28.3.23

O sonho de uma “vida normal”: ouvir os ciganos da Anta foi senha para a sua revolução

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Projecto Maia Inclui entrou num bairro onde quase tudo faltava para o transformar. E fez da escuta uma arma. O trabalho dos laboratórios cívicos e a vida de uma comunidade que voltou a sonhar

Sair do bairro onde cresceu não estava nos planos dela. Mas quando a oportunidade surgiu, Goreti achou tratar-se de coisa boa: o nascimento do quinto filho estava para breve e os dois quartos da casa já não chegavam para a família numerosa. Trocar o minúsculo pré-fabricado do bairro da Anta por um tecto no bairro social da Bajouca, desenhado por João Álvaro Rocha, seria, de certeza, mudança para melhor. Não pela arquitectura de nome reconhecido, que nada lhe diz, mas pelos quatro quartos do apartamento moderno onde frio e chuva ficavam de fora.

Na travessa sem saída que conduz à Anta, na Maia, Goreti nota a chegada de estranhos e desvia os olhos verde-escuros para o paralelo. Denuncia a timidez, anuncia a falta de jeito com as palavras e apresenta-se: “Sou ex-moradora. Infelizmente.” A saída para o bairro da Bajouca aconteceu há cinco anos, mas ela continua a passar a maior parte do tempo junto da sua comunidade. “Estou arrependida de ter saído. Mas de segunda a sexta estou aqui: é onde me sinto bem.”

Maria Goreti Soares é cigana. E não sabe explicar se isso importa ou não. Tem 32 anos, trabalha nas limpezas, não sabe ler nem escrever. Na escola primária, esbarrava quase todos os dias em olhares desconfiados e palavras duras. “Criticavam-me por ser cigana”, recorda enquanto amamenta o filho de três anos, sentada num banco corrido à porta da casa da mãe, no bairro da Anta. “No 1.º ano desisti. Não era para mim.”

O tamanho da rejeição está por desvendar. As suas consequências também. Os anos ensinaram-lhe o nome daquilo: “Preconceito”, diz. “Ninguém quer nada com os ciganos.” A falta de estudos impede uma explicação mais consistente, desculpa-se, declarando um arrependimento: “Não devia ter deixado a escola.” E se fosse possível, agora, regressar às salas de aulas? “Posso ser sincera? Já não quero aprender a ler e escrever, só quero ter mais trabalho.”

Os sonhos improváveis de Goreti Soares – voltar ao bairro pobre e escolher as limpezas em vez das letras – são pedagogia para explicar o projecto inaugurado há coisa de dois anos naquele complexo habitacional construído na década de 1980. O Maia Inclui, apoiado pelo Norte2020 e pelo Fundo Social Europeu, deu a mão aos 45 moradores da Anta – mas não ousou ensaiar a mudança sem os ouvir, consciente da impossibilidade de transformação a partir de um modelo pronto-a-vestir.

O que quer, afinal, esta comunidade?

A descoberta foi feita por uma equipa vasta. À Espaço Municipal, empresa do município responsável pela gestão dos bairros da cidade, juntou-se a Santa Casa da Misericórdia da Maia e o Laboratório de Planeamento e Políticas Públicas (L3P) da Universidade de Aveiro. O financiamento terminou no fim de 2022. Mas, para já, ninguém arredou pé. A autarquia tem planos para se candidatar a mais fundos e seguir o trabalho: “Não vamos deixar isto cair”, promete Fialho de Almeida, presidente do conselho de administração da Espaço Municipal.

Bairro foi construído nos anos 80, com casas pré-fabricadas 

José Carlos Mota não pôde evitar o embate. Quando entrou pela primeira vez no bairro da Anta, em Setembro de 2022, deparou-se com um cenário “muito diferente” daquele onde estava habituado a trabalhar. As casas não cumpriam requisitos mínimos de habitabilidade. Eram pequenas e frias, estavam sobrelotadas. Os frágeis barracos de madeira não tinham casas de banho. Os moradores, gente sofrida, acumulavam problemas. Havia lixo por toda a parte, graves problemas de saneamento, esgoto a céu aberto. A comunidade vivia ensombrada por um assassinato ocorrido tempos antes naquela geografia. “Entrei num mundo estigmatizado”, recorda o coordenador do L3P, que levou para o Maia Inclui o Labic – Laboratório de Cidadania pela Inclusão.

