Mostrar mensagens com a etiqueta Populismo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Populismo. Mostrar todas as mensagens

8.9.23

“As elites políticas não ouvem o povo, e o populismo ouve”

Por Cristina Margato (entrevista a Gilles Lipovtsky),  in Expresso

Autor do clássico “A Era do Vazio”, ensaio sobre o individualismo, o filósofo francês fala sobre como o “be yourself” e a procura de autenticidade está a mudar profundamente a sociedade e o sistema político

No início dos anos 80, Gilles Lipovetsky teve uma intuição. A palavra é dele. Escreveu “A Era do Vazio” (Edições 70), livro que era já um ensaio sobre o individualismo contemporâneo, numa época em que ainda não existiam selfies nem redes sociais. Lê-lo passadas quatro décadas não é um desperdício de tempo. Está lá tudo o que veio a existir de uma forma exacerbada neste nosso tempo e que levou ao que o filósofo chama de radicalização do princípio da autenticidade, do be yourself, bem presente até no discurso religioso católico. As raízes desta forma de estar, a que corresponde uma “revolução antropológica”, são antigas e devem ser procuradas no século XVIII, desde que Rousseau, Emerson, Nietzsche e todos os outros que se seguiram vieram dizer “não à razão e sim a mim mesmo, à minha subjetividade e à minha singularidade”. Aí nasce aquilo que Lipovetsky chama de individualismo de singularidade, ou individualismo ‘singularista’. É todo um programa individual de emancipação (em qualquer idade) que visa o bem-estar da pessoa, a sua liberdade, o seu interesse próprio — produzindo ondas de choque que agitam o sistema político. A conversa com Lipovetsky teve lugar na Embaixada francesa, em março de 2023, a propósito do lançamento de “A Sagração da Autenticidade” (Edições 70), o seu último livro.

Como surgiu a ideia, o conceito de autenticidade?

Dois fenómenos conduziram-me a esta ideia. O primeiro resulta da observação. A autenticidade está em todo o lado, da decoração à moda, ao turismo. Procura-se o autêntico e o rústico. Tudo é autêntico: uns óculos, um queijo ou um destino de viagem... O segundo fenómeno passa pelo facto de esse ideal de autenticidade individual estar a mudar-nos de forma profunda, a transformar o modo como vivemos a nossa vida, como vivemos em democracia e como concebemos o futuro. O ideal de autenticidade corresponde ao princípio que diz: “Sê tu mesmo, obedece ao teu coração, aos teus sentimentos, aos teus desejos, e não ao exterior.” Esta ética e este princípio são excecionais na nossa História. Nenhuma civilização, desde o Paleolítico até hoje, seguiu esta ética. Até agora, e em todas as civilizações anteriores, devíamos viver segundo a tradição, obedientes aos mandamentos de Deus, ao modelo de Jesus e ao dos nossos antepassados; ou seja, a algo exterior a nós. Mesmo os filósofos gregos, que inventaram a filosofia e a sabedoria, defendiam a obediência à razão universal, à razão do mundo. O século XVIII veio dizer não à razão e sim “a mim mesmo”, à minha subjetividade e à minha singularidade. Nessa altura, nasce aquilo a que se pode chamar individualismo de singularidade, ou individualismo ‘singularista’. O que corresponde, de certa forma, ao que Rousseau inventa ao dizer que todos somos diferentes e que devemos viver a nossa vida consoante o nosso ser e não através do que nos é imposto, usando a nossa consciência para julgar o bem e o mal. Para Rousseau, o homem é bom, tem um bom coração. Mas a sociedade, enquanto camisa de forças, com as suas normas, hábitos e convenções, é má. É a sociedade que distorce o homem, que o leva a mentir a si próprio, a viver com falsas necessidades de luxo, para corresponder a uma imagem que não está de acordo com o verdadeiro ser. Para Rousseau, o conformismo é o mal absoluto. E é evidente que Rousseau não está só. Ao longo do século XIX, Emerson, John Stuart Mill, Nietzsche vão colocar o indivíduo contra a sociedade e as suas convenções. O que é imoral a partir daí é ir contra a natureza. Vivemos a radicalização do princípio da autenticidade. À exceção dos fundamentalistas islâmicos, todos reclamam o princípio da autenticidade individual.

Assistimos a uma autodeterminação individual, depois da consolidação do princípio do Estado-nação?

Sim. É necessário dizer que a autodeterminação ganhou uma esfera de existência em cada um. Cada um é reconhecido como presidente do governo de si próprio. E o be yourself não nasce do nada, tem uma história, e os filósofos, por vezes, deixam essa história de lado. É um erro. Eles dizem que o be yourself é um princípio absoluto, mas, na verdade, esse princípio absoluto vai mudando ao longo da História, de Rousseau até Sartre. O princípio da autonomia e da autenticidade começou por ser limitado, deixando as mulheres de fora, circunscritas à casa e aos filhos. É importante levar isso em conta, porque, durante dois séculos, o princípio da autonomia individual defendido pelos intelectuais, homens das letras e espíritos progressistas deixou de fora as mulheres, os jovens, os gays, as lésbicas e todos os LGBTQ. Não se reivindicava a autenticidade destes, porque a consideravam uma perversão. Uma mulher que não quisesse ter e criar filhos seria considerada uma desnaturada. Agora, já não há limites. As mulheres conquistaram o poder sobre elas mesmas. Podem aceder a meios tradicionalmente masculinos, às altas esferas da política, casar ou não, ter crianças ou não. É um princípio consensual da nossa cultura. A minha tia, por exemplo, casou com quem os meus avós decidiram, contra a sua vontade. Hoje, no Ocidente, isso seria impensável e insuportável. Seria um ato bárbaro. Os pais deixam que os filhos decidam sobre a sua vida. O princípio do be yourself impôs-se e está a ser cumprido também pelas pessoas LGBTQ. Há uma explosão do princípio da autenticidade...

Não sou pela cultura de cancelamento. Devemos apreciar e valorizar os criadores mesmo quando estes têm ideias diferentes das nossas”

Freud disse que a descoberta de Copérnico, de que o Sol não anda à volta da Terra, abre uma ferida no ser humano. Ele percebe que já não está no centro, e isso remete-o à sua insignificância...

Conheço bem esse texto, é um belo texto. Freud fala no orgulho humano ferido. Durante muito tempo, o homem esteve no centro da Terra. A partir de certa altura é parte do Universo e mais tarde, com Darwin, descende do chimpanzé. A psicanálise e a descoberta do inconsciente dizem ao homem que ele já nem senhor de si é.

Poder-se-á falar num “renascimento” do homem enquanto centro do mundo?

Sim. De facto, com a generalização do princípio da autenticidade individual, singular, todos podem ter orgulho, alcançar a felicidade, mas também experimentar a dificuldade de se construir a si mesmo. Há na ética da autenticidade qualquer coisa de conquistador, cada um deve conquistar-se a si próprio, deve tornar-se no que é, como diria Nietzsche. E este é um princípio válido para todos, mesmo para as crianças. Os pais não querem constranger os filhos. A mim, ninguém me perguntava o que queria comer ou vestir, qual era o meu desejo... Hoje, o desejo de autonomia é legítimo. O princípio da autenticidade não é apenas a tese deste meu livro. É algo que mudou a nossa relação com o mundo e connosco próprios. É um agente produtor.

Uma revolução?

Sim, completamente. É uma revolução antropológica.

A força dos ucranianos nesta guerra pode vir dessa vontade de pertencer a este novo mundo, por oposição ao russo, que ainda pertence ao mundo antigo?

