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15.11.22

Habitação “é um direito humano”, lembram organizações católicas

Ângela Roque, in RR

Uma carta aberta pede medidas urgentes e denuncia “realidade desconcertante” que atinge “parte substancial da população”, com “situações inaceitáveis” ao nível dos despejos, realojamentos e “precariedade e sobrelotação” das casas.

A “Carta da Habitação: uma proposta das comunidades inseridas nas periferias” foi elaborada por iniciativa da Comissão Justiça, Paz e Liberdade, da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP), que representa várias congregações religiosas. Mas, entre os subscritores estão várias organizações da Igreja que atuam em bairros sociais e junto dos mais desfavorecidas, como os ciganos, os migrantes e os refugiados. Uma delas é a Obra Católica Portuguesa das Migrações (OCPM).

A Carta enviada às autarquias, sindicatos e comunicação social denuncia a “realidade desconcertante” que atinge “parte substancial da população”, com “situações inaceitáveis”, como despejos “sem alternativa condigna”, realojamentos “mal geridos” e “precariedade e sobrelotação” das casas.

O diagnóstico dos principais problemas não foi difícil de fazer por quem está no terreno. Ouvida pela Renascença, Eugénia Quaresma, da OCPM, diz que são precisas “medidas urgentes”, porque a crise na habitação é nacional, e vai aumentar.

“Não afeta só quem está em situação de vulnerabilidade, mas quem não estava e por causa da crise pode vir a estar. Por isso é urgente resolver esta situação, com políticas públicas para todos”, até porque, lembra, “a habitação faz parte dos direitos humanos. Todo o ser humano tem direito a uma habitação”.

“A crise [na habitação] atinge nacionais, os nacionais ciganos, os imigrantes. Sente-se a falta de respostas públicas e que alguns bairros de realojamento estão-se a degradar cada vez mais e a ser descuidados. É preciso uma nova capacidade de gestão”, indica aquela responsável, para quem esta é a altura certa para intervir.

“Pede-se uma solução para as casas devolutas e para os despejos. Não faz sentido que as pessoas sejam postas na rua sem uma solução alternativa e sejam transformadas em sem abrigo. Por isso é preciso refletir de uma forma conjunta e transversal sobre estas questões”.

Um contributo que as organizações católicas esperam continuar a dar, tendo em conta a experiência que têm, e para “que este movimento seja cada vez maior. Porque existem investigadores que estão a trabalhar na área, e grupos que estão a surgir nestes bairros, que ajudam a refletir estas questões. Por isso, é alargar o mais possível esta reflexão positiva e construtiva sobre o problema da habitação”.
“É urgente que todos tomemos consciência da realidade”

A Carta Aberta foi uma iniciativa da Comissão Justiça, Paz e Liberdade da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal, e é subscrita pelo Centro Diocesano de Lisboa da Pastoral dos Ciganos, a Obra Católica das Migrações e o Centro Padre Alves Correia, dos missionários espiritanos, que apoia imigrantes.

O documento lembra que a habitação “é um verdadeiro direito humano”, mas não está garantido para parte substancial da população em Portugal. Fala em “situações inaceitáveis”, com pessoas a “viver indignamente” devido à “precariedade e sobrelotação das casas", e despejos que são feitos “sem alternativa condigna”. E diz que, para além de haver um “mercado ilegal de venda e arrendamento de habitação pública”, há “famílias desfeitas com realojamentos dispersos”, as casas dos bairros sociais têm condições de habitalidade “precárias”, há mais sem-abrigo e famílias “destruídas pelas forças excludentes do mercado de arrendamento e mercado laboral”, sem oferta de casas a preços acessíveis.

A Carta alerta, ainda, para a desigualdade com que determinadas franjas da população são tratadas. “O problema da habitação não deve afetar mais as comunidades imigrantes, ciganas e afrodescendentes”, de que é exemplo “a negação abusiva por parte de alguns municípios à sedentarização de portugueses ciganos que são obrigados a manter-se nómadas, contra sua vontade, sem condições mínimas, vivando em tendas, sem água, eletricidade e sanitários”.