O tempo criou empatia. Diluiu o choque. Por detrás do rótulo colado àquelas pessoas, descobriu José Carlos Mota, havia “histórias de vida incríveis”. E gente ciente das suas carências: “Sabiam bem do que precisavam. E eram coisas simples: casa digna, trabalho, um modelo de sociabilidade que os respeitasse.”

Jéssica Monteiro traz os lábios pintados e vontade de falar do futuro. Quando crescer quer ser professora. Ou advogada. Para já, o sonho dela é ter um parque infantil dentro do seu bairro: “Com um baloiço e um escorrega como o do Mar Shopping”, determina. Um dia, os “senhores das segundas-feiras” (baptismo dado pelos moradores à equipa do L3P: José Carlos Mota, Gil Moreira, Lívia Mendonça, Thaís Ivo, Sofia Menezes e Catarina Figueiredo) sentaram-se com as crianças e fizeram-lhes uma pergunta à qual não estavam habituadas: o que faz falta no vosso bairro?
“Sabiam bem do que precisavam. E eram coisas simples: casa digna, trabalho, um modelo de sociabilidade que os respeitasse.”José Carlos Mota, coordenador do L3P

Aos dez anos, Jéssica não poderia saber. Mas naquela questão cabia a filosofia do trabalho dos investigadores da Universidade de Aveiro. “Não é convidar as pessoas a ir a um espaço onde um conjunto de pessoas inovadoras e colaborativas trabalha, é levar essa prática a quem dela precisa, envolvendo as pessoas na solução dos seus problemas”, resume José Carlos Mota.

Essa equação virada do avesso é o ponto de partida dos laboratórios cívicos do L3P. Pensados para aprofundar a democracia participativa, criam conhecimento a partir do terreno. E procuram deixar nele “pequenas âncoras”, testando soluções a partir de “acções experimentais, cirúrgicas e de muito baixo custo”.

Esses testes fizeram-se com a pergunta sobre as carências do bairro como base. Se as crianças pediam espaços de brincadeira, os jovens rogavam programas de formação para os ajudar a vingar no mercado de trabalho. E os mais velhos desejavam a retirada dos quilos de lixo acumulados no bairro, o corte dos silvados, bancos à soleira das portas e uma rampa de acesso ao polidesportivo para dar mais autonomia a Maria do Carmo, utilizadora de uma cadeira de rodas.
“Já conhecia coisas más, mas quando cheguei aqui o meu mundo desabou”Tiago Valente, assistente social

O envolvimento das 17 famílias, onde há 13 crianças com menos de 12 anos, foi surpreendente. No dia marcado para a recolha do lixo, acumulado no bairro há mais de um ano, os “senhores das segundas-feiras” encontraram o trabalho completo. Na véspera, os moradores tinham-se juntado para o fazer sozinhos. Foi, talvez, “o primeiro detonador” da mudança.

Tiago Valente conhece as costuras desta história na qual entrou em 2011. “Já conhecia coisas más, mas quando cheguei aqui o meu mundo desabou”, recorda o assistente social que acompanha a comunidade. Desde essa altura – e até há dois anos, quando o projecto Maia Inclui começou –, o trabalho dele era sobretudo de “remendo”. O possível com os poucos fundos existentes.
"Permanecer no território"

Esse “toca e foge” era bilhete para o insucesso. “É preciso permanecer no território”, defende. Garantir que as crianças vão à escola, ajudar com burocracias, dirimir conflitos. A maioria dos moradores não tem a escolaridade mínima. Mas essa, diz o assistente social, nem é a barreira mais importante: “Preconceito, preconceito, preconceito: batem sempre nisso.” A dependência do Rendimento Social de Inserção é uma realidade, mas Tiago Valente abala visões simplistas: “Como podemos pedir-lhes outra coisa se não têm acesso a oportunidades? Quem emprega um cigano?”

Ainda antes de os laboratórios cívicos agitarem o projecto, em Setembro passado, muito havia acontecido. O polidesportivo a poucos metros do bairro fora reabilitado pela Espaço Municipal e transformado numa espécie de extensão das casas. Naquele espaço, os moradores podem agora tomar banho, usar a lavandaria e fazer da sala maior um espaço de convívio. Mas não só. Ali foram promovidos ateliers de costura, aulas de alfabetização, dança para os mais pequenos. E materializou-se o trabalho de Goreti: a ex-moradora assegura as limpezas e manutenção do espaço.