É importante que me coloque essa questão, porque ela permite corrigir uma imagem muito pessimista do hiperindividualismo contemporâneo. Os intelectuais e filósofos que evocam o individualismo tendem a apontar apenas os malefícios. E, de facto, eles existem. Mas nem tudo é negativo. Nem sempre o individualismo destrói o altruísmo e a virtude e faz com que o indivíduo só pense no seu benefício. O que está a acontecer na Ucrânia é muito importante. Os ucranianos têm os mesmos desejos e comportamentos hiperindividualistas, querem viver bem, comer bem, fazer turismo, ser sexualmente livres e ser eles mesmos, como nós. Mas, face à invasão russa, reagem coletivamente e lutam. Têm coragem democrática. Na verdade, as pessoas não são mais egoístas do que já foram no passado. Temos de olhar para o trabalho das associações, organizações não-governamentais que não perseguem o lucro e que querem ajudar os outros e com as quais as pessoas se comprometem — porque querem fazer o bem, ser útil aos outros. Isso dá-lhes uma felicidade que o mercado e o consumo não lhes podem dar.

Já não é o individualismo de “A Era do Vazio”. Quais são os riscos graves do hiperindividualismo...

Queria começar por dizer que, no início dos anos 80, quando escrevi “A Era do Vazio”, tive a intuição de estarmos perante um novo individualismo. A evolução que o mundo tomou confirmou essa intuição, e o narcisismo não pára de se desenvolver. Rousseau inventou a autobiografia, sem, contudo, avançar tantos detalhes quanto o narcisismo digital das selfies avança. Hoje, as pessoas colocam-se num palco como se fossem estrelas e falam e partilham o que fazem e o que acontece na vida delas de modo permanente. Dito isto, o maior perigo que vejo no hiper­individualismo é o da forma como se estabelece a relação das pessoas com a política. Interessa-me e preocupa-me o modo como os cidadãos colocam o bem-estar individual, a vida privada, à frente da vida pública social. Uma grande proporção não vai votar porque é domingo, o tempo está bom e é melhor ir nadar... Há uma despolitização e um desinteresse preocupantes. O mesmo acontece na educação, e é grave. Deu-se nos últimos 20 anos uma verdadeira revolução. Nos anos 50 e 60 era a autoridade dos pais e a obediência dos filhos que estava primeiro. A partir do Maio de 68 dá-se uma inversão — passa-se a escutar as crianças. A criança é o rei. Nem tudo está mal, porque é bom escutar as crianças. Penso que neste momento já estamos muito longe do liberalismo educativo. Os pais agem com medo de perder o amor dos filhos. Não lhes querem dizer não, com receio de que os filhos não os amem. E isso dá muitos maus resultados ao nível psiquiátrico.

O pior efeito é ao nível mental?

Sim, o ideal da autenticidade não pode ser um princípio educativo forte. Educar não é ouvir a criança e fazer tudo o que ela quer, educar é, como disse Freud, contrariar, constranger. As crian­ças têm de aprender a respeitar os outros, a seguir as regras, a escutar, repetir, aprender... E aprender é sair de si próprio. O mérito da cultura está em extrair a criança do que é. Não é agradável repetir exercícios, mas como se aprende a tocar piano se não o fizer? Esses princípios educativos antigos foram deitados fora, e isso não é bom. Temos de defender que é preciso manter algum controlo, alguma disciplina, e ensinar que há regras, porque os adultos sabem coisas que as crianças não sabem.

Há a ideia de que ao procurar-se a autenticidade se vai alcançar a felicidade. No entanto, não é assim...

Tem razão. Hoje, os coachers e as psicoterapias e todas as escolas de desenvolvimento pessoal dão-lhe a promessa de felicidade. A felicidade não aparece na primeira fase da autenticidade. Ralph Waldo Emerson, Rousseau, Heidegger, Sartre não têm uma única palavra para a felicidade. Eles não falam de felicidade, mas de dignidade, de ética, de compromisso. Em Heidegger, por exemplo, é a morte, o trágico e heroico que aparece e que corresponde a uma autenticidade heroica. Deu-se uma viragem, e nós vivemos no tempo da autenticidade hedonista, dos vendedores de felicidade, do mercantilismo, e há muita ilusão. Para a felicidade não existe uma única solução, mas várias. E o que acontece é que as pessoas acreditam que pode existir uma solução.

Antes existia uma estrutura face à qual se desenvolvia a hipocrisia. Na era da autenticidade e da liberdade temos a angústia dos órfãos...

Sim, de facto. É complicado, não só devido à autenticidade. Existem outros fatores para a existência desse sentimento. As pessoas têm medo de perder o trabalho, as mulheres sofrem de assédio, e daí o movimento Me Too, e isso não decorre da autenticidade. Uma pessoa até pode ser autêntica, mas o cônjuge não é, e até se pode ir embora, os filhos são autênticos, mas não têm bons resultados na escola, e etc. Depois há a guerra, a crise climática, o desconhecido... Pode-se estar em casa e de repente um furacão destrói-a. Há uma ansiedade ecológica. O medo e a ansie­dade são constantes. Vivemos numa cultura de medo, de insegurança global. Não se pode comer isto e aquilo. É a gordura, o açúcar... Respiro o sufi­ciente? E a poluição? E as ameaças terroristas? Os islamitas? O meu trabalho vai acabar? E a globalização? A incerteza é constante, também nas relações humanas. O indivíduo constrói a sua identidade num mundo incerto, e essa incerteza gera uma ansiedade geral. Antes podíamos divorciar-nos, mas agora tudo pode acontecer a qualquer momento. Havia regras, mesmo que não as conseguíssemos cumprir. E agora? Antigamente aos 75 anos preparava-se a morte, agora o marido pode chegar a casa e dizer à mulher: “Encontrei uma jovem formidável e vou de férias para a Grécia com ela!” Nota-se uma obsessão estética nas mulheres, ao ponto de fazerem cirurgias estéticas aos 18 anos, como acontece, por exemplo, no Brasil. Acredito que para fazer face a isto é fundamental apostar na educação. Se me perguntar se a educação dá felicidade, direi que não dá. Mas dá possibilidades de construirmos uma vida, de nos reciclarmos e de nos adaptarmos a um mundo que está em constante mudança. E com uma educação mais cultural, mesmo que a educação não dê felicidade, dará alguns momentos de felicidade, que não são momentos de consumo. Caso contrário, a vida não é mais do que produzir e consumir. O consumo tomou demasiado espaço na sociedade e não dá felicidade. Não é a mesma coisa quando as pessoas se juntam para cantar em coro, ou tocam piano com os amigos, ou ouvem música. Essa é uma felicidade que se aprende na escola, em crian­ça, e que será formidável ao longo da nossa vida. Devíamos ter uma educação mais global que permitisse aos seres humanos equilibrar os excessos do produtivismo e do consumismo. Há anos que não sou um crítico radical do consumismo, porque o consumismo também traz coisas importantes. Os intelectuais denunciam o consumismo, mas consomem como os outros, há muita hipocrisia nesse tipo de pensamento. Tenho amigos que são contra o consumismo e depois têm uma segunda casa, vão de férias para a Venezuela, visitam os Estados Unidos, conduzem um Audi. É fácil dizer que se é contra o consumismo. Acredito que o consumo não é um ideal que se deva colocar na cabeça das crianças. Devemos retomar o que os filósofos gregos nos ensinaram, a sabedoria deles, e delimitar os limites. Devemos desenvolver uma cultura de autolimites. Para muitos, se não se puder ir de férias ou jantar fora, parece que a vida desaparece. Compreendo que se possa pensar assim, mas é excessivo. Penso que devemos trabalhar para reabilitar os limites e não acredito na moral. Acredito na paixão, no desejo, por isso devemos procurar que as nossas paixões e desejos sejam outros. Se tiver outras coisas na vida, talvez não fique tão triste por não poder ir de férias para a Grécia. Sou contra a moralização. Penso que, durante a crise de covid, as pessoas que tinham uma riqueza cultural aceitaram melhor os limites. Não devemos ser escravos de qualquer coisa que nos é exterior.

