27.5.07

Trabalhar num túnel com "a água pelos joelhos" e um "falso" contrato de 403 euros

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Haverá 300 portugueses a trabalhar na construção dos túneis e da Barragem de Karahnjukar. Como os polacos e os paquistaneses, ganham em média três mil euros, "metade dos italianos"


Ainda lhe dói o estômago. José Santos é pedreiro, profissão dura. Mas não estava preparado para "condições tão más" como as que encontrou naquele projecto islandês de estruturas industriais hidroeléctricas. "Eram muitas horas a trabalhar com água até aos joelhos; não podia descansar um bocadinho senão era despedido. Chovia em cima do comer. Queria pôr o pão na mesa e não podia, ficava todo molhado."
Assinou um contrato com a Select - I Serviços Lda, uma das maiores agências de trabalho temporário a operar em Portugal, para prestar serviço à Impregilo, SA - uma empresa italiana que garantiu uma das empreitadas da Metro do Porto - no projecto hidráulico Karahnjukar.

Avisaram-no de que iria trabalhar numa "zona de montanha com muita neve" - no exterior, 20 graus negativos e ventos que podem atingir 200 quilómetros por hora. Durante o Inverno, a noite dura 23 horas; durante o Verão, o quadro inverte-se. Avisaram-no da inexistência de "qualquer população perto da obra" - a cidade mais próxima fica a 120 quilómetros e a televisão seria o seu único entretenimento. Não sabia que "teria de trabalhar 14 horas por dia". Não imaginava que lhe serviriam o almoço condimentado ("cozinheiros paquistaneses e chineses") ali mesmo, dentro dos longuíssimos túneis destinados a recolher água proveniente do degelo e a transportá-la para a barragem. Nem que só lhe dariam "dez a 15 minutos para comer".

Na obra trabalharão uns "300 portugueses - 150 a 200 nos túneis, o resto na barragem". Os dos túneis afligem-se com a água gélida, com a poluição ("muitas vezes não se consegue ver um colega que está a dez metros, por causa do fumo"), os outros com a neve, com o vento cortante. "Todas as semanas, vão dez portugueses para lá [a maior parte recrutados por outra agência de trabalho temporário na zona de Setúbal] e voltam outros dez", diz o pedreiro gaiense de 47 anos. "E só não vêm mais embora porque têm de pagar a viagem do bolso deles."

O contrato, a que o PÚBLICO teve acesso, estabelece uma remuneração- -base de 403 euros por mês, com alimentação, alojamento, viagem a cada três meses de trabalho consecutivo incluídos. "Fazer um contrato para ir trabalhar para a Islândia a 403 euros [de salário-base] é aberrante! Isto até devia ser investigado pela Polícia Judiciária!", indigna-se Albano Ribeiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil no Norte, que deu uma conferência a denunciar "a escravatura" na Islândia.

Correspondessem aqueles 403 euros ao salário real e José nem teria arrancado. "Esse é o salário que a Select põe para fazer os descontos. O ordenado [base] é 1500 euros. Com as horas extras, os domingos e feriados, dá para tirar três mil euros", assevera.

Conforme o contrato, o que excede as 40 horas semanais é considerado trabalho suplementar e remunerado como tal. Um outro documento da Select - 1 Serviços Lda, que o trabalhador teve de assinar, informa que: "Por semana são feitas 60 horas, a partir daí as horas são pagas, nos dias úteis, a partir da 10h/dia a 50 por cento, a partir da 12h/dia a 75 por cento; nos sábados, a partir da 10h/dia a cem por cento; nos domingos e feriados a 150 por cento."

"É uma violação", acusa Ribeiro. "Em Portugal, o trabalhador da construção não se pode negar a fazer duas horas extras por dia, mas isso tem de vir acautelado no contrato", explica. A primeira hora extra é paga a 50 por cento, a segunda e terceira a 75. A legislação islandesa é ainda mais favorável. E ali "nem sequer têm folgas".

José acordava às 5h45 para apanhar o autocarro às 6h15. Entrava nos túneis às 7h00 e só saía às 18h00. Nem saía para almoçar. "Montam uma mesa lá dentro e as pessoas têm de comer em dez a 15 minutos". Eram 11 horas por dia "com a água gelada até aos joelhos, a chuva a cair". Usava fato térmico e galochas, mas saía de lá "todo molhado".

"Sentia-me escravizado"

Não mudava logo de roupa. "Há um acampamento ali perto, jantávamos lá." Às 20h30, ainda húmido, apanhava o transporte. Cumpria uma viagem de 60 quilómetros até entrar no quarto individual. Tomado um valente banho, vestia uma roupa seca, olhava para relógio a marcar 22h00. Não tardava a deitar-se numa cama de madeira (com "um colchão fininho, de oito ou nove centímetros") e tratava de dormir o melhor que podia até às 5h45. Valia-lhe que as duas horas gastas em deslocações contavam como trabalho.

Não era só a exaustão. "Sou pedreiro e fui para lá como servente - eles querem que a gente vá como servente e faça o trabalho qualificado, faça o trabalho de um trolha de primeira", queixa-se José. "Os italianos que lá estão, a fazer o mesmo, ganham quase seis mil euros." Mais três mil do que os polacos, os portugueses e os paquistaneses da mesma categoria profissional. Sentia-se "escravizado". E enjoado. "Não me dei com a comida; comia, vomitava, e eles não queriam saber disso. Acho que tenho uma gastroenterite." Nos últimos dias já nem olhava para as refeições que ali serviam; comprava umas sandes, "mas também não podia estar sempre a sandes".

Chegou a 4 de Maio e partiu a 17. A agência tem um colaborador em Karahnjukar, "para resolver os problemas do pessoal", como o adiantamento de vales ou a aquisição de cartões de telemóvel. José foi ter com ele e disse-lhe que queria voltar para casa. "Marcaram-me a passagem para regressar o mais depressa possível", lembra. "Vão-me descontar esse valor dos 14 dias que trabalhei lá. Acho mal." Não foi ontem possível contactar a Select, a agência funciona de segunda a sexta-feira depois das 9h00. Albano Ribeiro afiança que irá denunciar o caso ao Ministério do Trabalho e à Inspecção-Geral do Trabalho e não exclui a hipótese de se deslocar à Islândia.
Sindicato da Construção Civil do Norte vai levar o caso à Inspecção-Geral do Trabalho e ao ministério da tutela