João Vieira Lopes: “O IVA zero é dificilmente fiscalizável”

Helena Pereira e Susana Madureira Martins (Renascença), in Público online

Líder da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal não poupa nas críticas ao Governo. “Nem parece um governo que tem uma maioria absoluta”.

João Vieira Lopes, presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), avisa Governo que se for reaberto o Acordo de Rendimentos, como sugere a UGT, deve discutir-se "tudo", incluindo os horários dos estabelecimentos comerciais e revela que a CCP vai insistir com os partidos para pedirem a inconstitucionalidade de uma medida que o Presidente da República não vetou: a proibição de outsourcing depois de despedimento colectivo. A entrevista a Hora da Verdade, programa do PÚBLICO/Renascença, pode ser ouvida na íntegra esta quinta-feira pelas 23 horas na Renascença ou no site do PÚBLICO.

Usando uma expressão do Presidente da República, acha que é operacional o IVA zero? É fiscalizável?

É uma medida que tem algum impacto, quer em termos de opinião pública, quer em alguns descontos que são úteis. Faz alguma pressão sobre o comércio para ter atenção à temática dos preços. Agora, é dificilmente fiscalizado no sentido de manter os preços estáveis, porque o IVA é uma das componentes do preço e há outros factores de produção que evoluem. Por isso é que sempre defendemos junto do Governo que devia tentar-se acordar que as empresas não aumentassem as margens de comercialização, porque, naturalmente, se outros factores de produção aumentarem, elas vão ter de reflectir.

É possível as pequenas lojas e as mercearias adaptarem-se à mudança nos preços? Acha que na prática não vai acontecer nada?

Em Portugal, existem neste momento 14 operadores independentes de pequena e média dimensão. As associações que agrupam esse sector comprometeram-se a incentivar a que o IVA zero seja praticado. O mercado português é bastante concentrado. Tem dois operadores que fazem quase 60% e seis operadores que fazem 80% e, por isso, esse tipo de estabelecimentos, apesar de representarem 15 a 20% do mercado, não tem peso negocial.

A medida vai durar para lá de Outubro? O que é que antevê?

Não sabemos se a inflação terá tendência a baixar, se baixará muito, se baixará pouco. Além disso, também tem que ver com a disponibilidade que o Governo tem de investir nessas áreas e, nomeadamente, apoiar a produção agrícola porque é um dos factores de produção que pode determinar o preço final dos produtos.

Falou-se muito da negociação tripartida entre o Governo, a distribuição e a produção. Onde é que ficaram o comércio e os serviços? Foram tidos e achados nestas negociações?

Nós participamos através da plataforma de acompanhamento do sector alimentar, onde estão representadas quer a indústria quer as diversas áreas do comércio, assim como diversas áreas agrícolas. A negociação final foi feita directamente com os grandes operadores.

Para si, fica claro quem é que fiscaliza o cumprimento deste IVA zero?

Essa é uma dificuldade real porque as margens médias finais que todos os operadores têm são uma média entre o preço normal, o preço em promoção, o preço em grande promoção. Há sempre aqui uma zona bastante fluida. No entanto, pelo menos, da parte dos grandes operadores, acho que comprometeram também a sua imagem em termos reputacionais, que ficará posta em causa se houver muitos incidentes.

O programa Mais Habitação é aprovado esta semana. Há imóveis que, segundo este pacote, estão actualmente destinados a actividades comerciais que vão poder ser convertidos facilmente em habitação. Qual é a posição da Confederação sobre isso?

Essa é uma medida marginal. Sobre habitação, defendemos que deve haver, como em vários países da Europa, uma lei do arrendamento comercial ou empresarial. Todas as medidas que têm a ver com despejos, cessação de contratos por obras, por remodelações, no caso do comércio, têm que ter em conta duas vertentes: investimentos físicos, como o frio na restauração, e a localização. Em termos de indemnizações, tem de haver especificidades como existem em vários países. É um tema que queremos introduzir. Já tivemos um projecto de lei mas, com as mudanças dos governos, ficou pelo caminho.

Queria retomar a discussão sobre essa legislação?

Sim e, por outro lado, também há a questão do alojamento local.

É o grande sacrificado?

É, é o grande sacrificado. Deve respeitar-se aquilo que foi autorizado e o alojamento local pode, em particular nas zonas do interior, ter um papel muito importante na dinamização e no povoamento. A medida foi excessivamente radical.

O programa da habitação, no seu conjunto, é excessivamente superficial, não vai resolver a questão. Algumas medidas são positivas e são aproveitáveis, mas são claramente pouco ambiciosas em relação à situação global do mercado.

A medida ainda pode ser mudada até à aprovação final?

Acho que sim. Todo este programa foi um programa para provocar impacto mediático. Em Portugal, há um problema claro de oferta [de habitação] e se não se actuar sobre a oferta, não se resolve. E as medidas do Governo actuam pouco em termos de oferta. Se não se aumentar a oferta, os preços não baixam. Não vale a pena ter ilusões. O programa, no seu conjunto, é excessivamente superficial, não vai resolver a questão. Algumas medidas são positivas e são aproveitáveis, mas são claramente pouco ambiciosas em relação à situação global do mercado. Aliás, isso corresponde a uma das críticas que nós fazemos ao Governo. O Governo que é um governo de uma legislatura, por vezes, reage no dia-a-dia com medidas conjunturais. Não é que sejam negativas mas, ao fim de todos estes anos, não há uma visão estratégica e nem parece um governo que tem uma maioria absoluta.