Disse que tem de se aceitar os homens como são...

Sim, penso que tem de se aceitar o homem como ele é e não se sonhar com uma Humanidade sábia. E isto não significa que devemos aceitar tudo, significa que não devemos sonhar com uma Humanidade sábia em que bastaria dizer que algo não é bom e que é preciso mudar para as pessoas mudarem. Isso não se irá passar. A crise climática é um bom exemplo disso. Greta Thunberg diz que é horrível andar de avião, que não devemos comer carne ou aquecer a casa, o que está correto do ponto de vista dos princípios. Mas é uma ilusão pensar que o desejo de consumo vai mudar. Cada um de nós aspira a uma vida melhor, e isso é próprio do homem moderno. As pessoas até podem fazer esforços, mas não vão fazer a mudança necessária. Essa é uma falsa imagem do ser humano. Não podemos pedir a total transformação do homem. Fazê-lo é ter uma imagem falsa do que é o homem. Veja o que aconteceu depois da covid: os aeroportos estão cheios. O homem moderno adora viajar. Veja os chineses. Acredita que não vão querer apanhar os aviões? É preciso desenvolver a inteligência, mobilizar politicamente, mas quem irá resolver estas questões é a ciên­cia, não é a “autenticidade”. É preciso desenvolver as energias adequadas. Quem vai resolver esta questão é a ciência, a técnica, os financiamentos. Os Estados devem assumir a responsabilidade com planos de financiamento para ajudar o desenvolvimento sustentável de energia limpa. Temos de regulamentar, criar impostos. Pensar que o mundo vai mudar porque o homem vai mudar é um mito. Não acredito nisso. Mas acredito que a aventura tecnocientífica do homem vai continuar e que é a única solução, embora tenhamos de perceber quais são as ameaças que isso nos coloca. Sem desenvolvimento, sem inovação da ciência e da técnica, sem investimento na pesquisa não haverá solução. Tem de haver também compromisso e regras.

O que pensa de Elon Musk?

Não gosto de julgar as pessoas. É um formidável homem de negócios, mas não é só um visionário, quando tomou o controlo do Twitter fê-lo como ideia política, e depois tem toda a loucura californiana. Queremos ser imortais? Eu não sou contra a tecnologia, mas o ‘transumanismo’, a ideia de vida que nos querem propor, é um pesadelo. A juventude eterna a que ele quer chegar é uma coisa terrível. Toda uma vida obcecada pelo controlo de tudo o que se come e se faz. Penso que a sabedoria está em sabermos que podemos progredir, sem dúvida, continuar atraentes, como acontece com as mulheres que têm hoje 50 ou 60 anos, mas em nome do futuro não vamos sacrificar a felicidade do presente.

Annie Ernaux, ganhando o Nobel, transforma-se num bom exemplo desta tendência para a autenticidade?

Penso que todos os grandes escritores, e não apenas Annie Ernaux, são autênticos. Porque todos os grandes escritores são singulares. Se copiam, já não são grandes escritores. A invenção de um estilo é uma forma de autenticidade, porque durante séculos as formas de cultura não foram singulares. Não havia singularidade, seguiam-se os rituais, respeitava-se a tradição. No mundo moderno, um criador tem de ter essa singularidade, caso contrário é um artista comercial.

Como Ernaux faz biografia pura, não está mais próxima da autenticidade?

Desde “Confissões”, de Rousseau, que existe biografia, e essa é uma forma de autenticidade, ainda que nem tudo seja autêntico. Desse ponto de vista, parece-me que Ernaux é autêntica. Mas ela também está próxima de Mélenchon, que é um populista, e isso faz com que ela me pareça conformista, embora isso não diminua o seu mérito enquanto escritora. É como Houellebecq. Ele exagera muito, mas é um escritor formidável, apesar de não partilhar a visão dele. Não sou woke, não sou pela cultura de cancelamento. É muito perigoso o que se está a passar com o movimento woke. Penso que devemos apreciar e valorizar os criadores mesmo quando estes têm ideias diferentes das nossas. O que o movimento woke quer é eliminar Houellebecq.

Vamos ser capazes de fazer face aos populismos e à extrema-direita?

Não sei... Na política, as previsões, em particular dos intelectuais, são desastrosas. A inteligência política dos intelectuais é bem menor do que a de muitas pessoas. Serei muito prudente. Na vida moderna é extremamente perigoso fazer prognósticos ou diagnósticos. Vou usar um exemplo simples. Há 20 ou 30 anos seria impensável que Le Pen ia chegar ao poder e agora já não é. A vida política no mundo moderno está sujeita a mudanças bruscas. Há um risco, de facto. Não é só para nos assustar, é real. Mesmo assim, na Itália isso mudou. Na França parece improvável, mas é algo em que já se pode pensar. Os governantes atuais têm de ouvir a sociedade civil, caso contrário vão alimentar esses movimentos populistas.

Não está a acontecer na França, com os protestos contra o aumento da idade de reforma...

Não. Mesmo que as medidas do Governo possam ser certas, chegam tarde. Os riscos políticos são grandes porque os governos não ouviram a sociedade civil e os populistas ouvem. As elites políticas atuais não ouvem o povo, e o populismo ouve o povo. Isso reforça as possibilidades de sucesso do populismo. É de facto um grande problema. A medida implica trabalhar mais porque se tem uma maior esperança de vida, mas politicamente é perigosa.

E os discursos identitários são perigosos no contexto do populismo?

Não sou favorável aos discursos identitários, porque fecham os indivíduos no coletivo, e são particularmente perigosos por exemplo para as jovens de meios muçulmanos. Há uma primazia do coletivo sobre o indivíduo. Devemos defender a autenticidade individual, o princípio da subjetividade, a liberdade individual. Os movimentos identitários constituem uma ameaça contra as mulheres. Elas são as primeiras vítimas. Há uns anos, as mulheres não usavam véu como hoje, agora têm receio do julgamento da coletividade. A grandeza da modernidade é a invenção da liberdade e da autenticidade individual. Depois podemos ter afinidades eletivas. A república deve defender os interesses de todos.

8.5.23

“O nível de estagnação em Portugal tem-se concentrado em Lisboa”

Victor Ferreira, in Público online

Andrés Rodríguez-Pose, líder da comissão que prepara o futuro dos fundos de coesão, vê o país preso na “armadilha do desenvolvimento” e nas suas opções de ter posto os ovos todos no mesmo cesto.

Andrés Rodríguez-Pose é um geógrafo com diplomas também em Direito, em Ciência Social e Política, mas toda a gente pensa que ele é um economista. “Sou um cientista social e um geógrafo económico”, resume, a partir de Madrid, numa entrevista que se fez por vídeo, nas vésperas de uma passagem por Lisboa, para falar de convergência regional e políticas de coesão. Professor na London School of Economics, onde dá aulas de Geografia Económica, é uma referência mundial na sua área e tem quase duas dezenas de livros publicados enquanto autor ou co-autor. Doutorou-se em Madrid e em Florença, e chefia a comissão encarregada de repensar precisamente a política de coesão pós-2027.

