mobilização dos serviços de saúde na resposta à covid-19 e as dificuldades de atender a todas as outras necessidades dos utentes acentuaram a pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde e a necessidade de repensar os recursos que lhe são destinados e o modo como são geridos”, sublinha o relatório.
Na educação, a oferta de ensino e os desempenhos escolares dos alunos são marcados por assimetrias territoriais relevantes. A pandemia pôs também a nu a falta de protecção, no emprego e no desemprego, dos trabalhadores informais e precários, traduzindo-se em níveis elevados de desemprego entre os jovens. Quanto aos idosos, a sua exposição à covid-19 revelou a reduzida cobertura dos cuidados de longo prazo geriátrico, além de ter exposto as insuficiências da rede de lares.
Na habitação, os confinamentos revelaram as más condições em que vivem muitos agregados familiares mais desfavorecidos, e, em simultâneo, o contínuo aumento dos preços das casas nos centros metropolitanos dificultou o acesso à habitação por parte das classes médias. No domínio da mobilidade, os receios de infecção terão afastado muitos cidadãos do uso de transportes públicos, pondo em causa os esforços de redução do peso do transporte individual nas zonas urbanas. Na cultura, acelerou-se a transformação dos padrões de consumo, com os serviços de streaming e outras actividades à distância a ganharem peso face aos eventos presenciais.
Um sector que conquistou enorme relevância na pandemia foi a investigação científica. “A resposta à pandemia convocou a ciência e a tecnologia para o desenvolvimento de novas vacinas, tratamentos e equipamentos, mas também para o esclarecimento das populações e para o planeamento adequado das políticas públicas na resposta aos desafios emergentes, alterando a percepção geral sobre a relevância social dos cientistas e das instituições de investigação”, lê-se no relatório. Que recomenda “um apoio político mais significativo ao investimento na ciência”.
Apesar de tudo, Paes Mamede faz questão de sublinhar que os problemas estruturais do país são, por definição, persistentes, e que “a evolução tem sido moderadamente positiva ao longo das últimas décadas”, sobretudo na saúde, educação e protecção social. E frisa a palavra décadas, para evidenciar que essas políticas públicas não são exclusivas de governos concretos: “Houve um consenso nos diferentes governos face a estas políticas, que depois têm tradução ao nível económico.” Ou seja, as políticas sociais traduzem-se em mais-valias para o país.
É sobre esta conjuntura de desafios e oportunidades que trata o retrato do estado da nação e das políticas públicas elaborado este ano pelo Instituto para as Políticas Públicas e Sociais (IPPS-ISCTE). No relatório Recuperação em Tempos de Incerteza, porém, os investigadores coordenados por Ricardo Paes Mamede, não traçam apenas um diagnóstico de pontos fracos e algumas vantagens competitivas do país: deixam também pistas consistentes de como trilhar terras em brasa sem perder o pé.
Enquanto economista, Ricardo Paes Mamede valoriza muito o tema das agendas mobilizadoras lançado pelo Governo para concretizar uma grande fatia do Plano de Recuperação e Resiliência, de cujos apoios vão beneficiar, para já, 51 consórcios de empresas, que se propõem assegurar 83% dos 7572 milhões de euros a fundo perdido do PRR. Mas o coordenador deste trabalho deixa um alerta: “O sucesso das economias depende mais do sistema produtivo do que de algumas empresas: o que é fundamental é dar apoio a projectos de desenvolvimento.”
Esses projectos devem ter em conta as novas dinâmicas económicas para dar resposta, por exemplo, às dificuldades no abastecimento de matérias-primas, bens intermédios e produtos finais de importância estratégica sentidas na pandemia e agravadas pela guerra na Ucrânia. Tanto mais que, como é evidenciado no relatório, “acentuaram-se tendências anteriores de reorganização das redes internacionais de produção, com algumas actividades a privilegiar lógicas mais regionais (e menos globais) nas cadeias de abastecimento”.
“Temos novas oportunidades de atracção de investimento, mas o nosso problema é garantir que o investimento que atraímos é aquele de que mais precisamos”, sublinha Paes Mamede, sustentando que “só se deve privilegiar o investimento qualificado”, dando oportunidade aos centros tecnológicos de “dar um salto qualitativo” e garantindo que “as pequenas e médias empresas sejam capazes de aproveitar a presença das multinacionais para entrar nas cadeias de produção global”.
Por outro lado, sustenta que o desenvolvimento de que Portugal carece hoje é sobretudo “um desenvolvimento inclusivo, pois a pandemia veio tornar claro que há segmentos da população que ficaram mais trás”, pelo que o crescimento económico actual é “uma oportunidade única para focarmos a nossa atenção” nessas pessoas. De facto, como escreve na introdução do estudo, nos anos da pandemia tornaram-se mais visíveis alguns problemas estruturais da sociedade portuguesa.
Problemas persistentes
Na saúde, o acesso a consultas médicas continua a ser condicionado pelas capacidades das famílias. Por outro lado, “a mobilização dos serviços de saúde na resposta à covid-19 e as dificuldades de atender a todas as outras necessidades dos utentes acentuaram a pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde e a necessidade de repensar os recursos que lhe são destinados e o modo como são geridos”, sublinha o relatório.
Na educação, a oferta de ensino e os desempenhos escolares dos alunos são marcados por assimetrias territoriais relevantes. A pandemia pôs também a nu a falta de protecção, no emprego e no desemprego, dos trabalhadores informais e precários, traduzindo-se em níveis elevados de desemprego entre os jovens. Quanto aos idosos, a sua exposição à covid-19 revelou a reduzida cobertura dos cuidados de longo prazo geriátrico, além de ter exposto as insuficiências da rede de lares.
Na habitação, os confinamentos revelaram as más condições em que vivem muitos agregados familiares mais desfavorecidos, e, em simultâneo, o contínuo aumento dos preços das casas nos centros metropolitanos dificultou o acesso à habitação por parte das classes médias. No domínio da mobilidade, os receios de infecção terão afastado muitos cidadãos do uso de transportes públicos, pondo em causa os esforços de redução do peso do transporte individual nas zonas urbanas. Na cultura, acelerou-se a transformação dos padrões de consumo, com os serviços de streaming e outras actividades à distância a ganharem peso face aos eventos presenciais.
Um sector que conquistou enorme relevância na pandemia foi a investigação científica. “A resposta à pandemia convocou a ciência e a tecnologia para o desenvolvimento de novas vacinas, tratamentos e equipamentos, mas também para o esclarecimento das populações e para o planeamento adequado das políticas públicas na resposta aos desafios emergentes, alterando a percepção geral sobre a relevância social dos cientistas e das instituições de investigação”, lê-se no relatório. Que recomenda “um apoio político mais significativo ao investimento na ciência”.
Apesar de tudo, Paes Mamede faz questão de sublinhar que os problemas estruturais do país são, por definição, persistentes, e que “a evolução tem sido moderadamente positiva ao longo das últimas décadas”, sobretudo na saúde, educação e protecção social. E frisa a palavra décadas, para evidenciar que essas políticas públicas não são exclusivas de governos concretos: “Houve um consenso nos diferentes governos face a estas políticas, que depois têm tradução ao nível económico.” Ou seja, as políticas sociais traduzem-se em mais-valias para o país.