13.7.22

Racismo nas polícias é estrutural e fica impune, diz perita

Mariana Oliveira, in Público

Quem o diz é Liz Fekete, directora do Instituto de Relações Raciais, um think tank sediado no Reino Unido, que alerta que em vários países europeus a “actividade de extrema-direita está a florescer na ala de segurança do Estado”.O racismo nas polícias europeias é um problema estrutural e não pontual, ao contrário do que as chefias tendem a defender, o que cria um problema de impunidade que potencia este fenómeno. Portugal não é uma excepção neste contexto. Quem o diz é Liz Fekete, directora do Instituto de Relações Raciais (IRR), um think tank sediado no Reino Unido há mais de meio século.

“Enquanto a liderança da polícia nega o racismo estrutural e procura atribuir atitudes racistas na polícia a elementos desonestos (as poucas maçãs podres) ou à cultura da cantina, o verdadeiro problema reside na falta de responsabilização”, afirma Liz Fekete no artigo de 43 páginas. E continua: “Uma cultura de impunidade está a ser reforçada por mecanismos de queixa burocráticos e falhados, além da aceitação das narrativas de vitimização [dos polícias] num quadro de negação institucional do racismo estrutural”.

No auge da sua influência, o Movimento Zero orgulhava-se de ter 78.000 seguidores no Facebook, com os sindicatos oficiais da polícia a não se distanciarem do mesmo Liz Fekete

Relativamente ao caso português, a directora do Instituto de Relações Raciais recorda uma carta aberta publicada no final de 2020, no PÚBLICO, assinada por mais de duas dezenas de organizações não-governamentais, na qual se defendia que o fenómeno da violência policial não corresponde apenas a “casos isolados de maus polícias” e se alertava para a relação “estruturalmente problemática” das forças policiais com comunidades racializadas, imigrantes e pobres.

A carta foi escrita no rescaldo da acusação de três inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras pela morte de Ihor Homenyuk, um imigrante ucraniano assassinado em Março desse ano no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, onde esteve manietado, numa sala, durante 15 horas. Os subscritores do artigo recordavam que nesse ano tinham sido condenados vários dos agentes envolvidos no caso da esquadra de Alfragide (apenas um com pena de prisão efectiva), destacando ainda outros casos tornados públicos na sequência da divulgação de vídeos nas redes sociais, como as agressões contra Cláudia Simões e membros da família Coxi, no Bairro da Jamaica.

Numa extensa análise publicada na última edição do jornal do instituto, Race & Class, Fekete reflecte sobre o racismo no interior das forças policiais europeias e a associação destas à extrema-direita. Alerta ainda para os perigos do uso das tecnologias de dados para criar modelos de “policiamento preditivo”, sistemas que já são uma realidade em alguns países europeus como o Reino Unido ou os Países Baixos, que, desde 2017, tem em funcionamento em todo o país o Sistema de Antecipação do Crime que cruza estatísticas criminais com dados socioeconómicos para direccionar os recursos policiais para locais específicos.

Denúncias de casos nas redes sociais

Para Liz Fekete, que já foi conselheira do Relator Especial das Nações Unidas sobre Racismo, é cada vez mais comum casos de violência desnecessária serem denunciados pela colocação de vídeos nas redes sociais, possíveis devido à fácil captura através de telemóveis. “Por toda a Europa, os líderes policiais estão a tentar minimizar os danos causados por estas revelações embaraçosas sobre a má conduta policial, utilizando variações do argumento ‘os nossos críticos não compreendem as realidades do policiamento’”, escreve a activista.

Talvez por isso, observa a autora, os polícias começaram frequentemente a fazer campanhas em torno do respeito que o público lhes deve demonstrar, associando a essa mensagem a cor azul, em contraponto ao movimento Black Lives Matter. Este grupo ganhou dimensão internacional após a morte de George Floyd assassinado nos Estados Unidos (Minneapolis) em Maio de 2020, estrangulado pelo joelho de um polícia branco que durante nove minutos e meio pressionou o pescoço do afro-americano, que múltiplas vezes se queixou de não conseguir respirar.

“Os polícias estão agora a mobilizar-se oficiosamente na base, formando frequentemente novos organismos que contornam ou complementam os sindicatos oficiais, que são vistos como demasiado lentos e adiados. Esta mobilização das bases é sustentada pela lógica de que a vida azul é uma forma de vida única que precisa de ser protegida”, afirma a estudiosa.

É neste contexto que a directora do IRR vê a criação do Movimento Zero, um movimento português formado nas redes sociais em 2019 por agentes descontentes no seio da PSP e da GNR. A autora recorda que o movimento angariou fundos para as famílias dos agentes da esquadra de Alfragide depois de estes terem sido condenados pelo rapto e agressões a jovens negros da Cova da Moura. “No auge da sua influência, o Movimento Zero orgulhava-se de ter 78.000 seguidores no Facebook, com os sindicatos oficiais da polícia a não se distanciarem do mesmo”, nota. A estudiosa refere ainda que quando o Observatório Português de Segurança, Crime Organizado e Terrorismo descreveu o movimento como “potencialmente perigoso”, os líderes da polícia parecem ter seguido uma estratégia de isolamento do mesmo, ao mesmo tempo que tranquilizam a hierarquia de que levavam a sério as suas queixas.

"A vitimização da polícia"

Para Fekete há uma tentativa de reenquadrar a história da brutalidade policial em relação aos afro-americanos, afirmando que a polícia é a verdadeira vítima da violência. “A criação de um mito urbano da vitimização da polícia e das suas famílias ajuda a isolar a polícia dos apelos à responsabilização e justifica a introdução de leis que reforçam ainda mais o seu poder”, sustenta a activista anti-racista. Neste aspecto, diz, Espanha tem sido o país da Europa mais explícito “na legitimação da abordagem do ‘crime de ódio’”, tendo tentando, em 2018, alargar a legislação sobre este tipo de crimes de modo a incluir a protecção da polícia.

Enquanto a liderança da polícia nega o racismo estrutural e procura atribuir atitudes racistas na polícia a elementos desonestos (as poucas maçãs podres) ou à cultura da cantina, o verdadeiro problema reside na falta de responsabilização Liz Fekete

Essa alteração não passou, mas a autora lembra que, em 2015, uma lei espanhola (popularmente conhecida como a "lei da mordaça") introduziu novos crimes de obstrução à autoridade, tendo a polícia dado poderes para emitir multas no local contra aqueles que “demonstrem falta de respeito”, e para multar aqueles (incluindo os media) que distribuam imagens não autorizadas da polícia.

A directora do IRR alerta para casos documentados que “revelam que a actividade de extrema-direita está a florescer na ala de segurança do Estado”. E realça: “Em certas partes da Europa, existe uma porta giratória entre a polícia, os militares e a extrema-direita”. Em países como França, Bélgica, Alemanha e Hungria, exemplifica, os candidatos a presidentes de câmara e deputados de extrema-direita têm sido antigos oficiais de alta patente. Também aqui Portugal não destoa.