23.9.09

"A selva é a nossa casa, por favor não a destruam. Para onde havemos de ir?"

in Jornal Público

Acampamento de imigrantes ilegais, na sua maioria afegãos, foi desmantelado em Calais. Quase 300 pessoas foram detidas, metade dos quais menores


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O lugar era conhecido como "a selva": um bosque nos arredores de Calais, cidade portuária no Norte de França, onde imigrantes ilegais se escondiam, enquanto tentavam dar o salto para o Reino Unido. Refugiavam-se ali durante o dia e saíam à noite para escrutinar camiões e contentores em busca de uma porta, uma abertura para atravessar o canal da Mancha. Ontem, forças policiais e bulldozers demoraram duas horas a evacuar e desmantelar "a selva", uma operação registada pelas câmaras de televisão e presenciada por meia centena de jornalistas.

Foram detidos 278 imigrantes, dos quais 132 eram menores, na sua grande maioria afegãos de etnia pashtun. Momentos antes, alguns deles empunhavam bandeiras onde se lia, em inglês e pashtu: "A selva é a nossa casa. Pf [por favor] não a destruam. Se o fizerem, para onde havemos de ir?"

Segundo os relatos na imprensa francesa e inglesa, meia centena de agentes policiais chegaram ao acampamento às 7h30 da manhã e cercaram o lugar. Não foi uma investida inesperada: o ministro francês da Imigração, Eric Besson, tinha anunciado a semana passada que a operação estava iminente. Junto com os imigrantes estavam jornalistas, que esperavam a aparição das forças policiais. E activistas de defesa dos imigrantes ilegais, alguns expressamente vindos de Inglaterra, que formaram um escudo humano em volta dos habitantes da "selva" quando a polícia começou a avançar.

Nas imagens televisivas, as altercações entre os agentes e os manifestantes das associações contrastam com as colunas ordeiras e silenciosas dos imigrantes a serem evacuados. Adultos de um lado, menores do outro, boa parte dos quais eram crianças ou adolescentes que no máximo teriam 16-17 anos, notou o repórter do Libération , presente no local. Os mais novos teriam 10 anos, afirmou ao mesmo jornal o abade Jean-Pierre Boutoille, porta-voz do C"Sur, um colectivo de associações de Calais que apoiam os imigrantes. Muitos choravam.

Há relatos de confrontos entre a polícia e os manifestantes - nomeadamente da associação britânica No Border, que o PÚBLICO tentou contactar, sem sucesso - e segundo a BBC houve algumas detenções entre os activistas. "Não há fronteira, não há deportação", gritavam, enquanto a polícia tentava romper a cadeia humana para chegar aos imigrantes. "Levem esse para a esquadra, ele está a dar-me cabo dos nervos", ordenou um che-?fe policial, apontando para um dos activistas, relata o Guardian .

Vincent Lenoir, secretário-geral da associação Salam, também presente no local, disse ao PÚBLICO por telefone que a actuação da polícia foi, "por vezes, brutal e violenta". Depois da retirada dos imigrantes, bulldozers deitaram as tendas e abrigos abaixo.

Outras "selvas"

"A selva" existia desde há alguns anos. Como outros acampamentos precários de imigrantes clandestinos na zona de Calais, ela emergiu depois do encerramento forçado, em 2002, de um centro de acolhimento gerido pela Cruz Vermelha em Sangatte, próximo de Calais. O Governo francês terá sido pressionado pelo Reino Unido a fechar o local, tido como um chamariz de imigrantes ilegais. Nos últimos seis meses, "a selva" tinha a maior população de sempre, diz Vincent Lenoir: 800 imigrantes. Os jornais dizem que muitos abandonaram o local nos últimos dias, depois da ordem do ministro da Imigração para desmantelar o acampamento. Muitos fugiram rumo à Bélgica e Holanda, procurando chegar à Escandinávia, diz o Le Monde . Alguns deverão ter conseguido atravessar a Mancha, outros terão procurado refúgio noutras florestas, em sítios mais isolados. Por que é que os quase 300 imigrantes ontem levados pela polícia não tentaram, também, fugir? "Porque não tinham sítio nenhum para onde ir", diz Vincent Lenoir, da associação Salam. "Eles encontram-se numa situação de grande precariedade, completamente perdidos."

Ontem, membros dos governos francês e britânico congratularam-se pelo encerramento do acampamento de Calais, ao passo que partidos da oposição e associações de apoio a imigrantes denunciavam o que entendem ser uma falsa solução. O ministro britânico do Interior, Alan Johnson, saudou a actuação "rápida e firme" do Governo francês. Eric Besson afirmou que a operação não visava os imigrantes, mas "as redes mafiosas de traficantes" que lhes vendem viagens para a Inglaterra a um "preço muito elevado". ""A selva" era o campo principal dos traficantes. Não é um campo humanitário. Há hierarquias, é a lei da selva que impera", disse, adiantando que nos próximos dias haverá outros desmantelamentos.

Mas a oposição socialista e comunista reagiu, dizendo que se trata de uma operação de cosmética que não conseguirá prevenir a formação de outras "selvas". "Outras selvas irão emergir", disse um afegão de 16 anos ao Times em Calais. "Há muitas florestas aqui à volta." A Salam já as contabilizou: são 19, da Bretanha à Bélgica.