Teorias dominantes nos últimos 30 anos recomendam que se invista nas grandes cidades e nas mais densas. Mas tal como sucedeu noutros casos europeus, essa aposta em Portugal não deu devidos frutos porque Lisboa e a sua envolvente, enquanto maior aglomeração, “não tem funcionado como motor”. Mesmo que funcionasse, não era garantido que isso ajudasse o resto do país porque o spillover (que em teoria difunde os resultados por outras regiões) é “uma ilusão”. Apesar das provas empíricas, continua-se a concentrar o investimento em grandes cidades. O que conduz a Europa a uma crescente polarização, com mais “lugares que não importam” a tornarem-se regiões que são terreno fértil para o populismo.

O que distingue as regiões bem-sucedidas das que falham?
Não há uma receita. Regiões com sucesso no passado podem falhar no futuro e depois voltarem a ter sucesso. A questão importante é outra: o que se faz para que uma região seja bem-sucedida na maior parte do tempo? Ter sucesso não significa necessariamente crescer muito. É antes ter um crescimento sustentável, que permita resistir a choques e, além disso, que não prejudique o bem-estar das gerações futuras.

Se não há uma varinha mágica…
É uma combinação de inúmeras coisas. As teorias tradicionais dizem-nos que é fundamental ter a infra-estrutura e acessibilidade certas, infra-estrutura física e conectividade. Chega? Não. É claramente insuficiente. Além disso, precisamos muitas vezes de bom capital humano e capacidade de inovação, por um lado, o tipo certo de formação, tanto básico, prático e de investigação, mas também empresas que se adaptam e inovem. E precisamos do tipo certo de instituições, de normas e regras que funcionem e que permitam que a economia funcione.

Como é que esses quatro factores se combinam?
Os territórios mais bem-sucedidos são aqueles que combinam a quantidade certa de cada um desses factores. Quando há uma infra-estrutura muito forte, mas todos os restantes factores são fracos, a região não cresce. Se só houver capital humano forte, ele vai-se embora. Importa obter um equilíbrio dentro do território porque todo o investimento depende disso, do ecossistema certo.

Vou citar um relatório de 2018: “A coesão interna de Portugal tem sido divergente e os estrangulamentos estruturais dificultaram a resposta em situações de crise.” Diz-se que Portugal caiu na armadilha do rendimento médio — o que fizeram outras regiões e países para sair dela?
É preciso ter cuidado. O tema é a armadilha do desenvolvimento, que não é necessariamente a armadilha do rendimento médio. Como definimos a primeira: é quando uma região é incapaz de manter o seu dinamismo económico passado, em termos de PIB per capita, produtividade e emprego, e é incapaz de acompanhar o ritmo dos seus pares tanto no país como, no caso europeu, com o resto da União Europeia.

Tem havido, em muitos lugares, uma tendência para tentar reinventar a roda, tentar ser apenas um novo Silicon Valley. Na maioria das vezes, isso não funciona. Andrés Rodríguez-Pose

Portugal tem estado relativamente estagnado nas últimas duas décadas, tal como a maioria das economias do Sul. O que é interessante é ver que, especialmente desde a crise, o nível de estagnação em Portugal tem-se concentrado fundamentalmente em Lisboa e na sua envolvente, que deveria ser considerada o principal motor do país. A realidade mostra que essa região tem estado mais presa nessa armadilha do que outras zonas do país.

Como é que outros resolveram o problema?
Isso é o que estamos a estudar de momento. De novo, é uma combinação de muitos factores. Por um lado, é preciso ter as condições estruturais certas. Foi o que referi antes. Ter as instituições certas, o capital humano certo, a infra-estrutura certa e a capacidade para inovar em empresas que sejam competitivas. Parece que Portugal, como por exemplo Espanha no passado, colocou toda a ênfase nas infra-estruturas, usando os fundos estruturais, enquanto outros pilares foram um pouco negligenciados.

Isso foi depois corrigido, mas as soluções não dão resultado da noite para o dia. A segunda parte da resposta é mais sobre os sectores. Quais são os que nos tornam competitivos? Tem havido, em muitos lugares, uma tendência para tentar reinventar a roda, tentar ser apenas um novo Silicon Valley. Na maioria das vezes, isso não funciona. É preciso construir uma nova realidade a partir da base que existe. Houve áreas em que Portugal se saiu bem, outras em que nem por isso. Mas é preciso garantir que se investe nos sectores existentes, não apenas para ficar no mesmo nível, mas para aumentar a complexidade e atingir um novo patamar tecnológico, que leve a uma reinvenção. Começa-se com o que se tem, tendo em vista tornarmo-nos em algo diferente, e isso é, mais ou menos, o que as regiões mais bem-sucedidas da Europa fizeram. Usaram uma combinação de bons factores estruturais com políticas sólidas, investiram sabiamente para reinventar a partir do que havia para gerar ecossistemas sólidos de inovação e crescimento.

Lisboa pode ser pequena, mas isso não é problema para o crescimento em Munique. Lisboa é do tamanho de Munique, talvez até um pouco maior. Lisboa é do tamanho de Zurique, e estas são cidades mais dinâmicas. Lisboa é do tamanho de Copenhaga que é muito mais dinâmica e resiliente. Andrés Rodríguez-Pose
Partilhar citação
Partilhar no Facebook
Partilhar no Twitter

Diz-se que Portugal tem empresas que são “campeões desconhecidos” em sectores tradicionais e outros. Mas ao mesmo tempo há este discurso sobre reinventar Portugal como o Silicon Valley europeu ou a Florida europeia.
Vamos ser cautelosos. Certamente há campeões ocultos em Portugal, mas Portugal não é um líder. A Alemanha sim, é. Ou a Dinamarca. É lá que encontramos os verdadeiros campeões ocultos, que são na definição tradicional de Hermann Simon de empresas líderes nas suas áreas, não necessariamente as maiores, mas de pequena ou média dimensão. Temos visto Portugal a investir, em anos recentes, na investigação. E o país saiu do nada, em termos de publicações, para um portefólio decente de investigadores a fazerem muito bom trabalho. Para se ter uma ideia, Portugal veio do percentil 50 em termos mundiais, no que diz respeito a publicações, para o primeiro decil do mundo, em proporção do seu PIB. Mas um dos principais problemas destes investigadores é que, apesar disso, não conseguiram encontrar interlocutores na economia local.

Portanto, temos de ser cautelosos. Nenhum país do Sul da Europa pode dizer que está na direcção certa, com campeões ocultos. Na verdade, temos economias frágeis e é por isso que estamos nesta situação. Tem, no entanto, razão na sua pergunta. O que tem sido o discurso público? Que vamos mudar toda a economia. Isso é dito por causa de ciclos políticos de curto prazo, muitas vezes impulsionados pela opinião pública de curto prazo. Diz-se que o que temos é chato e queremos tornar-nos uma das economias líderes. Isso não acontece da noite para o dia. Quer dizer, são poucos os que conseguiram. A Coreia do Sul conseguiu. No caso da Europa, a Irlanda fê-lo, mas começou a estabelecer as bases para o que é agora na década de 1950, com políticas que, se perguntassem à maioria dos irlandeses na década de 1980, eles diriam que falharam porque investiram de mais em capital humano, em infra-estrutura e em atrair certos sectores.

No entanto, quando tudo isso se juntou, num determinado momento, todos esses factores tornaram a economia irlandesa não só a mais dinâmica da Europa, mas também uma das mais resilientes, aquela que recuperou melhor, com a Polónia, da crise financeira de 2008.

Como está o mapa da coesão na Europa? Há convergência dos atrasados?
É um mapa bastante complexo neste momento. Temos países a convergir e isso inclui a maioria dos países da Europa central e oriental. Do Báltico à Polónia, que tem sido a estrela na região, para lugares como Roménia e Eslováquia, que se saíram relativamente bem e convergiram significativamente, reduzindo a diferença para a média europeia.

