13.7.22

Medidas para travar a seca em Portugal são “paliativas”

Cláudia Carvalho Silva, in Público

Há anos que a seca assombra o território português e a realidade é só uma: continuará a acontecer e serão mais prolongadas e intensas. Para a combater, há que pensar com tempo e não agir de forma “reactiva”, dizem os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO. Os desperdícios são muitos e há que saber gerir a água, nunca esquecendo que se trata de um bem escasso.

As imagens já corriam e assustavam. O pior confirmou-se quando o Governo decidiu suspender a produção de energia hidroeléctrica em algumas barragens do país. Sem chuva e com pouca água nessas barragens, Portugal voltou a encarar um problema que não é de agora – e que continuará a ser um problema no futuro: a seca. Mas estas medidas, diz a geógrafa Maria José Roxo, são “paliativas”. “Aquilo que nós sempre fazemos e parece que não aprendemos nada com o passado é termos atitudes reactivas. Estamos sempre a reagir ao prejuízo”, comenta, em conversa com o PÚBLICO.

“As secas têm vindo a ser tratadas muitas vezes como se tratou o terramoto de 1755, como se fosse uma coisa esporádica que não acontece mais”, compara também o engenheiro Joaquim Poças Martins, especialista em Hidráulica. Concorda com a suspensão da actividade hidroeléctrica para garantir água para consumo humano, mas acredita que é necessário olhar para a escassez de água de forma diferente. “Vêm aí mais secas, mais severas e mais prolongadas. Essa é a única certeza que temos; portanto, temos de nos adaptar a isso”, vaticina o antigo secretário de Estado do Ambiente.

A parte menos má desta falta de água – e que pode fazer com que não olhemos para as notícias com a gravidade que deveríamos olhar – é que “esta seca não chega à torneira das pessoas”, analisa Poças Martins. Mas já atinge os agricultores e a produção eléctrica.

A principal prioridade do Governo agora é precisamente garantir que “não falta água nas torneiras dos portugueses”, tem dito o ministro do Ambiente e Acção Climática, João Pedro Matos Fernandes. Mesmo que não chovesse nos próximos dois anos – “algo impensável”, diz –, haveria garantia de água para consumo humano durante esse período.

Vêm aí mais secas, mais severas e mais prolongadas. Essa é a única certeza que temos, portanto temos de nos adaptar a isso

Depois de ter apresentado uma série de medidas para combater a seca em 2018, o ministro afirmou que foi feito um investimento de 500 milhões de euros na renovação dos sistemas de abastecimento de água para diminuir as perdas nas condutas e que tem de haver “práticas agrícolas consentâneas com a disponibilidade de água”. Certo, diz, é que “não podemos contar com a água que não temos”. O que mais pode, então, ser feito?

Não há uma solução – há muitas

A estratégia de Portugal para combater a seca e a falta de água é sempre reactiva, critica a professora catedrática na Universidade Nova de Lisboa, Maria José Roxo, especialista em Seca e Desertificação. É por aí que se tem de começar: pensar com tempo, “falar antes de as coisas acontecerem” e haver preparação para as evitar, com uma “visão integrada”. Mas “não há uma só solução – há muitas”.

Que medidas poderiam ser tomadas em concreto? Maria José Roxo começa por elencar “medidas mais estruturais”: limpar as barragens, rever sistemas de distribuição de água que estão danificados, “muitos deles no perímetro do Alqueva”, aumentar a capacidade de armazenamento de água, pensar numa agricultura de irrigação mais eficiente na utilização de água.

“Sabemos que os desperdícios são muitos e vamos ser realistas: vamos ter de começar a dizer as coisas tal como elas são, custe o que custar.” Há também que avaliar quais as barragens do país mais assoreadas, com mais materiais depositados, e retirar sedimentos, avaliando o uso do solo e a quantidade de materiais causados por incêndios que podem ir parar às barragens, diz Maria José Roxo. “A limpeza das barragens em 2017 teria sido crucial, até porque depois tivemos anos razoavelmente húmidos”, acredita a académica.

1931

Este é o sexto Janeiro mais seco desde 1931 e o segundo mais seco desde 2000


Outra possibilidade é recuperar as águas da chuva através de “um conhecimento tradicional antigo e modernizá-lo e torná-lo eficiente”. Além disso, há que ter em conta as características do território e da geografia. “Uma medida implementada no Norte do país pode ser um desastre brutal no Sul do país e vice-versa.” As campanhas de sensibilização também são importantes, ainda que aconteçam de forma “esporádica” – o que não ajuda a ver-se a água como um bem escasso, quando parece estar sempre disponível de forma barata.

Manuela Moreira da Silva, investigadora do Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMA) da Universidade do Algarve, alerta que os usos não-potáveis “correspondem à maior parte da água que o país consome”, como a rega, usos industriais ou a lavagem de carros, espaços públicos, bocas-de-incêndio e afins. Ainda que a precipitação média tenda a diminuir nos próximos anos, haverá também mais fenómenos de precipitação intensa – as alterações climáticas causam, aliás, uma maior frequência destes eventos extremos. Assim, “será da maior relevância começarmos a captar e armazenar esta água da chuva para posterior utilização”, defende a investigadora e professora no Instituto Superior de Engenharia da Universidade do Algarve.

