Carlos Ochoa Leite, opinião, in Público
O aquecimento global parece causar pelo menos dois efeitos: desacordo quanto à sua existência e ondas de calor. E, se todos concordamos que estamos a viver uma onda de calor, tal não é de todo apaziguador.
Estima-se que o verão extremamente quente de 2003 foi responsável por cerca de 70.000 mortes na Europa, correspondendo a um aumento de 4 a 5 vezes na taxa de mortalidade. A exposição a temperaturas elevadas está associada a desidratação, problemas cardiovasculares, alteração da qualidade de sono e do humor. Além disso, níveis de calor perigosos para a saúde apresentam um impacto enorme na segurança e produtividade da população.
A evidência científica tem demonstrado nos últimos anos, que as estimativas de perda de mão-de-obra em ambientes com temperaturas elevadas são preocupantes, especialmente para os trabalhadores do sector primário. Em 2017, a nível mundial, as perdas anuais de produtividade provocadas pelo calor foram estimadas em 2,1 biliões de dólares, correspondendo em vários países a mais de 10% do produto interno bruto.
Recentemente, conversei com um investigador que desenvolveu uma experiência onde se pretendia avaliar os efeitos de uma onda de calor na capacidade de trabalho e na fisiologia humana. A metodologia utilizada impressiona pela logística. O estudo consistiu em confinar sete homens adultos, durante dez dias, num piso de um hotel no norte da Eslovénia, em quartos com condições de temperatura e humidade controladas.
Reproduzindo artificialmente uma onda de calor, os voluntários participaram diariamente num turno de trabalho, incorporando duas sessões de atividade física cada uma seguida de uma sessão que simulava o trabalho de uma linha de montagem. Ao longo desta simulação, foram medidos os erros cometidos na montagem e vários parâmetros fisiológicos.
Não surpreendentemente, as conclusões desta experiência estão em linha com estudos anteriores que mostram que o stresse térmico ocupacional afeta a capacidade dos trabalhadores de cumprirem as exigências cognitivas e físicas do seu trabalho. Por curiosidade, questionei o investigador sobre como obtiveram o financiamento do estudo. Ele sorriu: “Foram fundos da União Europeia”. E acrescentou: “Os países nórdicos querem perceber como lidar com as ondas de calor porque já começam a sentir os efeitos nas suas economias”.
Na altura, ouvir isto foi quase um balde de água fria, sem qualquer efeito humorístico. Efetivamente, países com economias mais fortes investem seriamente na investigação dos mecanismos fisiológicos de adaptação ao ambiente quente e desenvolvimento de medidas de aclimatização nos locais de trabalho. Ou seja, países do norte preocupados com aquilo que já se faz sentir há muitos anos em países do sul.
Estima-se que por cada aumento em 1ºC no ambiente de trabalho, diminui a produtividade dos trabalhadores entre 2,5 e 5%. Isto tem impacto na economia de países do sul da Europa, como Portugal, o que deveria motivar um maior investimento na promoção da saúde e investigação na área da Medicina do Trabalho.
A este respeito, Portugal é dos poucos países europeus que não possui um instituto do Estado dedicado exclusivamente ao desenvolvimento, investigação e regulação da segurança e saúde ocupacionais. Talvez esteja na altura de percebermos que planeamento sério e rigoroso na qualidade da saúde ocupacional passará sempre pelo investimento na ciência. Só assim poderemos implementar melhores políticas de segurança e saúde nas empresas aliadas a uma regulação eficaz.