Mas também temos muitas partes da Europa que estão estagnadas e isso inclui a maioria dos países do Sul, de Portugal a Espanha, que, aliás, não se saíram particularmente mal nessa perspectiva, e países como a Itália e Grécia, que tiveram o pior desempenho, especialmente a Grécia, em termos gerais. O que notamos em muitas partes da Europa foi a polarização interna, a concentração da actividade económica nas maiores cidades, muitas vezes com muito menos dinamismo noutras áreas do país. Não tem sido o caso de Portugal, sobretudo desde a crise. Foi-o na década de 1990 e na maior parte dos anos 2000 e da década de 2010. Mas não tem sido assim depois da crise e ficou na armadilha do desenvolvimento.

No geral, ficar preso na armadilha de desenvolvimento é provavelmente um indicador muito melhor sobre a ascensão do populismo do que outros factores destacados no passado, como baixos níveis de educação Andrés Rodríguez-Pose
Partilhar citação
Partilhar no Facebook
Partilhar no Twitter

Se olharmos para toda a Europa nas últimas duas décadas, a maior parte do crescimento concentrou-se na Irlanda, no Leste. Há um crescimento moderado, muito moderado em lugares como a Península Ibérica ou os países nórdicos ou mesmo na Alemanha e nenhum crescimento na maior parte da Grécia, na maior parte da Itália e em muitas partes do Norte, Nordeste, Leste e Sudeste da França. Não são necessariamente as regiões mais pobres da Europa. Basta ver que, nos últimos 20 anos, não houve crescimento algum na maior parte de Itália.

Porquê este retrato? A política seguida não corrige a desigualdade e a polarização da riqueza em Portugal e na Europa?
Depende de que políticas estamos a falar. O impacto da política de coesão tem melhorado ao longo do tempo, de acordo com a maioria das análises. Regiões que recebem mais financiamento tendem a sair-se melhor se as políticas forem adequadas. A política aprendeu com os erros e melhorou a forma como intervém. No entanto, a política de coesão é muito limitada. Representa um terço do orçamento da União Europeia (UE) e este é apenas 1% do PIB da UE. A maior parte do desenvolvimento vem de políticas que são fundamentalmente nacionais, que englobam as políticas de educação, de infra-estrutura, de inovação, de promoção do empreendedorismo. Esses são os factores-chave. E, claro, as políticas das instituições. Assim, a pergunta é quais são as barreiras que impedem muitas regiões de atingirem o seu potencial? Bem, depende da combinação de políticas. Quando as instituições são relativamente fracas, como por exemplo no Sul de Itália, Grécia, Bulgária ou Croácia, isso é uma barreira muito importante. Outro factor são os níveis de formação e educação e competências.

A qualidade institucional em Portugal não é assim tão má, fica um pouco abaixo da média em geral, dependendo das regiões, mas está mais ou menos ao mesmo nível do que encontramos em Espanha. Mas a situação em Portugal e Espanha é muito semelhante, tornaram-se líderes mundiais em infra-estruturas de transporte, fundamentalmente por causa do apoio da política de coesão, mas durante muito tempo continuaram a ser dois países com o maior nível de abandono escolar no ensino secundário, em toda a Europa. Assim é muito difícil, quando se perde um terço do talento que nem acaba o secundário. É um problema sério, porque tivemos estratégias de desenvolvimento desequilibradas, com ênfase num pilar ou dois. O desenvolvimento é como uma mesa. Se só tens uma perna ou duas, é provável que não se aguente.

Quais são as pernas que fraquejam?
Não estudei o caso de Portugal. É preciso um tampo sólido e quatro pernas fortes. E essas pernas podem ser construídas com o que existe. Podemos apostar no talento e nas empresas ou nos empreendedores, e na infra-estrutura, seja de transporte, de comunicação, e na infra-estrutura básica, que não é mais um problema na maior parte da Europa.

Também se pode apostar noutra perna, que é o que as regiões não têm. Nuns casos será investimentos, noutros será talentos. São estas quatro pernas que importam, é preciso fazer um diagnóstico e perceber quais são as mais fracas e fortalecê-las. Se temos de melhorar as quatro, vamos crescer devagar, mas temos de garantir que todas são reforçadas ao mesmo tempo. O problema é que isso é um processo de desenvolvimento relativamente lento e parte da sociedade, dos decisores, acabarão por exigir crescimento mais rápido. O que se faz? Aposta-se então numa ou duas pernas da mesa. Que normalmente são as do investimento estrangeiro e construção de infra-estruturas. Se essas eram as pernas mais fracas no início, tudo bem. Caso contrário, acaba-se por concentrar o crescimento em certas partes do país ou acaba-se numa situação em que a economia se torna dependente de subsídios constantes, para atrair investimento directo estrangeiro ou talento.

Porque é que o efeito dos fundos de coesão se desvanece depois de um surto inicial de convergência? Será porque os governos substituem investimento nacional regular por esses fundos?
Os efeitos não diminuem necessariamente. Isso acontece quando a política é inadequada. Se construirmos muita infra-estrutura, o crescimento vem da construção. Claro que se constrói infra-estrutura não para que se cresça enquanto se constrói, mas porque se espera que ela facilite o acesso de produtos e empresas ao mercado. Mas, para produzir esses produtos, é preciso o talento certo, as empresas certas e inovadoras. Se não cuidarmos disso e tudo isso for fraco, então vai haver essa desaceleração de que fala na sua pergunta.

A ideia que tem sido vendida nas últimas três décadas, tal como em Portugal, é a de que descentralizar resolve constrangimentos e permite melhores políticas. Na realidade, não é assim. Andrés Rodríguez-Pose
Partilhar citação
Partilhar no Facebook
Partilhar no Twitter

Se, além disso, adicionarmos problemas institucionais significativos, como temos em certas partes da Europa, então, as instituições tornam-se uma das principais barreiras. Se os apoios à inovação e à indústria se decidem com base no clientelismo, quando os mesmos grupos obtêm mais financiamento o tempo todo e não se aposta no mérito, cresce-se menos e isso é um problema institucional que parte da Europa ainda tem. São problemas de eficiência do governo, de transparência e prestação de contas. No caso de Portugal ou Espanha, não são problemas tão graves. A corrupção é infelizmente muito prevalente noutras partes da Europa. Principalmente para o leste e sudeste.

Fala-se da descentralização como remédio. Os dados empíricos apoiam essa ideia?
Essa é uma das minhas principais áreas de pesquisa. A descentralização, como ferramenta, é neutra. Assume-se que, ao transferir poderes e recursos para outros níveis de governo, se vai ter melhores serviços. Principalmente quando há uma heterogeneidade. Em Trás-os-Montes podem dizer que querem mais saúde, no Alentejo podem querer mais educação. Mas a primeira questão é se as pessoas em diferentes partes querem mesmo coisas diferentes? Todos nós queremos uma boa educação, saúde, segurança. Ou uma boa infra-estrutura. Queremos tudo.

A ideia que tem sido vendida nas últimas três décadas, tal como em Portugal, é a de que descentralizar resolve constrangimentos e permite melhores políticas. Na realidade, não é assim. Na maioria dos casos, a descentralização foi um desastre absoluto em termos económicos, sobretudo em países em desenvolvimento. Em países mais desenvolvidos como Portugal, as provas dizem-nos que o impacto foi neutro ou negativo.

