18.7.22

A chave do armário e o orgulho da invisibilidade

Luísa Semedo, opinião, in Público

“Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, escreve Wittgenstein no Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Ora, se não há palavra para descrever quem sou, quem sou eu? Será que existo? Que existência me é permitida para mim própria, na sociedade, na democracia?No brilhante programa da Antena 1 Fora do Armário, criado e conduzido por Paulo Côrte-Real, a última pergunta feita às pessoas entrevistadas era sobre a sua chave do armário. 

O programa tinha por ambição, segundo o seu resumo, dar voz “a diferentes pessoas LGBT que quebram os silêncios que a discriminação tenta impor, partilhando as suas histórias de vida e de afirmação”. Esta pergunta final é inspirada do livro A chave do armário, do primeiro convidado, o antropólogo e ativista Miguel Vale de Almeida, e contou com a participação de pessoas ligadas à área da política, artes e ativismo.

A “saída do armário” ou coming out, nomeadamente de figuras públicas, é, como defende a jornalista e militante Alice Coffin no seu livro O génio lésbico (2020), um ato de coragem, de alegria e amor, um ato de ativismo que pode mudar a vida das pessoas. Permite ajudar a vários níveis, como nas questões de representação ou de modelo, quem já saiu ou “quem ainda está a sair dos seus armários”, mas também “dar a conhecer melhor o que isso significa” a todas as outras pessoas, “o que significa a discriminação que é viver em silêncio, para além das outras discriminações”, explica Paulo Côrte-Real numa entrevista à plataforma esQrever.

As saídas dos armários das pessoas LGBT+ são geralmente libertadoras, e um momento de alegria para quem as vive e para quem as acompanha, mas existem outras saídas, de outro tipo de armários, que parecem revestir um caráter particularmente doloroso para quem as experiencia e para quem as observa. Foi o que senti ao ler a sofredora “saída do armário” de José Pacheco Pereira no seu artigo Porque é que todes não é todos, nem todas?, em que revela ter descoberto algo “que nunca na vida lhe tinha passado pela cabeça”: é um “caucasiano branco, do sexo masculino, cisgénero”.

Pacheco Pereira junta assim a sua voz às da vasta comunidade das Pessoas Universais e Neutras (PUN) que beneficiavam (e continuam a beneficiar) da invisibilidade dos seus armários. A comunidade PUN está a viver um momento de crise identitária obsessiva, um pânico inexorável, podem tentar voltar para o conforto dos seus armários, mas a porta está agora aberta à vista do mundo. Perderam a chave. Pacheco Pereira deixou de passar despercebido enquanto homem quando fala de feminismo ou enquanto branco quando fala de colonialismo (sobretudo quando parece não compreender porque é que o insulto “preto” não é “atingido pelo mesmo opróbrio” que “branquela”). Nós, mulheres, pessoas negras e LGBT+ podemos compreender esse sentimento, visto ser o nosso quotidiano, não beneficiando nunca do armário da universalidade e neutralidade. Somos vítimas constantes da descredibilização das nossas vozes, das nossas produções.

Como descreve de forma lapidar Grada Kilomba em Decolonizing Knowledge (2016), somos vozes consideradas não científicas, específicas, subjetivas, pessoais, emocionais, pois “eles têm factos, nós temos opiniões, eles têm conhecimento, nós temos experiências”. “O neutro é o homem. (...) A mulher é o Outro”, denuncia Alice Coffin em O génio lésbico.

Enquanto a oprimida comunidade PUN se lamenta de já não poder dizer aquilo que quer, no preciso momento em que está a dizer aquilo que quer (por vezes até em meios de comunicação com grande audiência), vai continuando a impor aquilo que se deve ou não dizer, e quem tem autoridade ou não para falar. Que maravilhoso sentimento de omnipotência e de supremacia! Dizem às mulheres, pessoas negras ou LGBT+ como é que devem ser designadas, que identidades ou que direitos podem ou não ter e até que insultos devem ou não suportar. Eu, por exemplo, enquanto pessoa afrodescendente e bissexual terei de suportar que me insultem de “preta fufa” só para satisfazer as ansiedades linguísticas de Pacheco Pereira. Se assim não for, estarei a participar no terrível empobrecimento da linguagem.

Mas a democracia não é um dicionário desencarnado, as palavras importam porque estão por detrás pessoas, pessoas de “corpo e alma” e com direitos. Este é um clássico da visão antidemocrática da comunidade PUN, a liberdade de ofender de uns é mais importante do que a liberdade de não ser ofendido dos outros.

Este é um clássico da visão antidemocrática da comunidade PUN, a liberdade de ofender de uns é mais importante do que a liberdade de não ser ofendido dos outros

A comunidade PUN tem orgulho na sua invisibilidade, mas por vezes também na sua ignorância preguiçosa que exibe sem qualquer pudor: “Ena, tantas letras, quero lá saber o que isso significa! A comunidade LGBT+ tem uma história? Quero lá saber, para mim é uma moda, ouvi falar do assunto ontem e achei por bem dar a minha opinião fundamentada no mais puro ‘achismo'”. E, no entanto, diversas fontes de aprendizagem existem para não se cair na “absoluta idiotia”, como por exemplo, o belíssimo documentário Les invisibles (2012), de Sébastien Lifshitz, que conta a luta de pessoas LGBT nos anos 50 em França e que na altura da gravação com idades entre os 75 e 85 anos testemunham sobre a extrema importância da linguagem, da necessidade de existirem nomes com os quais se pudessem identificar.

Ou ainda o excelente documentário My name is Pauli Murry (2021), de Julie Cohen e Betsy West. Pauli Murry, incrível ativista dos direitos civis, nasceu em 1910, exercia a advocacia, tendo tido influência em várias leis nos EUA contra a segregação, pelos direitos das mulheres e pessoas LGBT+ mesmo depois da sua morte em 1985. Lutou toda a sua vida com a sua identidade e expressão de género, e provavelmente entraria, hoje, na categoria das pessoas transgénero ou não-binárias, segundo vários artigos de investigação, textos biográficos ou entrevistas da família. Pauli Murry descrevia-se como tendo um “instinto sexual invertido”, comportando-se como um homem atraído por mulheres

Não é uma moda, e justamente pessoas viveram tantos momentos dolorosos por falta de reconhecimento interno e externo. “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, escreve Wittgenstein no Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Ora, se não há palavra para descrever quem sou, quem sou eu? Será que existo? Que existência me é permitida para mim própria, na sociedade, na democracia?

Wittgenstein também defendia que “sobre aquilo de que não se pode falar devemos ficar em silêncio”, ao que podemos acrescentar que sobre aquilo de que não se sabe falar, deve-se aprender e, em primeiro lugar, aprender a ouvir. Até porque, como diz o povo, “o saber não ocupa lugar” e o LGBTTTQQIAA+ tem o todo o direito de ocupar o seu lugar numa democracia inclusiva que respeite os direitos de todas, todes e todos.