3.7.07

"Orçamento do Estado deve deixar de financiar ADSE"

Catarina Gomes, in Jornal Público

Isenção de taxas moderadoras deve manter-se apenas em pessoas de baixos rendimentos e doentes crónicos, defende especialista


Jorge Simões é o presidente de uma comissão de peritos que nas últimas semanas marcou a actualidade na área da saúde. Convidada pelo Ministério da Saúde a estudar novas formas de financiamento para garantir a sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde (SNS), produziu um documento de quase 200 páginas com medidas polémicas: a diminuição das deduções fiscais com despesas de saúde, o corte na isenção das taxas moderadoras ou o fim da ADSE, num total de sete recomendações. Depois de o documento ter finalmente sido tornado público, o ex-assessor de Jorge Sampaio para a Saúde vem dizer ao PÚBLICO que não deve haver assuntos tabu.

PÚBLICO - A comissão diz que a redução das deduções fiscais com despesas de saúde (de 30 para dez por cento) seria uma das medidas com mais impacto para garantir a sustentabilidade do SNS. Esta medida não iria prejudicar os cidadãos?

Jorge Simões - A nossa preocupação fundamental foi identificar aspectos de eficiência do SNS para com isso haver contenção de gastos, mas talvez a preocupação mais importante tenha sido com a equidade. Praticamente todas as recomendações que fazemos pretendem que o SNS seja mais solidário, que procure fazer a redistribuição do financiamento para os que mais necessitam.

E a redução das deduções fiscais vai nesse sentido?

As questões das deduções são uma história mal contada. Por um lado, Portugal é um dos países mais generosos em matéria de dedução fiscal na Europa; por outro, verificamos que os que mais beneficiam com deduções fiscais são os mais ricos.

Porque é que isso acontece?

Quem recupera uma percentagem superior das despesas com saúde são de longe os portugueses com rendimentos mais elevados. A dedução faz-se à colecta, calcula-se primeiro o imposto e depois subtrai-se 30 por cento de despesas em saúde. Se tenho rendimentos mais elevados, consumo mais bens e serviços de saúde. O montante da despesa é ilimitado. Posso apresentar no final do ano um conjunto de facturas no valor de dez mil euros e ao meu lado está alguém de rendimentos pouco elevados que apresenta mil euros; num caso a dedução são três mil euros, noutro são 300 euros.

É essa a razão que vos leva a defender a redução?

Há uma situação ainda mais gravosa do ponto de vista das assimetrias: cerca de 40 por cento das famílias portuguesas não pagam IRS porque são demasiado pobres e não podem deduzir nenhuma das suas despesas nos impostos. As deduções fiscais na saúde são o Robin dos Bosques ao contrário - tira-se do bolo dos impostos para dar aos ricos. O que propomos é que seja ao contrário, que as deduções fiscais sirvam para fazer maior redistribuição do financiamento do SNS, canalizando para os mais carenciados e não para os mais afluentes.

A questão também está em saber onde seriam aplicados esses 20 por cento de despesas de saúde que deixavam de ser deduzidos...

Não tratámos do destino dessa diferença. Pode-me é perguntar onde é que eu gostaria que esse dinheiro fosse aplicado. Não me canso de dizer que há uma área fundamental de cuidados de saúde que está omissa no SNS: a medicina dentária. Cerca de 92 por cento das consultas realizam-se fora do SNS. Apenas quem tem dinheiro para pagar consulta no consultório privado é que trata da sua saúde oral.

A comissão usa a palavra "iniquidade" quando se refere à ADSE e diz que em cada nove euros só um é pago pelo utente que usufrui desses serviços. Outra das escolhas da comissão seria acabar com subsistemas públicos como a ADSE?

Defendemos que o Orçamento do Estado não deve ser a sua fonte de financiamento. A ADSE é criada por Salazar em 1963, quando o Estado português era corporativo e era suposto que as corporações (comércio, indústria, etc.) resolvessem os problemas de saúde dos seus associados. Quando, em 1979, é criado o SNS, nada se faz à ADSE. Os contribuintes financiam o SNS para todos os portugueses e financiam um subsistema só para funcionários públicos. A questão que nós colocamos é de equidade. Faz sentido, passados quase 30 anos da criação do SNS, continuar a financiar um subsistema que dá resposta a apenas uma fatia dos portugueses?

A resposta da comissão é não...

Do nosso ponto de vista não faz sentido, mas todas as medidas tinham de ser realizadas com muito equilíbrio. Se a decisão fosse tomada, era necessário um período transitório durante o qual fossem salvaguardados os direitos adquiridos pelos funcionários.

A comissão faz recomendações mas não analisa as repercussões das medidas. Acabar com a ADSE traria para o SNS 1,3 milhões de portugueses e deixaria debilitado o sector privado que depende das convenções. Teria o SNS capacidade de dar resposta a estes utentes?

Tem razão naquilo que diz. Nós não estudámos até ao fim todas as consequências das medidas que sugerimos. Temos a noção das implicações financeiras.

Só financeiras?

Primordialmente as financeiras, mas tomando em consideração aspectos de equidade. Poderá haver um conjunto de soluções, como a possibilidade de sindicatos ou outro tipo de associações poderem continuar a dar esta protecção especial aos seus associados, como a que existe para os bancários.

O relatório refere também que as comparticipações com medicamentos em Portugal são baixas em termos europeus e que esta é a maior despesa dos cidadãos na saúde. Não será excessivo pedir mais dinheiro ao cidadão acabando com certas isenções de taxas moderadoras?

Não menosprezo esse ponto de vista, mas pode ser visto de outro ponto de vista, que é o da redistribuição dos rendimentos. Justificar-se-á que metade dos portugueses esteja isenta do pagamento de taxas moderadoras? Dizemos que deve haver dois critérios centrais que justificam isenções: o dos rendimentos e o da cronicidade da doença. Não deve haver assuntos tabu. Temos de estudar estas questões com seriedade e saber que há escolhas a ser feitas com base em racionalidade e de modo a que os portugueses saibam aquilo que o SNS pode dar e aquilo que não pode dar.

Não é racional, por exemplo, dar isenção a grávidas ricas e pobres?

Do ponto de vista financeiro é quase despiciendo - as taxas moderadoras representam um por cento das despesas de saúde -, o que interessa é o princípio da transparência.

No caso das crianças com menos de 12 anos, elas só continuariam a estar isentas se fossem de famílias de baixos rendimentos ou doentes crónicos?

Pode haver pais que não levam as crianças ao médico de família ou ao pediatra porque têm de pagar taxas moderadas, um argumento sério. Mas também faz sentido que pais de crianças de altos rendimentos estejam isentos de taxas moderadoras? Ou será que o produto dessas taxas moderadoras poderá ser utilizado para redistribuir de forma mais equitativa o financiamento? Os dois são argumentos sérios.

Este não é o primeiro governo que se preocupa com a questão do financiamento. Já houve quatro estudos cujas recomendações não foram usadas. Este é mais um estudo para ir para a gaveta ou é para ser usado in extremis?

[risos] Em termos de decisão não sei, nem é da minha competência saber.
Como é que interpreta a demora do Ministério da Saúde em só agora divulgar um relatório que foi entregue em Fevereiro?

Nós fizemos o nosso trabalho e cumprimos prazos. Não me compete comentar opções do Governo.

A sustentabilidade do SNS está em causa?

Penso que não. Estou surpreendido com este crescimento da despesa com o SNS de 2,9 por cento [2004-2006]. Agora, se quiser marcar uma conversa para daqui a um ano ou dois, se calhar dar-lhe-ei uma resposta diferente.