António Correia de Campos, opinião, in Público
Alternando com a invasão russa da Ucrânia, o País mediático-político tem vindo a ser abalado com o drama da morte de um nascituro numa maternidade ocasionalmente desprovida de recursos humanos. Como dominós, outras maternidades públicas declaram a sua incapacidade de, no mercado respetivo, face à sazonalidade, obter os médicos tarefeiros que assegurem presença. Forças sindicais hostis à maioria governamental, deixaram instalar a ideia de desequilíbrio remuneratório de horas extra entre os da casa e os de fora. Não falta quem reconheça estar o setor privado a esfregar as mãos, por ter oferta mais disponível e procura sem gastos de publicidade. Não falta quem alegue que, por obstrução ideológica, o Governo não recorre a maternidades privadas, ignorando que se trata de mercados de oferta e procura diferentes das do SNS, tanto em severidade como em financiamento.
Apanhado em contramão de congénitas dificuldades de financiamento, o Governo responde como pode: uma comissão para gerir os fluxos da procura, tendo em conta as limitações da oferta – “mais uma comissão”, quando afinal se trata de um útil órgão de gestão logística – negociações sob pressão para tentar corrigir o desnível retributivo das horas extra e aceleração de um concurso de provimento, alargando as vagas de obstetrícia.
O problema, dito “estrutural”, reduz-se a flutuações enormes da oferta de médicos, agudizada pela reversão brusca da pletora médica do século passado em penúria inultrapassável, numa formação extralonga de recursos humanos. Quando os novos médicos eram mais numerosos, o SNS desembaraçava-se bem: pelo prestígio das carreiras, pela qualidade da hierarquia médica, pelo debate interno da casuística, terapêutica e investigação. O salário era o de hoje, mas com menos impostos. As horas extra mais bem pagas e mais liberais, havendo muitos abaixo dos 55 anos; internos para ensinar, aprendendo e ajudando. Modelo oficinal, sempre criticado, mas que funcionou durante décadas.
O SNS tem que se remuniciar: não para destruir ou deter o privado, apenas para defender o público. É possível voltar a transformar serviços hospitalares em bastiões de defensores coesos, interessados, animados e decentemente pagos.
Tudo se alterou nos últimos vinte anos, em três evoluções silenciosas: a demografia médica que gerara uma bolha de recursos no século passado foi esvaziada pelos efeitos da penúria formativa do “numerus clausus” no primeiro ano de medicina (1977) e subsequentes restrições que chegaram a menos de 200 admissões, em alegre combinação entre Ordem e Faculdades; a lenta e prolongada deterioração salarial na função pública, agravada nos 13 últimos anos; e o crescimento sem limites de um setor privado organizado, perante um Estado com escassa capacidade reguladora.
Mudanças invisíveis, mas cumulativas. Atado por limitações financeiras drásticas, o SNS respondeu com soluções transitórias e também invisíveis para as Finanças: tarefeiros, pagos como serviços externos. Na pressão dos acontecimentos, sempre ampliados pelos media e agora pela fragmentação e vocalidade de oposições gritando por sangue, torna-se muito difícil governar. O problema é de gestão, dizem os mochos sábios. Claro que sim! Tudo é gestão, a começar pela política.
Público e privado podem e devem conviver em harmonia. Sem que o primeiro anatemize o segundo e sem que o privado viva na obsessão de ultrapassar o SNS, deglutindo os despojos. É possível vencer a penúria e o desencanto com os meios que temos.
O SNS tem que se remuniciar: não para destruir ou deter o privado, apenas para defender o público. É possível voltar a transformar serviços hospitalares em bastiões de defensores coesos, interessados, animados e decentemente pagos. Tal como se fez com os cuidados primários através das USF é possível transformar serviços clínicos em centros de responsabilidade integrados (CRI), onde o cimento agregador nasça da comunalidade de motivações, se reforce pela partilha organizada de responsabilidades, se projete em metas vertidas em compromissos assistenciais individuais e coletivos e onde a recompensa seja proporcional ao desempenho. Já existe legislação, estão previstos no futuro regulamento do SNS, e já existem trinta CRI. Recuperar-se-ão os melhores dos tarefeiros, reter-se-ão os médicos do hospital que ainda não perderam o ideal da solidariedade e o “amor à camisola” e gerar-se-á aos poucos o movimento regenerador que responda às delícias do privado com o orgulho do serviço público.
