28.3.23

Igreja: os abusos têm dois mil anos

Henrique Raposo, opinião, in Expresso

Perante a dura realidade dos abusos, muitos católicos continuam em negação; uns dizem que é uma cabala, outros argumentam que os abusos são uma consequência da degradação moral do século XX. Lamento, mas isto não começou no nosso tempo. Como mostra o jornalista João Francisco Gomes no livro “Roma, temos um problema” (Tinta-da-China), a história dos abusos de crianças dentro da Igreja tem dois mil anos

Para se perceber a revolução moral que foi o cristianismo, temos primeiro de perceber como é que era a moral pagã. Algumas séries ajudam-nos nesse trabalho, “Vikings” e “Rome”, por exemplo. Não gostei por aí além de “Rome” do ponto de vista dramático, mas pode ser uma boa aula de História. Ali vemos duas marcas culturais pagãs que depois são negadas pelo advento do cristianismo, o suicídio enquanto honra e o sexo enquanto coisa, um bem transacionável como qualquer outro, independentemente do género ou idade. A sexualização dos menores não era um pecado.

Ora, uma das mensagens revolucionárias de Jesus é mesmo a centralidade que Ele dá às crianças, ao respeito que é preciso ter pelos mais pequenos, algo que muito simplesmente não existia no mundo pagão – pelo menos na escala que se criou após o cristianismo. Pode argumentar-se que foi o cristianismo que concebeu a “infância” enquanto espaço sagrado de proteção contra um mundo pagão que não sacralizava a criança e o bebé.

É por tudo isto que os abusos na Igreja são tão devastadores, porque vemos o catolicismo a perder no seu campo de batalha; estas crianças foram e são abusadas no espaço que à partida deveria ser de total proteção; os autoproclamadores criadores e defensores da "infância" não conseguiram proteger aquelas crianças. É por esta razão que os abusos na Igreja são mais graves do que os abusos em qualquer outra instituição.

Pois bem, perante a dura realidade dos abusos, muitos católicos continuam em negação; uns dizem que é uma cabala, outros argumentam que os abusos são uma consequência da degradação moral do século XX. Lamento, mas isto não começou no nosso tempo. Como mostra o jornalista João Francisco Gomes no livro “Roma, temos um problema” (Tinta-da-China), a história dos abusos de crianças dentro da Igreja tem 2 mil anos, começou logo no século I. Ao longo dos séculos, podemos assistir a uma luta interna entre aqueles que queriam esconder (os vencedores) e aqueles que queriam combater o abuso e a ocultação do mesmo (os derrotados).

Portanto, voltamos sempre ao mesmo: a visão pecaminosa e artificial que a Igreja criou sobre o sexo desde o início. E, se o celibato por si só não explica abusos, também é verdade que o celibato obrigatório é “uma das múltiplas expressões de uma forte política de controlo e repressão sexual levada a cabo pela hierarquia cristã desde o primeiro século, que criou uma atmosfera de secretismo à volta da questão do sexo e que contribuiu para a difusão de práticas sexuais marginais e ocultas entre membros do clero” - conclui João Francisco Gomes.

Se a Igreja fez do sexo algo maldito e pecaminoso, não pode ser surpresa vermos tantos membros do clero a cair na tentação do sexo enquanto algo pecaminoso, secreto, maldito e em direta contradição com os textos que inventaram a infância, os evangelhos - uma contradição com 2 mil anos, e não apenas com umas décadas, como pretendem muitos católicos.