17.5.11

Família Almeida - um ano de crise

Textos de Ana Cristina Pereira, in Público on-line

16.05.2011 Uma criatura chega ao pé da Manuela e zás.

­— Como é que estão as coisas?

— As coisas estão reduzidas a uma refeição quente por dia.

E ela levanta-se todos os dias. E ela arranja-se todos os dias. E ela sai de casa todos os dias. Porque todos os dias contam. E se uma criatura se deixa estar um dia pode querer deixar-se estar outro e outro e outro — até ficar colada a uma cama.

A Manuela acaba de fazer 49 anos e tem o 12.º ano. Está farta de ver anúncios nos jornais a pedir administrativas com menos de 35 e curso superior. Às vezes, vê a procura de emprego como “uma corrida contra uma parede de aço”. Parece impossível ultrapassá-la, mas ela acredita que a ultrapassará. Haverá uma porta. É preciso encontrá-la.

— A vida está para quem luta.

Estamos sentadas em cadeirões de um dos bares da Casa da Música. O dia está carrancudo. Não tarda nada, chove. No PÚBLICO, a história de um homem que perdeu a fortuna na Caixa Económica Faialense. O homem luta. Não fez outra coisa nos últimos 25 anos. Mas não parece ter a sabedoria dela. Ele avinagrou. Ela não. Talvez porque ela tem a música.

— A música é o oásis.



13.04.2011

Estive com a Manuela esta terça-feira. Parecia mais nova. Obra do novo penteado, trabalho final de uma estudante de cabeleireiro, alternativa para quem não tem dinheiro para entrar num salão.

Trouxe-me uma belíssima prenda: um marcador de livros. Já me tinha dito que fazia marcadores de croché e que os vendia para ganhar uns trocos. Nunca imaginei que fossem tão perfeitos.

Tem uma filha a estudar e outra a trabalhar. E a que está a trabalhar tem um contrato a termo certo.

Revolta-a o estado a que o país chegou. E revolta-a ouvir culpar os desempregados, os beneficiários de rendimento social de inserção — os mais vulneráveis. E não os banqueiros, os políticos — os decisores.

Continua à procura de trabalho — dia após dia após dia após dia. Sente-se num limbo.

— Parece que sou invisível. Não sei… É complicado. Já estou a perder o dom da multiplicação das refeições.

— Que quer isso dizer?

— A gente tem de poupar electricidade. Faz, por exemplo, uma carne estufada e isso também dá para um empadão, para uns rissóis ou para uma salada.

— E está mais difícil fazer isso?

— Parece que estamos a entrar em racionamento.

Não está a pensar em cruzar os braços, por muito que os peritos do Fundo Monetário Internacional digam que a economia continuará a cair, que o desemprego continuará a subir, que vem aí mais austeridade, menos protecção social. “Não vou entrar em negativismos. É viver um dia de cada vez.”

Ontem, estava tão desassossegada que só lhe “apetecia pegar nas pautas e tocar pela noite dentro”. Não podia. Tem o teclado avariado. “E depois? E depois?”, perguntava-me. “Há sempre uma solução: pega-se nas pautas, cantarola-se mentalmente a música que se lê e mexe-se os dedinhos nas teclas mudas. O que é preciso é aplicar bem a imaginação.”

A força dela contagia. A mim, só me apetecia levá-la a um concerto na Casa da Música. Hoje, a Manuela vai ouvir Grigory Sokolov.