Para evitar problemas, os governos centrais transferem poder, mas não transferem os recursos correspondentes. E mesmo quando transfere recursos, muitas vezes são transferências condicionais, o que significa que não há verdadeira autonomia. Andrés Rodríguez-Pose
Partilhar citação
Partilhar no Facebook
Partilhar no Twitter

Porquê? Porque essa descentralização é má?
Não. Pode ser uma ferramenta muito boa, mas o principal problema é a forma como ela é conduzida. A maioria dos países descentraliza em períodos de crise económica ou crise política. E é dirigida de cima para baixo. Para evitar problemas, os governos centrais transferem poder, mas não transferem os recursos correspondentes. E mesmo quando transfere recursos, muitas vezes são transferências condicionais, o que significa que não há verdadeira autonomia. Ficamos então com camadas subnacionais de governo mal preparadas, especialmente em países menos desenvolvidos. País Basco ou Catalunha queriam a descentralização, mas o que é habitual é que conseguem financiamento ou conseguem poderes sem que os tenham exigido, quando não estão preparados. E têm de lidar com o mesmo tipo de questões que o governo nacional tinha de resolver, mas com menos recursos.

Mas a descentralização pode funcionar?
Sim, pode e muito bem, se for bem feita, mas vou ter de estudar como está proposta em Portugal.

Falou de Trás-os-Montes e do Alentejo, poderíamos falar de Soria (Espanha), do movimento España Vacíada, todos estes sítios sobre os quais escreve e a que chama...
... os lugares que não importam.

Estamos a reduzir o número de lugares que não importam?
Não, não.

O que deveríamos fazer e quais são os riscos se não o fizermos?
Nas últimas décadas, a nova geografia económica e a economia urbana colocaram a ênfase em dois factores fundamentais do desenvolvimento económico — que são diferentes dos factores que mencionei. Por um lado, temos a aglomeração, isto é, o tamanho importa. Quando temos grandes cidades, elas atraem talentos, têm a massa crítica. Por outro lado, a ideia da economia urbana era a densidade.

Temos muitas pessoas com talento em Londres, Paris, Nova Iorque ou Xangai. Isso cria a fertilização cruzada e conduz a novas ideias e à inovação. Portanto, esses lugares tornam-se motores da economia. Tradicionalmente, as políticas de desenvolvimento regional colocam o dinheiro nos lugares mais remotos e menos desenvolvidos. Mas com base naquelas teorias dominantes dizem: “Se Portugal vai ter futuro, não pode apostar em todo o lado, os recursos são limitados, por isso tem de apostar no seu melhor cavalo, que é Lisboa, e talvez Porto, mas sobretudo Lisboa.”

As grandes cidades têm um "efeito de sucção" que, no caso da Europa, podem ser sentidos a 1000 quilómetros de distância. Isso significa que o desenvolvimento de Portugal pode ser sugado por Madrid. O de Madrid pode ser sugado por Paris Andrés Rodríguez-Pose
Partilhar citação
Partilhar no Facebook
Partilhar no Twitter

Esta é a política que nos têm tentado vender. E muitas das que foram concretizadas, incluindo as nacionais que, em teoria, são espacialmente cegas, acabam por ser políticas direccionadas. Para onde vai o dinheiro para inovação? Para os melhores centros de inovação, que estão principalmente nas capitais. E assim acabamos nessa situação, sobre a qual falava no início, de uma polarização maior. Em França, o crescimento está concentrado em Paris e o resto do país perdeu o comboio...

Apostou-se em efeitos colaterais, o chamado spillover effect...
Esperamos que, se Paris ou Londres crescerem, o resto do país vai crescer, porque isso vai aumentar o “bolo” e esse “bolo” vai ser distribuído. O problema é que isso é uma ilusão. As grandes cidades podem crescer ou não. Muitas cidades grandes têm-se saído bem. Mas nem sempre é o caso. Londres tem estado muito bem em relação ao resto do Reino Unido desde 1995, porque houve mercado único a partir de 1993. Passou a haver um grande fluxo de talentos e isso muda tudo.

Mas, entre 1937 e 1995, Londres esteve pior do que o resto do país. Portanto, não importa o tamanho ou a densidade. Caso contrário, as cidades latino-americanas seriam as mais dinâmicas do mundo. O que importa é o que se coloca dentro da cidade. Quais são as competências? Quais são as empresas? Qual é a acessibilidade? Quais são as instituições? Lagos [na Nigéria] cresce, mas a cidade é um desastre absoluto e é um desastre para o resto do país.

É isto que importa destacar. A política tem favorecido especialmente as políticas não territoriais, a concentração da actividade económica, com a hipótese de que haverá efeitos que se difundirão. Mas quando se analisa a realidade, o que vemos é que as grandes cidades têm um “efeito de sucção” que, no caso da Europa, pode se sentido a 1000 quilómetros de distância. Isso significa que o desenvolvimento de Portugal pode ser sugado por Madrid. O de Madrid pode ser sugado por Paris. Já o efeito de difusão não chega aos 200 quilómetros. Nos Estados Unidos, não ultrapassa as 50 milhas [80 quilómetros].

Temos ainda mais concentração a minar o crescimento económico e isso tem uma consequência política. Não se explora o potencial dessas áreas. Lisboa não tem estado especialmente bem e por isso é preciso garantir que todos os outros motores funcionem também. Mas os outros motores não estão a funcionar. E é por isso que o país não tem sido tão dinâmico como poderia ter sido.

Também é um problema social, como estamos a ver no Reino Unido, por exemplo. O crescimento acumulou-se em Londres e na região sudeste. O resto do país tem estado muito pior. Isso gerou descontentamento, que levou à votação do “Brexit” e o “Brexit” significa agora que o país tem o pior desempenho entre as maiores economias do mundo. Os lugares que já antes não importavam estão a piorar ainda mais. Vemos o mesmo em França.

Temos o exemplo oposto na Alemanha. Há diferenças entre a parte ocidental e oriental, mas temos a actividade económica mais difundida, mais espalhada pelo território. Munique tem-se saído bem, tal como Estugarda. Já Frankfurt, não tanto, o Ruhr, que é a maior aglomeração, também não, mas há muitas cidades médias que se saíram bem: Mannheim, Ingolstadt, Augsburg, Freiburg, Mainz [Mogúncia]. Isto mostra muito dinamismo em cidades pequenas e médias. Actividade económica mais difundida, mais crescimento e muito menos contestação.

A maior inovação e a maior história de sucesso é a vacina da BioNTech. Está em Mainz, foi criada por investigadores da Universidade de Mainz, que é uma boa universidade, mas não é de forma alguma a melhor da Alemanha. E foram eles que produziram em tempo recorde a maior e mais necessária inovação que tivemos em períodos de crise. Como não sabemos onde a inovação vai acontecer, talvez precisemos de apostar em mais do que um cavalo. Andrés Rodríguez-Pose
Partilhar citação
Partilhar no Facebook
Partilhar no Twitter

É nos lugares que não importam que o populismo se torna fértil?
Há uma ligação muito muito forte. Lugares que estagnaram, que não conseguiram crescer como no passado ou acompanhar o ritmo do país, em termos de PIB per capita, produtividade e emprego, são os que recorrem aos partidos que se apresentam como anti-sistema, mais eurocépticos, que são contra a imigração (no caso dos partidos de extrema-direita) e que são, numa palavra, “populistas”. E isso é um risco sério.