Sabemos que os desperdícios são muitos e vamos ser realistas: vamos ter de começar a dizer as coisas tal como elas são, custe o que custar Maria José Roxo

E dá o exemplo de um recurso desperdiçado: “Portugal trata actualmente mais de 92% das suas águas residuais urbanas em ETAR, que foram construídas e optimizadas durante os últimos 30 anos, mas reutiliza menos de 2% desses efluentes tratados”. Há também lamas nestas ETAR urbanas que poderão ser “excelentes fontes de fósforo para culturas agrícolas”.

O Ministério do Ambiente e da Acção Climática diz ao PÚBLICO que estão em curso no Algarve projectos para melhorar o tratamento das águas residuais para reutilização (em rega de campos agrícolas ou campos de golfe, por exemplo) para “dotar a região de maior resiliência a fenómenos de escassez de água” e que está em curso a elaboração de planos de gestão de seca para o continente.

Sabendo-se que episódios de seca acontecerão com mais frequência, é “essencial arranjarmos estratégias mais globais, soluções mais duradouras que nos permitam lidar com os fenómenos das alterações climáticas”, acredita Catarina Miranda, coordenadora do projecto Rios Livres, do GEOTA (Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente). A ambientalista acredita que “apostar em alternativas com grande dependência dos recursos hídricos, como as barragens hidroeléctricas e de regadio”, não é a solução, pois só “estimulam o uso de um bem que nós não temos: a água”.

Usar menos água, repensar as formas de agricultura e promover o uso eficiente de água é o caminho a seguir. Outra alternativa pode até ser menos evidente: aumentar a eficiência energética nas casas, por exemplo, permitiria reduzir o gasto de água nas barragens para produção de energia, já que grande parte da energia provém das barragens. Outra é encontrar estratégias que “promovam uma agricultura mais sustentável e menos dependente de barragens de regadio”, com culturas adaptadas ao clima e às regiões. A construção de mais barragens destas, argumenta, poderá levar a ainda mais consumo de água.

Há também que “remover as barragens e barreiras que estão obsoletas”, quando Portugal “está a promover a estratégia contrária, que é uma pressão enorme para construção de barragens de regadio”. “Estamos a andar para trás”, considera Catarina Miranda. A construção da Barragem do Pisão “é um exemplo claro de como o Governo não está a seguir o caminho correcto para a mitigação da seca”.

As barragens podem ser úteis tanto em situações de seca como em situação de cheias e “têm de fazer parte da solução: elas já lá estão, então vamos utilizá-las bem – e vamos cuidar delas”, refere a geógrafa Maria José Roxo. “Tem é de haver uma gestão verdadeiramente eficaz”, havendo manutenção dos canais de rega, uma maior monitorização e cuidado com os solos nas redondezas das barragens.

Joaquim Poças Martins acredita que a construção de mais barragens não é solução. “Não há espaço para elas – e não interessa fazer barragens se elas depois ficam vazias. Fazer barragens não resolve o problema, é preciso ter água...”

No fundo, resume, há três soluções na lista: a dessalinização​, a reutilização de águas e uma boa gestão da água. Mas, ressalva, “não se poupa aquilo que não se mede nem se paga”. Há grandes desperdícios na distribuição e na agricultura, e a solução passa por “responsabilizar o consumo dos utilizadores pelo bem que estão a utilizar, e assim gerem-no bem”, considera. “Temos um discurso de escassez, mas temos uma prática de não valorizar. Como é que se valoriza? Em euros, em cêntimos...”

Na agricultura, que usa cerca de 70% da água em Portugal, a seca pode ser grave sobretudo nos agricultores “que plantam não tendo a certeza de que vão ter água suficiente”. Aí, poderá ser necessário envolver as universidades para que haja uma mudança nas culturas escolhidas: “Nos sítios em que há menos água, há culturas que têm de ser abandonadas.” Regar milho em Agosto, no Alentejo, por aspersão, por exemplo, “é um desperdício de água”.

Seca dura e durará

Com Fevereiro a adivinhar-se seco e sem grande chuva, a preocupação aumenta. As alterações climáticas estão em jogo na equipa adversária, mas “ninguém toma atenção àquilo que os cientistas dizem”, lamenta a especialista Maria José Roxo.

Os dados dizem-nos que a seca meteorológica – causada pela falta de chuva – se “mantém e agravou” no território continental no final de Janeiro de 2022, segundo os números mais recentes do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Todo o território português está em seca: 11,5% em seca extrema, 34,2% em seca severa, 53,7% em seca moderada e 0,6% em seca fraca. O mês de Janeiro foi o sexto mais seco desde 1931 e o segundo mais seco desde 2000 – só ultrapassado pelo ano de seca de 2005.

A falta de chuva tem reflexos na quantidade de água que o país consegue reter com as suas barragens: segundo os dados do Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH), no último dia de Janeiro havia 15 albufeiras com disponibilidades inferiores a 40% do volume total. Em comparação com o mês anterior (final de 2021), houve uma descida do volume armazenado em dez bacias hidrográficas.

Maria José Roxo teme que, assim que chover, os ânimos se acalmem e volte tudo ao mesmo. “Quando começar a chover, vamos ficar todos tranquilos. Já choveu. Para o ano, volta-se a não se ter feito nada do ponto de vista estrutural e até de divulgação, de chamar à atenção da população.”

Por agora, segundo o Ministério do Ambiente, não há receio de que faltem recursos para consumo humano. Mas as previsões sobre o que aí vem são menos optimistas. Um relatório apresentado no final de 2021 indica que, nos últimos 20 anos, a disponibilidade de água em Portugal se reduziu cerca de 20% – e os cenários para o futuro são “preocupantes”.