Mauro Paulino, crónica, in Expresso
A pobreza, que tem impacto em tudo, não poupa a saúde mental, acarretando, muitas vezes, consequências intergeracionais, em que o ciclo de pobreza, de dependência, de violência, de patologia, de restrição a meios de saúde, de limitação ao acesso a condições e necessidades básicas de vida se vai perpetuando. O psicólogo clínico e forense Mauro Paulino reflete sobre a questão, na primeira das duas crónicas do mês para o Expresso
Quando no rescaldo de uma pandemia, surge uma guerra no continente europeu, têm sido várias as notícias sobre a estagnação económica ou até de recessão, inclusive com reflexos no crédito habitação e subida da prestação mensal que pode ir até quase 300 euros. Uma realidade com inevitáveis reflexos nos sonhos de quem está a iniciar nova etapa de vida, bem como no quotidiano e gestão económica das famílias. É com este cenário socioeconómico de fundo e em sintonia com o primeiro dos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável que surge, pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, uma campanha intitulada “. Final à Pobreza”, a qual pretende, através do desenvolvimento e promoção de um conjunto de iniciativas e recursos promover um debate amplo, com a finalidade de desenvolver um plano estratégico de ação nesta matéria assente em várias dimensões.
Apesar das diferentes conceções de pobreza, podemos defini-la como um fenómeno multidimensional caracterizado por uma privação sustentada ou crónica de recursos, capacidades, escolhas, segurança e poder necessários para ter o padrão de vida considerado socialmente aceite numa determinada sociedade. Por outras palavras, diz respeito a uma impossibilidade de viver de acordo com objetivos e vontades pessoais e de alcançar o bem-estar, em resultado da carência de meios económicos ou da impossibilidade de converter rendimentos e recursos escassos em capacidade de funcionar.
Falamos em pobreza extrema perante uma situação em que os indivíduos não possuem recursos suficientes para satisfação das suas necessidades básicas, como por exemplo passar fome, não ter acesso a água potável, habitação condigna ou medicamentos. De acordo com os indicadores do Banco Mundial, a pobreza é extrema quando se vive com menos de um dólar americano por dia.
Por seu turno, a pobreza relativa diz respeito a uma situação na qual o padrão de vida e rendimentos dos indivíduos se situa abaixo do nível de vida do país ou região em que vivem, limitando a participação em atividades económicas, sociais e culturais.
Em 2021, a linha de pobreza em Portugal situa-se nos 540 euros, considerando-se em risco de pobreza qualquer pessoa cujo rendimento esteja abaixo desse valor. Aliás, os números da pobreza em Portugal e no mundo são impactantes, estimando-se que mais de 700 milhões de pessoas vivem em situação extrema (10% da população mundial); um em cada cinco portugueses vive em situação de pobreza ou exclusão social (20%); 400.000 pessoas terão caído abaixo do limiar da pobreza, em Portugal, durante a pandemia; as mulheres, as crianças e as pessoas idosas continuam a estar mais vulneráveis ao risco de pobreza e exclusão social; em 2030, existam cerca de 167 milhões de crianças em situação de pobreza. Nos últimos quinze anos, a taxa de pobreza infantil cresceu em alguns países Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), como é o caso da Grécia, Itália, Lituânia e Portugal.
Importa sublinhar que a pobreza não é uma apenas realidade estatística. São vidas e famílias fustigadas por esta realidade. A pobreza é uma experiência pela qual qualquer pessoa pode passar durante a sua vida e que pode limitar os recursos necessários ao enfrentamento de situações de adversidade e a capacidade para satisfazer necessidades. Vai muito para além da mera ausência ou escassez de recursos materiais, abrangendo à ausência ou escassez de outras formas de capital humano (nível de educação, competências e experiências pessoais), capital social (a rede de relações sociais) e capital de saúde (o bem-estar físico e mental).
Daqui decorre inevitavelmente que as situações de pobreza condicionam a possibilidade de desenvolvimento pleno da pessoa, a sua dignidade, a sua saúde e a possibilidade de bem-estar. Por isso, a pobreza encontra-se entre os principais determinantes socioeconómicos da saúde psicológica e do bem-estar, sustentando e sendo sustentada por desigualdades sociais e económicas, que, por sua vez, limitam as escolhas das pessoas. Os pobres surgem como cidadãos desprovidos de competências que lhes permitam encontrar caminhos em que possam afirmar-se como atores de escolha ou de mudança, movendo-se em situações que põem em causa a dignidade e os direitos fundamentais.
A pobreza que tudo impacta não poupa a saúde mental, acarretando, muitas vezes, consequências intergeracionais, em que o ciclo de pobreza, de dependência, de violência, de patologia, de restrição a meios de saúde, de limitação ao acesso a condições e necessidades básicas de vida se vai perpetuando. Se por um lado algumas dessas situações são quase estruturais e se reproduzem em cada nova geração de um determinado agregado familiar, há também situações que resultaram do desemprego prolongado ou da quebra acentuada de proventos, fazendo com que a carência que se previra transitória lance âncoras e se fixe irremediavelmente a um quadro de privação permanente.
O recurso “.Final à Pobreza” disponibilizado pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, no âmbito da campanha já mencionada, recupera um estudo que demonstra que progenitores em situação de pobreza têm maior probabilidade de ter crianças em situações de pobreza, mantendo-se a situação ao longo de várias gerações familiares. Uma criança que passe metade (ou mais tempo) da sua infância em situação de pobreza tem mais de 40% de probabilidade de viver nessa condição aos 35 anos.
Portugal tem um dos níveis mais altos de desigualdade de rendimentos da União Europeia e da OCDE, sendo um dos países desenvolvidos onde é mais difícil sair da pobreza, pois pode demorar até cinco gerações.
Adicionalmente, como salvaguardou Tiago Pereira, Membro da Direção Nacional da Ordem dos Psicólogos Portugueses, a pobreza tem também uma forte relação com as iniquidades e a exclusão (e, mais uma vez, a perpetuação dos seus ciclos), além de interferir e condicionar (pelo “efeito túnel” e pela escassez que impõe nos recursos afetivos e cognitivos) a capacidade de autocontrolo, planeamento e tomada de decisão das pessoas e de poder conduzir a processos de estigmatização e culpabilização.
É importante que a pobreza ou a carência de uns deixe de ser explorada por classes ou poderes dominantes, em nome de um lucro incessante e numa visão de que os indivíduos desprovidos de condições para se manter em cima da linha de água são, na verdade, mão de obra barata ou peças para usar e deitar fora, porque precisam de fazer face às suas despesas.
Na atualidade, a pobreza e a exclusão dificultam o acesso aos cuidados de saúde, sem embargo dos esforços de diversos projetos, mas cujo impulso não consegue catapultar a mudança social e económica necessária. Não podemos fechar os olhos ao facto de as condições de habitação e de vida determinarem graves danos físicos e mentais, nem de que a saúde psicológica é impactada pelas condições sociais, ambientais e económicas.
Embora não existam respostas fáceis ou soluções mágicas, há caminho a fazer no combate à pobreza, que deverá envolver contextos de saúde, comunitários, educativos, organizacionais e de construção de políticas públicas, tendo a ciência psicológica um relevante contributo a dar, numa lógica de abordagens integradas, multidimensionais e transversais, não estivéssemos nós a falar de pessoas.