Portugal preenche parte dessa descrição, estagnação do PIB per capita e da produtividade. A Espanha também, pelo lado do desemprego, e o Reino Unido, como acabou de descrever. Mas vimos a Finlândia a mudar de Governo. É outro exemplo?
A Finlândia tinha o Partido dos Verdadeiros Finlandeses, agora chamado Partido dos Finlandeses, que é o partido populista de direita. Foi o segundo partido mais votado e isso por causa de áreas em declínio industrial em torno de Helsínquia e no Oeste do país. Não são necessariamente as mais rurais e as mais remotas. São as áreas de maior declínio, no cinturão industrial circundante da capital, e especialmente nas áreas industrializadas mais tradicionais do Sudoeste. No geral, ficar preso na armadilha de desenvolvimento é provavelmente um indicador muito melhor sobre a ascensão do populismo do que outros factores destacados no passado, como baixos níveis de educação. Estas pessoas não têm necessariamente pouca educação formal, nem são estúpidas ou velhas. Com muita frequência, são habitantes de regiões presas nessa armadilha, de lugares que cada vez menos importam. São regiões que se estão a afundar e não se querem afundar sozinhas.

Dizia que Lisboa não está a funcionar como motor. Porquê?
Lisboa tem estado aquém e não tem servido de motor, sobretudo desde a crise financeira de 2008. Portugal não se saiu particularmente bem. Recuperou um pouco nos últimos anos, mas passou por uma crise muito forte e já não estava bem antes. Se eu fosse apenas um geógrafo económico puro ou economista urbano, talvez dissesse que uma das razões é que Lisboa não tem o tamanho certo. É muito pequena e Portugal é um país muito pequeno para realmente competir num mundo mais integrado e globalizado. Uma área metropolitana com dois milhões de pessoas é demasiado pequena para competir com uma área metropolitana com a de Madrid, que tem 6,5 milhões de pessoas. E até Madrid é pequena num mundo liderado por cidades que cada vez mais se aproximam do dobro ou do triplo do tamanho de Madrid. Isso significa que são cidades seis ou 12 vezes maiores que a aglomeração de Lisboa. Essa seria então uma explicação.

Em segundo lugar, e que considero a mais importante, é que falta a Lisboa e a muitas partes de Portugal os dotes certos para criar um ecossistema mais dinâmico. Lisboa pode ser pequena, mas isso não é problema para o crescimento em Munique. Lisboa é do tamanho de Munique, talvez até um pouco maior. Lisboa é do tamanho de Zurique e estas são cidades mais dinâmicas. Lisboa é do tamanho de Copenhaga, que é muito mais dinâmica e resiliente.

A pergunta é o que está Lisboa, e Portugal, a fazer para criar as bases adequadas, mas também para promover os sectores certos, para garantir que sejam competitivos e para garantir que não fiquem estagnados mas continuem a evoluir?

O terceiro factor é que não se pode pôr os ovos todos no mesmo cesto. Lisboa é a maior aglomeração, mas são dois milhões num país de dez milhões. Há mais a viver noutras regiões e são talentos significativos. É preciso apostar em Lisboa, mas também no Porto e em Braga e no Algarve, em todo o interior, na fronteira com Espanha.

É preciso perceber e acreditar que existe potencial em muitas partes de Portugal. Espanha não se resume a Madrid, Catalunha e País Basco. Qual é a empresa mais dinâmica em Espanha? A Inditex, que apareceu num subúrbio de uma cidade de tamanho médio como Corunha, que não tem sido particularmente dinâmica. A maior empresa sueca, embora agora tenha sede na Holanda, é a Ikea. Vem de um lugar chamado Älmhult, que na época em que Ingvar Kamprad fundou a Ikea tinha 2500 habitantes. Agora tem 8000. O potencial está em qualquer lugar. A maior inovação e a maior história de sucesso é a vacina da BioNTech. Está em Mainz, foi criada por investigadores da Universidade de Mainz, que é uma boa universidade, mas não é de forma alguma a melhor da Alemanha. E foram eles que produziram em tempo recorde a maior e mais necessária inovação que tivemos em períodos de crise. Como não sabemos onde a inovação vai acontecer, talvez precisemos de apostar em mais do que um cavalo. Porque se apostamos num só, e esse cavalo partir uma perna, estamos em sérias dificuldades.

E como será o futuro da política de coesão?
Não posso falar muito sobre isso porque presido a uma comissão que tem de apresentar uma proposta... Diria que a política precisa ser muito mais sensível às realidades locais. Tem de responder aos desafios que as diferentes regiões têm. E diria também que tem de ter um foco mais multidimensional. Por um lado, continuar focada nos lugares que ficaram para trás, os lugares mais pobres da Europa, que merecem apoio. Por outro, concentrar-se nesses lugares que estão a atrasar-se, a tornar-se lugares que não importam, que são apanhadas na armadilha de desenvolvimento, que estão a estagnar. Sem esquecer os locais mais dinâmicos, normalmente as grandes cidades, onde os problemas sociais são abundantes, onde os níveis de desigualdade são muito superiores. Isso pode ser traduzido em tipos mais específicos de propostas, mas ainda estamos no início, tivemos duas de nove reuniões e depois haverá discussões com a Comissão Europeia. Haverá um relatório em algum momento no início do próximo ano.







3.5.22

“A história do populismo em Portugal é longa. Está entranhada, não pode ser desvalorizada”

Fábio Monteiro, in RR

Muito antes de André Ventura chegar ao Parlamento e o Chega ser fundado já havia populismo em Portugal. Em entrevista à Renascença, José Pedro Zúquete, autor do livro “Populismo – Lá fora e cá dentro”, lembra que Basílio Horta, do CDS, chegou a ser “denunciado como supremacista branco por Mário Soares. Foi apelidado de neonazi nas páginas da Ação Socialista”. Recorda também que os portugueses têm uma certa admiração por militares – o que ficou patente com Spínola no passado… e com Gouveia e Melo, enquanto esteve no leme da "task force" para a vacinação.Ainda em 2019, José Pedro Zúquete era um dos vários crentes no “excecionalismo português" relativamente ao populismo: tal fenómeno não existia em solo nacional. O investigador e professor universitário no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa chegou a dar uma entrevista tomando essa posição. Porém, após ser desafiado a escrever um livro sobre o tema, foi pesquisar. E o que encontrou fê-lo mudar de opinião.

No livro “Populismo – Lá fora e cá dentro”, publicado este mês pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), Zúquete emenda a posição. Em entrevista à Renascença, conta que “à medida que estudava o passado, mais me vinha à cabeça uma sensação de déjà-vu, de algo estranhamente familiar: narrativas, frases, slogans, denúncias de populismo e radicalismo, que tinham uma semelhança irresistível com o presente”.

O populismo em Portugal já existia antes de André Ventura. Por exemplo, no CDS de Basílio Horta e no de Manuel Monteiro foram utilizados argumentos semelhantes. “As pessoas que lerem o livro e a secção sobre Manuel Monteiro, se não lhes trouxer à cabeça comparações com a maneira como o André Ventura e o Chega falam sobre corrupção e dos partidos políticos, é porque falhei”, afirma.

Em pouco mais de 260 páginas, passa em revista a história do populismo lá fora, mas também desse fenómeno em Portugal. Já consegue ter certezas sobre o tema?

Aqui em Portugal, durante muito tempo, houve uma espécie de consenso que ainda permanece: diz-se que mais ou menos até à entrada em cena do Chega não havia populismo em Portugal, que não havia populistas ou partidos populistas. Chamava-se a isto o excecionalismo português, Portugal era uma exceção relativamente aos outros países [europeus]. E era como que uma ideia feita a que as pessoas aderiam, às vezes sem pensar muito nisso. Era assim e pronto.

Aliás, eu próprio fiz parte desse consenso. Lembro-me que cheguei a dar uma entrevista em 2019 a dizer isso. Mas estava errado.

Como é que se apercebeu?

