11.6.07

Se uma criança era capaz de oralizar, então era inteligente

Joana Capitão, in Jornal Público

Marta tem 29 anos. Há 27, os pais descobriram que era surda. "Tinha atraso na linguagem e não comunicava, mas nessa altura a língua gestual era considerada negativa e os meus pais investiram muito na minha oralidade e na escrita."
O percurso escolar até ao quinto ano dividiu-se entre o ensino regular e o ensino especial para surdos. Da escola de ensino regular, guarda a recordação de uma espécie de "clínica de reabilitação". "Em vez de aulas, a professora ia para os corredores conversar com os colegas, e deixava os alunos à vontade. Outras vezes, havia jogos de audição, todos nós tínhamos de nos virar de costas para a professora, ela chamava-nos pelo nome e quem a conseguisse ouvir ganhava um "prémio"."

"A imagem que davam às crianças surdas era que tínhamos muitas limitações, a oralidade era considerada o ponto inteligente. Se uma criança era capaz de oralizar, então era inteligente. O ensino de surdos era mesmo muito fraco, os professores não sabiam como comunicar connosco, resumiam a matéria e facilitavam a avaliação. Mal precisava de estudar."
Matérias adaptadas e insuficientes. Foi assim a vida escolar de Marta até à passagem para o secundário. Essa nova etapa trouxe consigo grandes dificuldades. "Habituada a um ensino fraco e sem precisar de estudar", teve de acompanhar um ritmo bem diferente. "Achava-me muito inferior aos ouvintes e que nunca ia conseguir ser "igual" a eles. Sempre me deram a imagem de que nunca iria conseguir continuar a estudar."
Mas Marta conseguiu. A abertura do curso de especialização em Língua Gestual e Surdez da Faculdade de Letras foi a porta de entrada para um percurso escolar que se revelaria mais longo do que alguma vez imaginara. Em 1997, ano do reconhecimento da Língua Gestual na Constituição Portuguesa, foi convidada para dar aulas no Instituto Jacob Rodrigues, a escola de surdos mais antiga de Portugal.
Três anos depois, decidiu voltar a estudar, desta vez na Escola Superior de Educadores de Infância Maria Ulrich. Fez o exame e passou à primeira. Porém, duvidaram se lhe podiam atribuir o diploma sem saber se tinha capacidade para ensinar crianças ouvintes. "Foi de facto injusto, porque eu só pretendia ensinar surdos, e porque a esmagadora maioria dos educadores ouvintes com diploma não tem capacidade para ensinar as crianças surdas. Mas passei por uma prova de fogo, tive de fazer estágio com crianças ouvintes durante um ano. Sem vontade, mas fi-lo com nota final de 17 valores."