Pedro Cruz, opinião, in TSF
António, chamemos-lhe assim, recebe o salário mínimo nacional. São 705 euros. Desconta, como todos nós, para a Segurança Social. No caso dele, 77,55 euros por mês. O valor líquido mensal é de 625 euros. António é licenciado, em marketing. Trabalha como vigilante, numa daquelas empresas a que erradamente chamamos de "segurança". Faz o turno da noite, da meia-noite às oito da manhã. Quando "tem sorte", fica com o horário da tarde, das 16h00 à meia-noite.
Como entra à meia-noite, tem de ter carro próprio. Os transportes públicos, ainda que estivessem integrados, e conjugados, não lhe cobrem o horário. O carro tem 15 anos, comprado em segunda mão. Paga, por mês, 150 euros de empréstimo. De cada vez que vai, agora, encher o depósito, são cerca de 100 euros. Cinquenta litros vezes dois euros. Quase um sexto do salário é para atestar. Como tem de abastecer duas vezes por mês, são 200 euros. Por mês. Mais os 150 euros da prestação. Só para o carro são 550 euros por mês. (Isto porque paga o imposto automóvel, o seguro e a revisão apenas uma vez por ano, quando recebe o subsídio de férias). António vive sozinho. Paga renda. Fora da cidade, onde conseguiu uma casa por 200 euros. Aliás, um "pequeno T1", como diz a canção. António, só em despesas fixas, só para ter onde dormir e forma de chegar ao trabalho despende 550 euros. Recebe 625.
António tem de conseguir comer, ter luz e água em casa, gás no fogão, telefone e televisão com o que lhe sobra - 75 euros mensais. Dois euros e pouco por dia.
Como recebe mais de 540 euros por mês, António vive (?) acima do limiar da pobreza. Não conta, portanto, para as estatísticas com que governos e oposições, patrões e sindicatos, se debatem no parlamento e na concertação social. Tem casa, trabalho, carro. O estado, magnânimo, dispensa-o de pagar IRS. É, portanto, um cidadão bem na vida, já que é proprietário de um bem móvel. Com o que lhe sobra depois de pagas as despesas fixas com a casa e o carro - recordo, 75 euros - ou tem água e luz, ou come.
António gostava de ser pai. Gostava de ter um carro elétrico, porque a energia é mais barata do que o combustível e ele preocupa-se com o ambiente. Gostava de poder viajar, ir a um restaurante, nem que fosse uma vez por mês. Comprar um livro, ver um concerto ou ir a um festival de música. Ou ir ao teatro, ao cinema, ao museu. A vida de António resume-se a ir de casa para o trabalho, do trabalho para casa. E a fazer contas. Contas de subtrair. É certo que tem um contrato de trabalho e recebe 14 salários e não doze. Esse dinheiro "a mais", generosamente acordado na concertação social, serve para pagar as contas já citadas - revisão, pneus, óleo, portagens e outras avarias inesperadas. Para sermos corretos, os 75 euros que lhe sobram, a juntar a cerca de 1300 de dois meses extra, chegam aos 2150 euros... por ano. Não chega a 200 euros por mês.
É fazer as contas.
Nota do autor
António é uma personagem de ficção. Mas, atenção, qualquer semelhança com a realidade de Portugal em 2022, não é mera coincidência.