Público e privado podem e devem conviver em harmonia. Sem que o primeiro anatemize o segundo e sem que o privado viva na obsessão de ultrapassar o SNS, deglutindo os despojos. É possível vencer a penúria e o desencanto com os meios que temos.
O problema, dito “estrutural”, reduz-se a flutuações enormes da oferta de médicos, agudizada pela reversão brusca da pletora médica do século passado em penúria inultrapassável, numa formação extralonga de recursos humanos. Quando os novos médicos eram mais numerosos, o SNS desembaraçava-se bem: pelo prestígio das carreiras, pela qualidade da hierarquia médica, pelo debate interno da casuística, terapêutica e investigação. O salário era o de hoje, mas com menos impostos. As horas extra mais bem pagas e mais liberais, havendo muitos abaixo dos 55 anos; internos para ensinar, aprendendo e ajudando. Modelo oficinal, sempre criticado, mas que funcionou durante décadas.
O SNS tem que se remuniciar: não para destruir ou deter o privado, apenas para defender o público. É possível voltar a transformar serviços hospitalares em bastiões de defensores coesos, interessados, animados e decentemente pagos.
Tudo se alterou nos últimos vinte anos, em três evoluções silenciosas: a demografia médica que gerara uma bolha de recursos no século passado foi esvaziada pelos efeitos da penúria formativa do “numerus clausus” no primeiro ano de medicina (1977) e subsequentes restrições que chegaram a menos de 200 admissões, em alegre combinação entre Ordem e Faculdades; a lenta e prolongada deterioração salarial na função pública, agravada nos 13 últimos anos; e o crescimento sem limites de um setor privado organizado, perante um Estado com escassa capacidade reguladora.
Mudanças invisíveis, mas cumulativas. Atado por limitações financeiras drásticas, o SNS respondeu com soluções transitórias e também invisíveis para as Finanças: tarefeiros, pagos como serviços externos. Na pressão dos acontecimentos, sempre ampliados pelos media e agora pela fragmentação e vocalidade de oposições gritando por sangue, torna-se muito difícil governar. O problema é de gestão, dizem os mochos sábios. Claro que sim! Tudo é gestão, a começar pela política.
Público e privado podem e devem conviver em harmonia. Sem que o primeiro anatemize o segundo e sem que o privado viva na obsessão de ultrapassar o SNS, deglutindo os despojos. É possível vencer a penúria e o desencanto com os meios que temos.
O SNS tem que se remuniciar: não para destruir ou deter o privado, apenas para defender o público. É possível voltar a transformar serviços hospitalares em bastiões de defensores coesos, interessados, animados e decentemente pagos. Tal como se fez com os cuidados primários através das USF é possível transformar serviços clínicos em centros de responsabilidade integrados (CRI), onde o cimento agregador nasça da comunalidade de motivações, se reforce pela partilha organizada de responsabilidades, se projete em metas vertidas em compromissos assistenciais individuais e coletivos e onde a recompensa seja proporcional ao desempenho. Já existe legislação, estão previstos no futuro regulamento do SNS, e já existem trinta CRI. Recuperar-se-ão os melhores dos tarefeiros, reter-se-ão os médicos do hospital que ainda não perderam o ideal da solidariedade e o “amor à camisola” e gerar-se-á aos poucos o movimento regenerador que responda às delícias do privado com o orgulho do serviço público.
Público e privado podem e devem conviver em harmonia. Sem que o primeiro anatemize o segundo e sem que o privado viva na obsessão de ultrapassar o SNS, deglutindo os despojos. É possível vencer a penúria e o desencanto com os meios que temos.