Teresa de Sousa e Graça Franco (RR, in Jornal Público
O seu combate é recolocar a questão da "responsabilidade de proteger" na agenda; o seu alerta é contra a guerra de civilizações
Há dois anos eleito alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), António Guterres, de 58 anos, antigo primeiro-ministro português, ex-presidente da Internacional Socialista, luta hoje contra a distracção do mundo para acudir à sorte dos mais de 35 milhões de refugiados e deslocados internos que tem o dever de proteger. Alertar o mundo para a "responsabilidade de proteger" é a sua campanha política. Alertar a Europa para a necessidade de se abrir e de construir sociedades multiculturais é a outra face da mesma moeda. Em Lisboa de passagem, ele foi o entrevistado do Diga Lá, Excelência, uma parceria entre o PÚBLICO, a RTP2 e a Rádio Renascença. Seguem-se extractos.
PÚBLICO - O peso do mundo ocidental tem decrescido nos últimos anos enquanto aumenta o peso do mundo islâmico. Que problemas novos isto lhe trás na sua actividade de ACNUR?
ANTÓNIO GUTERRES - O que é grave não é a perda de influência do mundo ocidental e o aumento de influência do mundo islâmico. Se quisermos, no plano económico, também se assiste à perda de influência da Europa e dos Estados Unidos em favor da Ásia. O que me preocupa é que a relação entre esses mundos esteja a ser, cada vez mais, uma relação de confronto. A chamada guerra das civilizações - que alguns desejam e que eu considero que é nosso dever fazer tudo para evitar - está aos poucos a ganhar força no mundo.
A linha de fractura passa por um crescente que começa no Afeganistão, Paquistão, Irão, Iraque e que se prolonga pelo Líbano, Palestina, Sudão e Somália, onde vemos agudizar um conjunto de conflitos sem solução a curto prazo que têm ajudado a criar este clima de confrontação, que não é apenas militar mas entre as sociedades.
Se pensarmos que, na Europa, vive hoje um número muito significativo de muçulmanos que são europeus e que fazem parte das nossas sociedades, é fundamental combater este estado de coisas e procurar estabelecer pontes para que a relação entre esse mundo e o mundo ocidental possa ser uma relação de tolerância e de aceitação.
E essa fractura que acabou de descrever, como é que se faz sentir numa organização que tem de tratar das vítimas de todos esses conflitos?
Faz-se sentir pelo facto de a maioria dos refugiados do mundo serem hoje muçulmanos. E há uma enorme dificuldade em garantir protecção aos muçulmanos que fogem dos seus países neste clima de confronto, em que existe a ideia da identificação entre muçulmanos e terroristas. Mas é também a violência das guerras que nos causa grandes dificuldades de acesso.
Além dos refugiados, há os deslocados internos - por exemplo, o Iraque tem mais de dois milhões de pessoas nessa situação -, e a comunidade internacional tem muito pouca capacidade para os ajudar. No Darfur, há dois milhões de pessoas internamente deslocadas. Aí, a ajuda humanitária tem sido eficaz, mas a protecção e a segurança não estão garantidas. No interior da Somália, é praticamente impossível proteger as pessoas.
E isso obriga-o a quê?
O estatuto de refugiado abrange as pessoas que atravessam as fronteiras e são protegidas pela lei internacional. E eu, como alto-comissário, tenho a obrigação de os proteger. Mas os deslocados internamente não têm nenhum instrumento jurídico internacional de protecção, estão sujeitos à autoridade dos seus governos. E hoje, infelizmente, o conceito de "responsabilidade de proteger" que se foi desenvolvendo e a que pudemos recorrer, por exemplo em Timor-leste, está a perder força face à reafirmação da soberania nacional.
É preciso de novo fazer ganhar consciência ao mundo de que é preciso criar um equilíbrio entre a soberania do Estado e a soberania da pessoa humana e que há uma responsabilidade da comunidade internacional face a certas condições de genocídio ou de limpeza étnica maciça que tem de ter uma tradução prática. A defesa deste princípio é uma das causas que me parecem mais importantes no mundo actual.
Houve essa responsabilidade de proteger no Kosovo, na Bósnia, em Timor. Mas deixou de haver em Darfur?
Nos anos 90, houve um grande movimento de afirmação do primado dos direitos humanos, daí a ingerência humanitária, daí os exemplos que apontou. As intervenções na Bósnia e no Kosovo foram feitas para proteger comunidades muçulmanas. Isso foi extremamente importante e não o utilizamos o suficiente para valorizar o que de bom foi feito e ajudar a juntar comunidades em torno de objectivos nobres em vez de as separar por razões artificiais. O Iraque é o momento de viragem. Teve um enorme peso e contribuiu para uma muito maior resistência da comunidade internacional à responsabilidade de proteger. Há uma reacção forte porque as pessoas argumentam que essas intervenções humanitárias acabam por ter outros objectivos.
E como é que se inverte essa tendência?
A "responsabilidade de proteger" não é só intervir militarmente. É também, em primeiro lugar, a responsabilidade de prevenir. Em muitos casos, a comunidade internacional consegue intervir porque se gera um consenso. No Darfur, o Governo do Sudão aceitou finalmente a presença de uma força mista da União Africana e da ONU, que levará ainda uns meses a instalar-se e que, não devemos ter ilusões, só por si não resolverá o problema. O Darfur tem o tamanho da França e estamos a falar de 20 mil homens, com maior ou menor credibilidade em função da sua proveniência.
O Greenpeace fala da possibilidade de haver mais de 200 milhões de refugiados ambientais nos próximos anos. É um novo problema?
Essa é uma enorme preocupação. Creio que essa é uma questão que o mundo tem de discutir: não temos instrumentos de protecção e de apoio a essa gente, que, no futuro, será cada vez em maior número.
O século XXI vai ser o século do povo em movimento. Gente que não tem outro remédio senão deslocar-se. Por extrema pobreza, por degradação do ambiente, por perseguição política, pela guerra. Creio que faz sentido manter um tratamento próprio para estes dois últimos casos, mas há que encontrar mecanismos porventura diferentes para que a comunidade internacional esteja preparada para proteger aqueles que vão ser maciçamente deslocados pelas alterações climáticas.