5.6.07

Não é um Big Brother, é um cego a testar até que ponto a Net portuguesa é acessível

Bárbara Simões, in Jornal Público

Experiência decorre num aparthotel de Lisboa. Em 1999 foi a bordo de um veleiro que duas pessoas testaram como funcionavam as lojas electrónicas do país


Um cego começa hoje a tentar uma coisa que não sabe se já é possível fazer: cumprir a maior parte das tarefas do dia-a-dia recorrendo apenas à Internet.

Fernando Santos, de 33 anos, deslocar-se-á durante dez dias ao aparthotel Eden, nos Restauradores, em Lisboa. Usará o computador para comprar roupa, comida e bilhetes para espectáculos, mas também marcar consultas ou tratar de operações bancárias, por exemplo.

Depois de, em 1999, ter colocado duas pessoas num veleiro, no Tejo, a viver durante um mês exclusivamente com o que conseguissem comprar nas lojas electrónicas do país, a empresa Vector21 quer desta vez testar a acessibilidade dos portais portugueses (ver outro texto).

A experiência não é um Big Brother. Não haverá "cego isolado durante 24 horas" a protagonizar uma espécie de teste de sobrevivência. Ao final do dia Fernando regressa a casa, nos arredores de Lisboa.

A acompanhá-lo em permanência no Eden terá João Pulido - que em 1999 passou, com Ricardo Branco, um mês no veleiro.

Tudo nessa experiência lhe agradou, conta agora João Pulido, de 42 anos, dono de uma empresa em Braga. Houve algumas "privações", como terem comprado vinho e depois não terem conseguido arranjar um saca-rolhas, mas não mais que isso. Se no fim daquele mês fosse preciso continuar no barco, "não tinha problema nenhum".

Amante de vela, João estava à vontade no ambiente do veleiro. Radioamador, desde novo que se habituara a formas de comunicação em rede. Quando surgiu a Internet, essa "gigantesca fonte de conhecimento, viu-se aliás "completamente dependente": "Nos computadores que tinha tido sabia o que estava lá dentro. Quando me liguei à rede, não sabia". Continua a usá-la "muitas horas por dia", entre outras coisas para fazer compras.

Ricardo Branco, analista de informática, de 36 anos, lembra-se bem do que mais lhe custou enquanto esteve no veleiro. Foi não ter toalhas nos primeiros dias. "Acho que a coisa que mais comprámos foram aqueles panos Vileda amarelos. Mandámos vir aos 40, 50 nos primeiros dias. Quase ninguém vendia toalhas e quando descobrimos quem vendesse demoraram dez dias a chegar."

Conseguir pratos e talheres também não era fácil. O que se encontrava à venda on-line era de plástico. "Por acaso num dos sítios ofereciam um tacho na compra de não sei quanto esparguete." Encomendaram a triplicar e ficaram com três tachos.
Hoje Ricardo faz com regularidade as compras de supermercado pela Internet e não duvida que a experiência de Dezembro de 1999 seria agora "completamente diferente". A oferta não tem comparação.

Os dias no veleiro ficaram registados num diário de bordo (http://www.canal21.pt/projecto/diariodebordo/index.html); hoje provavelmente chamar-se-ia blogue.

João e Ricardo sobressaltaram--se com as notícias do trânsito em Lisboa - temiam que as compras um dia ficassem retidas na Segunda Circular. Compraram um televisor. Agradeceram a chegada do bacalhau para a ceia de Natal. Celebraram com champanhe a chegada do Ano Novo ao primeiro ponto do globo.

No fim Ricardo foi a casa, mudou de roupa e voltou para o barco com os amigos, para receber a bordo a meia-noite portuguesa. Era "um óptimo sítio" para isso.
a A experiência de comércio electrónico a bordo de um veleiro, em 1999, "correu bastante bem". Mas hoje são outros os desafios que se colocam quando se fala de Internet. E para o presidente da empresa Vector21, Luís Novais, "o principal é saber se conseguimos passar da sociedade da informação para a da integração".
Por outras palavras: os portais portugueses já estão preparados para que determinados grupos de pessoas - como os cegos - possam utilizá-los? "Estamos a falar de comércio electrónico, administração pública, órgãos de comunicação, educação..."

Recolher informação que permita responder a esta pergunta é um dos propósitos da experiência, promovida pela empresa de tecnologias de informação, que hoje tem início em Lisboa. Um trabalho de 2003 concluía que a maioria dos websites da administração pública deixava bastante a desejar quanto a acessibilidade.
No final dos dez dias que Fernando Santos passará no Eden saber-se-á mais sobre as dificuldades encontradas. Contribuir para melhorá-las é o segundo objectivo da Integra21.

"O que queremos", resume Luís Novais, "é fazer um teste e fazer pedagogia". Não será por falta de interesse que uma parte da Net poderá não estar acessível, diz. "Acreditamos que é por falta de mentalização."

O teste ao funcionamento das lojas electrónicas do país foi há anos feito a bordo de um veleiro no Tejo