Sobre o acordo de rendimentos que foi assinado no ano passado, a UGT já veio admitir accionar a cláusula de salvaguarda deste acordo e pedir a revisão antes de Outubro, que é o que está previsto. Faz sentido uma revisão antes do tempo, por exemplo, na sequência do aumento intercalar dos salários que o Governo agora prevê em 1% para os funcionários públicos e a nova estimativa de inflação por parte do Banco de Portugal, agora fixada nos 5,5%?

Globalmente, ainda é cedo para se fazer um balanço. Se for reaberta a discussão, nós vamos à discussão mas temos que garantir que a discussão tem de ser alargada, não pode ser só sobre temas salariais. Nesse sentido, tem que ser reaberta a discussão em relação à reorganização do tempo de trabalho.

Está a falar dos horários dos estabelecimentos comerciais ao fim de semana?

Podem ser perfeitamente discutidos os horários, os bancos de horas, as horas extraordinárias. Se reabre-se, discute-se tudo.

O PRR tem estado em ponto morto. Vamos ver se arranca agora. E o Portugal 2030 nem sequer ligou o motor.

Incluindo política fiscal?

A política fiscal que está neste acordo de rendimentos não é o ponto forte. Estamos mais preocupados com tudo o que tem a ver com a organização do tempo de trabalho, com a organização das empresas, com a proibição de outsourcing. Julgamos que é inconstitucional. O Conselho das Confederações Empresariais pediu um parecer ao professor Pedro Romano Martinez já que para nós foi uma desilusão a posição do Presidente da República...

... ao promulgar a Agenda do Trabalho Digno.

Exactamente. Contactaremos todos os grupos parlamentares. A fiscalização sucessiva de constitucionalidade pode ser pedida por 10% dos deputados, ou seja, 23. Iremos ver se há receptividade ou não para assinar um pedido de fiscalização sucessiva sucessiva.

Com o brilharete nas contas públicas e com a actual receita fiscal, espera um acordo no futuro sobre a redução transversal do IRS?

Somos favoráveis à baixa do IRC, mas temos centrado a nossa prioridade na baixa das tributações autónomas. O ministro da Economia, nesta área, não se tem posto muita resistência, isto é das Finanças.

O Ministério das Finanças é uma força de bloqueio?

O Ministério das Finanças tem de ser um contraponto em relação aos outros ministérios. É o primeiro-ministro que tem de arbitrar isso.

Tem saudades do anterior ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, no sentido em que teria mais peso no Governo do que o actual?

Nós não fulanizamos. Para nós, é a política do Governo. Há ministros que, pela sua postura e maneira de ser, facilitam...

E pela orgânica do Governo. Pedro Siza Vieira era o número dois.

Sim. Sob esse contexto, a Economia perdeu peso político.

Hoje, teve uma reunião da Concertação Social. Como é que correu?

Voltámos a mostrar claramente a nossa preocupação quanto ao ritmo de execução dos fundos europeus. Temos a sensação de que toda a temática de fundos europeus está num ritmo muito, muito aquém do necessário. Diria que o PRR tem estado em ponto morto. Vamos ver se arranca agora. E o Portugal 2030 nem sequer ligou o motor.

Esse retrato é dramático.

É. Da parte de muitos organismos há boa vontade, mas não há capacidade técnica, há falta de quadros qualificados, há concursos que ficam vazios porque estão desfasados da realidade nos custos e nos preços, nomeadamente, na construção. Temos uma sensação de falta de eficácia, uma incapacidade de resolver estes problemas e isso é uma questão grave.

Mas o problema está onde? A culpa é de quem?

Não estou sempre à procura do culpado. O que sucede é que neste momento o Estado não tem quadros qualificados à medida que se vão reformando. Há falta de gabinetes técnicos.

Para a apreciação das candidaturas?

Das candidaturas, para fazer os regulamentos. No PRR, tudo o que tenha a ver com os bairros digitais, houve um concurso há um ano e ainda não começou, nos aceleradores digitais ainda não há regulamentos. Neste momento, há, de facto, uma certa incapacidade. É um problema que o Governo tem de resolver. Há outra questão de fundo, que é uma crítica que temos feito a todos os governos: em Portugal, chama-se taxas de execução a se se gastou ou não o dinheiro e não a uma avaliação qualitativa, se esse dinheiro teve eficácia na economia.

Isso ninguém mede?

As medições têm sido nulas ou fraquíssimas. Gastaram-se, ao longo dos anos, centenas de milhões de euros. Isso teve efeitos positivos numa série de áreas, mas não permitiu a Portugal dar o salto qualitativo.

A percepção da CCP é que a estabilidade política está em causa ou que a maioria absoluta garante que isto chega até 2026?

Os empresários gostam muitos de duas coisas: estabilidade e previsibilidade. A maioria absoluta deu-nos inicialmente uma ideia de que estas duas questões estariam garantidas por uma legislatura. Infelizmente, por razões internas ao Governo, já se verificou que houve bastante turbulência.

A contestação social a que temos assistido em França não é comparada com aquilo que se passa em Portugal. É uma questão de tempo até começar a haver um protesto mais musculado?

Os países têm histórias diferentes, características diferentes. A perturbação que está a haver neste momento em França é por um tema que em Portugal foi resolvido pacificamente: a idade da reforma.

E cá, não é preciso voltar a olhar para a sustentabilidade da Segurança Social?

É. Aliás, a CCP levantou essa área, fez até várias conferências. Estamos convencidos de que têm de se arranjar novas fontes de financiamento. Deve ser analisado em profundidade e fazer um financiamento misto que entra em conta não só com os trabalhadores, mas também com o valor acrescentado líquido. É evidente que o aumento da esperança média de vida obrigará a subir a idade da reforma e a arranjar outras fontes de financiamento. A esperança média de vida hoje está 20 anos além da idade de reforma.