Aumento do custo da energia, impulsionado pela guerra na Ucrânia, fez disparar em quase 20% o preço do peixe em Portugal. Quilo de pescada aumentou €4 numa semana. Quase todos os peixes estão mais caros e nem o mais acessível carapau escapou à inflação
Nas prateleiras do supermercado é difícil encontrar algum produto que não tenha aumentado de preço nos últimos dois meses. Para trazer o mesmo carrinho de compras é preciso agora pagar bastante mais. Um cabaz básico para o consumo mensal de uma família custa mais €17,16 (10%) do que no final de fevereiro, quando começou a guerra na Ucrânia. De todos os produtos, a carne e o peixe são os que mais subiram e até os tradicionalmente mais baratos estão a tornar-se inacessíveis para as famílias mais pobres. A Direção-Geral da Saúde (DGS) teme que a acelerada inflação possa vir a agravar carências nutricionais e admite mesmo reativar o sistema de monitorização da insegurança alimentar que esteve a funcionar nos centros de saúde durante a crise económica de 2011-2014.
Segundo a Deco Proteste, que monitoriza a evolução dos preços em todo o país, a carne teve um aumento de 13% e nem as que são mais em conta, como porco, frango e peru, escaparam à subida. Este mês, só numa semana, o frango ficou 10% mais caro. No peixe, a escalada foi ainda maior, com um salto de quase 20% entre 23 de fevereiro e 20 de abril; na semana passada, por exemplo, um quilo de pescada aumentou €4. Não foi caso único. O salmão já teve uma subida acumulada de quase €3 por quilo e o robalo subiu 17% no mesmo período. Até o mais barato carapau disparou 12%.
“A subida do preço do peixe é explicada, sobretudo, pelo aumento do custo da energia, tanto pelo gasóleo para as embarcações, como para o armazenamento a frio e para o transporte”, explica Jorge Rato, presidente da Associação da Indústria Alimentar pelo Frio, que representa o sector do peixe fresco e congelado. No caso da pescada é o transporte que mais pesa. Metade da fresca e toda a congelada que é consumida em Portugal vem de fora, de países como o Chile e a África do Sul, e é trazida por via marítima, em contentores que triplicaram o preço desde o ano passado.
Mas mesmo o peixe da nossa costa está mais caro, sobretudo pela subida do gasóleo para os barcos. Para minimizar o impacto, o Governo anunciou esta semana a criação de um “regime excecional e temporário de compensação aos profissionais da pesca pelo acréscimo de custos de produção” provocado pela guerra.
Direção-Geral da Saúde pondera voltar a mobilizar os centros de saúde para avaliar os níveis de insegurança alimentar
“Até os peixes que costumam ter preços mais acessíveis, como o carapau, a sardinha e a cavala, estão a subir, e ninguém pode prever até onde irá o aumento”, diz Jorge Rato. Com a escalada de preços, muitas famílias já se viram obrigadas a reduzir o consumo de peixe. “Nota-se uma quebra enorme. A situação já estava má, mas ficou pior com o início da guerra. Foi a partir daí que os preços começaram a subir mais e que a procura começou a degradar-se. As pessoas estão a comprar muito menos e vários clientes que vinham todas as semanas desapareceram. Há muita gente que praticamente deixou de comer peixe”, descreve Madalena Sarmento, peixeira no Mercado 31 de Janeiro, em Lisboa.
Na passada terça-feira, dia habitualmente forte em vendas, faturou apenas €52, quando antes fazia com facilidade €300 ou €400, diz. Para conseguirem vender algo e não terem de deitar o peixe fora, muitos comerciantes são forçados a baixar os preços, vendendo abaixo do que compraram na lota. As perdas avolumam-se. “Na semana passada comprei duas garoupas a €24/kg + IVA e não consegui vender. Para conseguir despachá-las tive de baixar para €18/kg. Conclusão: só em duas garoupas perdi €84. No total, em fevereiro e março já tive prejuízos de mais de €1000 e este mês vai ser pior”, lamenta. E o panorama é geral.
À mesa dos portugueses, o peixe vai escasseando, mas as alternativas também. “Noutras alturas, quando havia aumento do preço dos peixes mais baratos, as pessoas substituíam-nos por carne de frango ou porco, mas essas também já aumentaram. Sinceramente, nem sei para que proteína animal se vão virar”, diz Jorge Rato.
De acordo com um estudo da Nova SBE, as famílias mais carenciadas gastam em alimentação quase um quinto do que ganham. Na conta do supermercado, a carne é o que pesa mais (25%), seguida por pão e cereais (17%), peixe (13%), leite, queijo e ovos (12%). “As pessoas adaptam o seu cabaz de compras à melhor forma de conseguirem satisfazer as suas necessidades nutricionais, tendo em conta o seu orçamento. Mas esta lógica tem obviamente limites. As carências podem estar ao virar da esquina”, alerta a economista Susana Peralta, coordenadora do estudo (ver texto “Famílias pobres precisam de mais €40/mês”).
DGS PREOCUPADA
No terreno, a presidente da Cáritas, que apoia mais de 150 mil portugueses, já nota o agravamento das carências. "A situação está a degradar-se de dia para dia. A escalada de preços já está a ter um grande impacto no que as pessoas conseguem comprar. Há muito que estas famílias já só compravam os produtos mais baratos e não têm como substituí-los. Uma vez que até esses aumentaram, em muitos casos não têm alternativa a não ser desistir de os comprar. Estamos muito preocupados”, assume Rita Valadas.
A Direção-Geral da Saúde (DGS) partilha a preocupação. “Nas famílias onde a alimentação é responsável por uma grande fatia do orçamento, o preço dos alimentos é um forte modelador do consumo. É expectável que neste contexto de inflação as famílias mais carenciadas enfrentem ainda mais dificuldades para conseguirem ter acesso a uma alimentação saudável”, diz Maria João Gregório, diretora do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável da DGS.
“A situação está a degradar-se de dia para dia. Muitos não têm alternativa a não ser desistir de comprar”, alerta a presidente da Cáritas
Mais do que uma diminuição do consumo de carne e peixe, que entre os portugueses é tradicionalmente acima do recomendado, a responsável da DGS teme, sobretudo, um decréscimo do consumo de fruta e hortícolas, que em Portugal está abaixo do aconselhado, em particular nos mais pobres. Segundo a Deco Proteste, as frutas e legumes também não escaparam aos aumentos, com uma subida de 4,6%. Este mês, só numa semana, a courgette disparou 23% e as ervilhas 15%. Tomate (10%), brócolos (11%), batata (8%) ou cenoura (6%) também estão mais caros e o mesmo acontece com a fruta.
No que diz respeito à proteína animal, as conservas, sobretudo de pescado, podem ser uma boa alternativa, defende Maria João Gregório. Mas o seu preço também disparou. Em março, o atum em óleo subiu quase 10%. E só esta semana, as latas de salsichas subiram 5%.
Perante esta situação, a DGS admite ao Expresso reativar o “sistema de monitorização da situação de insegurança alimentar” que esteve a funcionar no Serviço Nacional de Saúde entre 2011 e 2014, com uma rede de “enfermeiros-sentinelas” que avaliavam nos centros de saúde o nível de carências da população. Durante aquele período de forte crise, cerca de metade das famílias inquiridas aleatoriamente estavam em situação de insegurança alimentar.