No polidesportivo há espaço para actividades como atelieres de costura, aulas de alfabetização e dança para os mais pequenos

O espaço pode ser usado pela comundidade para higiene pessoal e lavandaria NELSON GARRIDO

Numa comunidade cigana onde ninguém tem um emprego formal, o caso de Goreti tornou-se exemplar. Com a ajuda da autarquia, que fez a ponte com a entidade empregadora, ela deu um salto de autonomia. Agora, há quem jure o desejo de lhe copiar os passos, fintando probabilidades e fazendo sua uma palavra até então inacessível: oportunidade.

Hugo Simões é um deles. Desistiu da escola antes de completar o 6.º ano e lê e escreve com dificuldade. O suficiente, ainda assim, para se desenrascar em pesquisas no YouTube e aprender a arranjar telemóveis e colunas de som. O bê-á-bá capaz de o conduzir ao seu sonho conheceu-o assim: “Gostava de ser tatuador. Fazer um curso e ganhar dinheiro com isso”, conta o morador, cachecol do FC Porto ao pescoço, casaco e calças de padrão militar.

A noite cai, o frio aperta. E Hugo apresenta a sua casa junto a uma arriba: um pequeno barraco de madeira de uma só divisão, onde convivem cama de casal, de solteiro e berço, para a família de quatro. As fraldas do seu bebé, com menos de um ano, estão penduradas em ganchos junto ao tecto, enganando a chuva, incapaz de furar o plástico preto colocado na cobertura, mas hábil para entrar pelo chão.

O cenário descrito é de Novembro passado. E já não existe. As tempestades de Inverno denunciaram a fragilidade da arriba quase colada às estruturas e a autarquia não arriscou um acidente: demoliu os cinco barracos e realojou as famílias em contentores a poucos metros, junto ao polidesportivo.

A situação não é a ideal. Mas o coração de Hugo, de 23 anos, finta a precariedade e sublinha o indizível: “Nasci aqui, fui criado aqui, não quero sair. Só pedia umas condições um bocadinho melhores.” Até 2026, isso deverá acontecer: com dinheiro do PRR, será construído de raiz, naquele mesmo espaço, um novo bairro.

Rosa Monteiro nasceu em Santo Tirso e rendeu-se à Maia por amor. Largou a vida de feirante e assumiu a casa onde “palavras de Deus” estão escritas por toda a parte. O marido é pastor. E um dos quartos é reservado ao culto: “Quem quer ouvir a palavra de Cristo vem aqui”, convida, já a entrar no quarto com meia dúzia de cadeiras, um púlpito, coluna de som e um papel com pombas brancas e a mensagem fundamental: “Jesus mora na minha casa.”

A matriarca, uma das figuras de referência do bairro, lembra-se bem dos anos de abandono. Mas jura não guardar rancor: “Agora estas pessoas vieram para aqui e mudaram tudo. Pedi-lhes um fogareiro e eles fizeram”, conta, referindo-se à churrasqueira comunitária erguida no pátio comum do bairro. Não é só um recurso para cozinhar e aquecer – é símbolo de união e de resistência de uma cultura.

É por ela que Goreti Soares quer regressar. O T4 onde vive é “uma prisão” se comparado com o tamanho da casa grande que é o bairro inteiro. António Santos Silva, o marido, não declara as mesmas saudades do bairro, mas não se opõe ao sentimento de Goreti, já transposto para as filhas: “Uma delas chora porque quer vir para aqui. É onde têm alegria. E o bem das crianças vem primeiro.”

O financiamento do projecto terminou. Mas uma missão não se abandona: “É difícil desistir deles depois de os conhecermos”, resume Tiago Valente. Esta segunda-feira à tarde há festa na Anta, com a inauguração da churrasqueira comunitária e do novo muro do bairro, pintado pela comunidade: azul, vermelho, amarelo. O que antes separava é agora grito contra o esquecimento. Às matriarcas que tomaram as rédeas do projecto desde o início já se juntaram, entretanto, os homens. Cada um com as suas valências. Cada um com os seus sonhos. Resistindo como cultura sem terem de se esconder.

O que quer, afinal, esta comunidade?

“Uma vida normal”, arrisca José Carlos Mota. “Calharam do lado do mundo onde essas oportunidades não existem. A nossa expectativa é que passem a tê-las.” Num evento de encerramento do projecto, no Fórum da Maia, José Carlos Mota ensaiou um gesto que é uma declaração. Quando o questionavam sobre o impacto do Maia Inclui e do seu Laboratório de Cidadania pela Inclusão, ele abandonou o palco e entregou o microfone a três moradoras sentadas na plateia. Os ciganos da Anta foram ouvidos - e isso já mudou a vida deles.