29.7.22

Caro D. Manuel Clemente: pedofilia não é só pecado. É crime

João Miguel Tavares, opinião, in Público

O Papa Francisco já explicou isto mil vezes. A Igreja portuguesa, pelos vistos, continua a não querer perceber.

Se a ocultação de centenas de milhares de casos de pedofilia por parte da Igreja não for a maior barbaridade cometida ao longo da sua História (a competição é forte), é com certeza uma das maiores. A Igreja permitiu a destruição da vida de crianças inocentes e das suas famílias, denegou-lhes justiça, ocultou os crimes dos seus sacerdotes, promoveu a prática continuada desses crimes ao deslocar os padres pedófilos para outras paróquias, cobriu tudo com um repugnante manto de silêncio, colocou a reputação da hierarquia à frente do sofrimento dos mais fracos, afastou do seu seio os justos para proteger os ímpios, cuspiu em cada palavra do mesmo Evangelho que jurou seguir.

Não é coisa pouca. Bento XVI começou a dar os primeiros passos, ainda tímidos, para corrigir a situação. O Papa Francisco tem sido bastante mais resoluto: assumiu tudo, pediu perdão vezes sem conta, impôs a criação de comissões independentes para avaliar a escala do drama da pedofilia ao nível local, tomou medidas efectivas para ajudar a purificar o ambiente da Igreja – só que, infelizmente, continua a ser muito difícil enfiar as suas ideias na cabeça de todos os padres e de todos os bispos, pois, como o próprio Papa já explicou, é tarefa hercúlea remover o clericalismo da Igreja – essa perversão estrutural que é sempre um sintoma de falta de humanidade. Nas suas sábias palavras, “sob qualquer rigidez há sempre podridão”.

Ponham podridão nisso. Veja-se o caso agora noticiado pelo Observador: tanto D. José Policarpo, no final dos anos 90 (por queixa da mãe da vítima), como D. Manuel Clemente, já depois de 2019 (por queixa da própria vítima), tiveram conhecimento de uma acusação de abusos sexuais de uma criança de 11 anos, ocorrida no início da década de 90, por parte de um jovem padre. Esse padre foi afastado das actividades paroquiais por D. José Policarpo apenas em 2002, para logo ser colocado numa capelania onde voltou a ter contacto com jovens, sem que nem o antigo nem o actual cardeal-patriarca tenham apresentado queixa à polícia.

Embora este caso em concreto esteja por esta altura prescrito, é muito pouco compreensível que D. Manuel Clemente continue a refugiar-se em respostas evasivas, tanto mais que, como explica o pedopsiquiatra Pedro Strecht no artigo, “há um alto risco de prossecução do mesmo crime, porque os abusadores, uma vez abusando, têm grande probabilidade de o continuar a fazer”. Ora, quando o Observador tentou saber mais pormenores sobre a actuação da Igreja, foi “informado telefonicamente pelo gabinete de imprensa do Patriarcado que D. Manuel Clemente não pretendia dar mais respostas ao jornal”. Quanto às respostas que deu, elas não descansam ninguém: segundo o Patriarcado, terá sido a vítima a não querer divulgar o caso, já que a sua intenção foi apenas garantir “que não se voltasse a repetir”.

A sério? Esta ausência de explicações é um pecado capital – chama-se soberba, e é o oposto da humildade. Há um duplo problema naquele raciocínio: 1) Ninguém percebeu, até agora, que raio fez a Igreja para impedir “que não se voltasse a repetir”. 2) Não compete à Igreja substituir-se às autoridades civis e ao Ministério Público. A pedofilia não é apenas um pecado – é também um crime. A Igreja pode ocupar-se do primeiro, mas é à Justiça, e só à Justiça, que compete avaliar o segundo. O Papa Francisco já explicou isto mil vezes. A Igreja portuguesa, pelos vistos, continua a não querer perceber.