“É urgente que todos tomemos consciência da realidade atual”, lê-se ainda na missiva, que considera que falta “fiscalização” e “uma visão coletiva das políticas públicas e dos programas de habitação a partir das periferias, numa busca humanista alternativa à globalização capitalista”.

A Carta é endereçada aos presidentes de câmaras e juntas de freguesia, organizações sociais e ONG ́s (Organizações Não Governamentais), sindicalistas, jornalistas, professores e intelectuais, e a toda a sociedade civil.

13.7.22

Racismo nas polícias é estrutural e fica impune, diz perita

Mariana Oliveira, in Público

Quem o diz é Liz Fekete, directora do Instituto de Relações Raciais, um think tank sediado no Reino Unido, que alerta que em vários países europeus a “actividade de extrema-direita está a florescer na ala de segurança do Estado”.O racismo nas polícias europeias é um problema estrutural e não pontual, ao contrário do que as chefias tendem a defender, o que cria um problema de impunidade que potencia este fenómeno. Portugal não é uma excepção neste contexto. Quem o diz é Liz Fekete, directora do Instituto de Relações Raciais (IRR), um think tank sediado no Reino Unido há mais de meio século.

“Enquanto a liderança da polícia nega o racismo estrutural e procura atribuir atitudes racistas na polícia a elementos desonestos (as poucas maçãs podres) ou à cultura da cantina, o verdadeiro problema reside na falta de responsabilização”, afirma Liz Fekete no artigo de 43 páginas. E continua: “Uma cultura de impunidade está a ser reforçada por mecanismos de queixa burocráticos e falhados, além da aceitação das narrativas de vitimização [dos polícias] num quadro de negação institucional do racismo estrutural”.

No auge da sua influência, o Movimento Zero orgulhava-se de ter 78.000 seguidores no Facebook, com os sindicatos oficiais da polícia a não se distanciarem do mesmo Liz Fekete

Relativamente ao caso português, a directora do Instituto de Relações Raciais recorda uma carta aberta publicada no final de 2020, no PÚBLICO, assinada por mais de duas dezenas de organizações não-governamentais, na qual se defendia que o fenómeno da violência policial não corresponde apenas a “casos isolados de maus polícias” e se alertava para a relação “estruturalmente problemática” das forças policiais com comunidades racializadas, imigrantes e pobres.

A carta foi escrita no rescaldo da acusação de três inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras pela morte de Ihor Homenyuk, um imigrante ucraniano assassinado em Março desse ano no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, onde esteve manietado, numa sala, durante 15 horas. Os subscritores do artigo recordavam que nesse ano tinham sido condenados vários dos agentes envolvidos no caso da esquadra de Alfragide (apenas um com pena de prisão efectiva), destacando ainda outros casos tornados públicos na sequência da divulgação de vídeos nas redes sociais, como as agressões contra Cláudia Simões e membros da família Coxi, no Bairro da Jamaica.

Numa extensa análise publicada na última edição do jornal do instituto, Race & Class, Fekete reflecte sobre o racismo no interior das forças policiais europeias e a associação destas à extrema-direita. Alerta ainda para os perigos do uso das tecnologias de dados para criar modelos de “policiamento preditivo”, sistemas que já são uma realidade em alguns países europeus como o Reino Unido ou os Países Baixos, que, desde 2017, tem em funcionamento em todo o país o Sistema de Antecipação do Crime que cruza estatísticas criminais com dados socioeconómicos para direccionar os recursos policiais para locais específicos.

