20.7.22

Viagem pelos ‘bairros felizes’ de Portugal. Capítulo 3: Alfinetes

Ana Baptista, in Expresso

Durante os próximos seis meses, e a propósito da iniciativa Bairro Feliz do Pingo Doce, o Expresso vai andar pelo país, incluindo Madeira e Açores, à procura de bairros onde haja um espírito de comunidade e onde os seus moradores se sintam bem, apesar das dificuldades e problemas que lá possam existir. Porque não há bairros perfeitos, mas há bairros felizes

Os Alfinetes - como os moradores lhe chamam - é um dos muitos bairros sociais/municipais da freguesia de Marvila, na zona oriental de Lisboa, mas é dos mais ativos na promoção da cidadania e da qualidade vida dos seus moradores e é também um dos mais inclusivos, onde “todos se conhecem e podemos andar na rua à vontade”, diz Adriana, de 17 anos. De facto, a meio da tarde quente de sexta-feira em que visitámos o bairro, eram vários os miúdos a brincar na rua ou andar de bicicleta, e eram também vários os adultos, que se juntavam para conversar, dar apoio a outro morador mais velho ou ajudar a organizar um evento, quase “como numa aldeia”, diz o presidente da junta de freguesia de Marvila, José Videira.

Na verdade, são as pessoas que tornam este bairro distinto e empático, uma característica que, dizem os moradores, trouxeram das barracas, onde “havia uma fraternidade especial”, conta Ernesto, que viveu na Curraleira durante 36 anos, “Mas gosto de morar aqui, mesmo faltando muita coisa. Há aqui pessoas que já conheço há muito tempo, desde que nasceram, e fiz aqui muitas amizades”, conta Ernesto, um serralheiro reformado de 73 anos que é, agora, o artista do bairro, construindo casas de madeira em miniatura. Uma dessas amizades foi com Daniel Pontes, 70 anos, que encontrámos à porta do Futebol Clube Recreativo do Rossão, no bairro Marquês de Abrantes. “Nasci aqui, quando ainda eram barracas e, apesar de agora morar no Bairro do Armador (o que fica ao lado do Rock in Rio), venho aqui todos os dias tomar café ou jogar às cartas”, conta.

CRISTINA, ERNESTO, TERESA, TINA E LINO

São os cinco elementos do grupo comunitário 4Crescente que se chama assim porque atua em quatro bairros de Marvila - Alfinetes, Salgadas, Marquês de Abrantes e Chalé - todos eles contíguos. Aliás, de acordo com a Gebalis, que gere estes bairros, a proximidade é tanta que “induz, quem desconheça, a considerá-los como um único bairro”. A origem é, no entanto, nos Alfinetes para onde Cristina, Ernesto e Teresa se mudaram depois de anos a morar nas barracas da Curraleira. E onde conheceram Lino, de etnia cigana, e Tina, que veio de uma casa degradada no Poço Bispo. Juntos são responsáveis pela melhoria das condições do bairro e por porem os moradores a conviver pacificamente. Para isso, contam com o apoio de 26 organizações, com quem têm uma linha aberta direta, incluindo a câmara de Lisboa e a junta de freguesia de Marvila. Aliás, José Videira, descreve-os “quase como uma assembleia comunitária” e, de facto, estão sempre atentos e empenhados. “Já viste isto aqui dos caixotes do lixo, está partido, temos de os avisar”, diz Teresa a Cristina enquanto passamos pelo bairro do Chalé, referindo-se ao Semáforo, um grupo que integra a junta de freguesia e se reúne todos os meses para sinalizar o que está mal nestes quatro bairros.

Este é um dos projetos em que o 4Crescente está mais empenhado, tal como a mini loja do cidadão onde dão apoio no preenchimento de declarações, marcação de consultas ou impressão de documentos. Ou a construção do Parque Urbano da Quinta Marquês de Abrantes, que ocupará o descampado com vista de rio que se estende dos Alfinetes até quase ao bairro do Chalé e onde ainda hoje um dos moradores leva as suas ovelhas e cabras a pastar. De acordo com Cristina o projeto foi aprovado pela anterior câmara, mas ficou parado depois da entrada do novo executivo. “Esse parque vai acontecer. Porque será um parque que todos podem usar, mesmo que não morem aqui”, diz Cristina, com voz determinada.

A BIBLIOTECA, A SANTA CASA E A GEBALIS

A biblioteca de Marvila abriu em 2006 e mais do que um espaço para ir buscar ou consultar livros tornou-se, desde logo, em mais um elemento agregador do bairro que todos usam e respeitam. “Nunca tivemos aqui problema nenhum. Tivemos um vidro partido, mas foi uma das cabras que andavam aí a pastar”, conta um dos funcionários que não quis ser identificado. Por lá, organizam-se sessões de cinema para crianças e adultos; aulas de teatro, tertúlias sobre livros… “coisas de nerd que a minha irmã gosta”, diz Adriana, rindo para Tatiana, a irmã mais velha que estava mesmo ali ao lado. Além disso têm salas de atividades para crianças até aos 13 anos, salas com computadores para os mais velhos e adultos e até atividades para jovens dos 13 aos 18, aquela faixa etária que costuma ser menos contemplada nestas ações.

O 4Crescente e a biblioteca são apenas duas das muitas organizações que atuam nestes quatro bairros, tanto individualmente como em conjunto. A Santa Casa da Misericórdia e a Gebalis são outros dois exemplos, e as iniciativas e ações de apoio são tantas que tornaríamos este texto demasiado longo. É o caso da cicloficina da Santa Casa, onde qualquer um pode doar bicicletas, mesmo que velhas ou estragadas, que são depois arranjadas e colocadas à disposição de quem as quiser usar. Ou do programa ‘Lotes ComVida’, da Gebalis, que apoia a criação de “comissões de lote” que incentivem os moradores e organizações locais a gerir os lotes.

A ORIGEM DOS ALFINETES

Para contar a origem dos Alfinetes é preciso começar pela história do Bairro Chinês, o maior bairro de barracas que alguma vez existiu em Lisboa. Não se sabe bem quando começou a ser montado, mas terá sido no final dos anos 1930, porque a documentação oficial que existe mostra um crescimento entre os anos 1940 e 1970. Aliás, estima-se que, nos anos 1960 moravam lá 2500 famílias, ou seja, cerca de 10 mil pessoas. Na sua maioria eram oriundas de aldeias do Norte do país que vinham para Lisboa para trabalhar nas fábricas que proliferavam na zona oriental - como a de sabões, fósforos e borracha ou a de material militar de Braço de Prata. Ora, como as casas em Lisboa eram caras, estes trabalhadores e as suas famílias, começaram a montar barracas perto das fábricas onde trabalhavam, ou seja, na zona que é hoje Marvila, e com o aumento do êxodo rural, depressa se tornou num bairro, o Bairro Chinês. Os bairros dos Alfinetes, Salgadas, Marquês de Abrantes e Chalé são, assim, os bairros sociais que substituíram o Bairro Chinês. E têm estes nomes porque são os mesmos das quintas onde os trabalhadores montavam as barracas. Os primeiros a serem construídos, no final dos anos 1970 e início dos 1980, foram o Chalé e Salgadas, e depois os Alfinetes e Marquês de Abrantes, quase em simultâneo, nos anos 1990. Os últimos ficaram prontos já nos anos 2000, mas já para alojar moradores de outros bairros de barracas, como a Curraleira.