Denúncias de casos nas redes sociais

Para Liz Fekete, que já foi conselheira do Relator Especial das Nações Unidas sobre Racismo, é cada vez mais comum casos de violência desnecessária serem denunciados pela colocação de vídeos nas redes sociais, possíveis devido à fácil captura através de telemóveis. “Por toda a Europa, os líderes policiais estão a tentar minimizar os danos causados por estas revelações embaraçosas sobre a má conduta policial, utilizando variações do argumento ‘os nossos críticos não compreendem as realidades do policiamento’”, escreve a activista.

Talvez por isso, observa a autora, os polícias começaram frequentemente a fazer campanhas em torno do respeito que o público lhes deve demonstrar, associando a essa mensagem a cor azul, em contraponto ao movimento Black Lives Matter. Este grupo ganhou dimensão internacional após a morte de George Floyd assassinado nos Estados Unidos (Minneapolis) em Maio de 2020, estrangulado pelo joelho de um polícia branco que durante nove minutos e meio pressionou o pescoço do afro-americano, que múltiplas vezes se queixou de não conseguir respirar.

“Os polícias estão agora a mobilizar-se oficiosamente na base, formando frequentemente novos organismos que contornam ou complementam os sindicatos oficiais, que são vistos como demasiado lentos e adiados. Esta mobilização das bases é sustentada pela lógica de que a vida azul é uma forma de vida única que precisa de ser protegida”, afirma a estudiosa.

É neste contexto que a directora do IRR vê a criação do Movimento Zero, um movimento português formado nas redes sociais em 2019 por agentes descontentes no seio da PSP e da GNR. A autora recorda que o movimento angariou fundos para as famílias dos agentes da esquadra de Alfragide depois de estes terem sido condenados pelo rapto e agressões a jovens negros da Cova da Moura. “No auge da sua influência, o Movimento Zero orgulhava-se de ter 78.000 seguidores no Facebook, com os sindicatos oficiais da polícia a não se distanciarem do mesmo”, nota. A estudiosa refere ainda que quando o Observatório Português de Segurança, Crime Organizado e Terrorismo descreveu o movimento como “potencialmente perigoso”, os líderes da polícia parecem ter seguido uma estratégia de isolamento do mesmo, ao mesmo tempo que tranquilizam a hierarquia de que levavam a sério as suas queixas.

"A vitimização da polícia"

Para Fekete há uma tentativa de reenquadrar a história da brutalidade policial em relação aos afro-americanos, afirmando que a polícia é a verdadeira vítima da violência. “A criação de um mito urbano da vitimização da polícia e das suas famílias ajuda a isolar a polícia dos apelos à responsabilização e justifica a introdução de leis que reforçam ainda mais o seu poder”, sustenta a activista anti-racista. Neste aspecto, diz, Espanha tem sido o país da Europa mais explícito “na legitimação da abordagem do ‘crime de ódio’”, tendo tentando, em 2018, alargar a legislação sobre este tipo de crimes de modo a incluir a protecção da polícia.

Enquanto a liderança da polícia nega o racismo estrutural e procura atribuir atitudes racistas na polícia a elementos desonestos (as poucas maçãs podres) ou à cultura da cantina, o verdadeiro problema reside na falta de responsabilização Liz Fekete

Essa alteração não passou, mas a autora lembra que, em 2015, uma lei espanhola (popularmente conhecida como a "lei da mordaça") introduziu novos crimes de obstrução à autoridade, tendo a polícia dado poderes para emitir multas no local contra aqueles que “demonstrem falta de respeito”, e para multar aqueles (incluindo os media) que distribuam imagens não autorizadas da polícia.

A directora do IRR alerta para casos documentados que “revelam que a actividade de extrema-direita está a florescer na ala de segurança do Estado”. E realça: “Em certas partes da Europa, existe uma porta giratória entre a polícia, os militares e a extrema-direita”. Em países como França, Bélgica, Alemanha e Hungria, exemplifica, os candidatos a presidentes de câmara e deputados de extrema-direita têm sido antigos oficiais de alta patente. Também aqui Portugal não destoa.