A minha estrada de Damasco... quando fui desafiado a escrever um livro sobre populismo pelo António Araújo [responsável pelas publicações da FFMS], fui olhar para os bastidores desse consenso, pesquisar por todo o tipo de arquivos, jornais, vídeos, etc. E cheguei à conclusão de que o populismo sempre esteve presente em Portugal. À medida que estudava o passado, mais me vinha à cabeça uma sensação de déjà-vu, de algo estranhamente familiar: narrativas, frases, slogans, denúncias de populismo e radicalismo, que tinham uma semelhança irresistível com o presente.

Vivemos, conforme escreve, "encadeados pela obsessão do presente"?

Vamos lá ver: penso que todas as gerações têm a tendência para ver o seu próprio tempo como especial e único. Acho que nós não somos diferentes de outras gerações nisso. O que a nossa geração tem de mais especial, digamos assim, tem a ver com as próprias tecnologias de comunicação, com a internet, com as redes sociais, em que tudo aquilo que não é instantâneo é visto como lento. Acho que perdemos um bocadinho o passado.

Passado esse que seria útil para recordar factos como: D. Miguel I, ainda no século XIX, pode ser visto como um dos primeiros governadores de Portugal populistas. No livro, conta que o monarca percorria o país, visitava localidades “esquecidas pelo poder” e era recebido por multidões. A falta de proximidade dos governantes para com a população de certas zonas do país é uma queixa ainda contemporânea.

Sim, há ecos. Uma das características básicas do populismo é a noção de proximidade com o povo, com as pessoas. E essa questão com D. Miguel, os banhos de multidão, nisso ele era diferente de outros monarcas, que primavam mais pela distância. Nessa perspetiva, é que se pode também ver um traço populista ou protopopulista se quisermos.

O atual Presidente da República também se desloca regularmente a várias localidades do país…

Sim, é verdade. Mas, no livro, faço uma distinção entre o populismo corriqueiro - que serve única e exclusivamente para tirar a legitimidade às outras pessoas, aos outros políticos - e um mais analítico: o populismo como uma ideologia e uma prática de combate contra elites em nome de um povo uno e soberano – que é o que me interessa.

Obviamente, isso levou-me a caminhos que até podem ser polémicos. Como o caso de Sá Carneiro. Ou a questão de Humberto Delgado. Nós temos a tendência, atualmente, para ver o populismo apenas como um fenómeno negativo. E ao dizermos que alguém foi populista, as pessoas quase que ficam ofendidas. Mas o Humberto Delgado é alguém que fez tanto pelo país. Ou o Sá Carneiro.

Não escrevi o livro contra o populismo. Ou seja, não tenho contas a ajustar com o populismo. De certa forma, fui à procura de um fio condutor e descobri, digamos assim, que há assim três grandes tipos de populismo [em Portugal].

Fala do populismo militar, o regenerador e o local.

Exatamente. Primeiro, o populismo militar. É aquele que teve mais sucesso no século XX português. É o populismo fardado, o homem que está acima dos partidos e dos políticos. É o chefe militar como representante do povo, como filho do povo que ao povo regressará depois de cumprir a sua missão contra determinadas elites. Este é o populismo militar e está presente desde Sidónio Pais, Humberto Delgado, Otelo Saraiva de Carvalho e Spínola.

O populismo militar teve muito sucesso no século XX, mas depois esmoreceu. Penso que o populismo de maior sucesso agora é o que chamo de regenerador. E é regenerador porquê? É o populismo das vestes de pureza. É um populismo que se apresenta à parte dos partidos e dos políticos, muito movido pela moralização do espaço político. Tem diferentes níveis de intensidade e pode ter por fim quer a reforma, quer a refundação do sistema político. E pode tanto apresentar-se à esquerda como à direita, como para além da esquerda e direita.

Finalmente, há o populismo local: o das mangas arregaçadas. O populista local que cultiva muito a proximidade com o povo, faz obra para o povo local e assim se diferencia das elites distantes, ociosas, ou mesmo vistas como inimigas. Neste populismo, há muito um discurso contra as elites de Lisboa.

A única exceção neste caso é o Alberto João Jardim que está na fronteira entre o populismo local e o regenerador.

Por causa da dimensão da Madeira?

E o seu próprio discurso. A questão da quarta República, de refundar o país, que às vezes ouve-se que é uma novidade do Chega, não é: isso está muito presente no discurso de Alberto João Jardim e no populismo regenerador da Madeira.

Falemos mais um pouco do populismo militar antes do regenerador. No livro, conta que um dos tenentes da revolução defendeu Spínola para a posição de Presidente da República, no pós-25 de Abril, em detrimento de Costa Gomes, porque este era “uma figura ótima para falar às massas”.

Sendo um golpe militar que depois se transformou numa revolução, evidentemente que era preciso interagir com as massas. E orientar as massas numa determinada direção. Spínola foi a escolha prática. Até pela maneira que ele se vestia [sempre como uniforme militar], o porte, a autoridade, o prestígio que tinha.

Ocorre-me uma comparação de Spínola com o presente. Porventura, não fará sentido. Gouveia e Melo também andou sempre fardado enquanto liderou a task force da vacinação.

Aquilo que lhe passou pela cabeça, também passou a mim. O Gouveia e Melo, se se candidatasse a um cargo político e tivesse sucesso, se conseguisse mobilizar o povo português e ser eleito, ele poderia ser uma espécie de renascimento do populismo militar em Portugal. Seguramente que sim.

Ele tem esse perfil. E a história do populismo militar em Portugal é longa. Está entranhada, não pode ser desvalorizada. Acho que há possibilidade desse populismo militar renascer em Portugal. O facto de neste momento logo após o 25 de Abril o populismo militar ter esmorecido não significa que no presente e futuro não volte a ter um papel. É possível, é possível.

Então, seguindo na senda das comparações tenho outra. O Partido Renovador Democrático quando nasceu foi visto como a “partidarização do eanismo”. O Chega é a do “venturismo”?

Vamos lá ver: houve um núcleo fundador do Chega. O André Ventura não foi o único fundador do partido.

Entretanto, muitas das pessoas que estavam com Ventura saíram do partido. Muito poucos ficaram. Há sempre a pureza das origens, um romantismo quando se cria um partido político. E depois a prática política é extremamente cruel, porque pode ser extremamente pragmática. E aqueles que não se enquadram nessa política mais pragmática rapidamente podem ser excluídos ou excluírem-se a si próprios.

O Chega claramente é uma partidarização muito unipessoal. Embora, desde que foi para o Parlamento, tenha tentado alargar a representação a outras pessoas. Mas isso é um processo que neste momento ainda é muito embrionário. E não sabemos até que ponto vai ter sucesso.

Por falar em sucesso: o CDS é o partido como mais nomes referenciados como populistas no seu livro… e aquele que ainda há pouco deixou de ter representação parlamentar. Fala de Basílio Horta, Manuel Monteiro e Paulo Portas.

Em Portugal, a memória é muito curta. As pessoas esquecem-se que quando Basílio Horta apareceu foi visto - e da maneira como apareceu, um candidato da rutura, que atacava de alto a baixo a grande figura do regime que era Mário Soares - como a encarnação do mal. Não nos podemos esquecer que Basílio Horta foi denunciado como supremacista branco por Mário Soares. Foi denunciado como neonazi nas páginas da Ação Socialista. Mas esta história como que desapareceu. E agora é muito interessante, passados 30, 40 anos, ver Basílio Horta como um senador do regime. Faz lembrar um bocado Almeida Garret: “fez-se barão”. Mas isto é comum.

As pessoas que lerem o livro e a secção sobre Manuel Monteiro, se não lhes trouxer à cabeça comparações com a maneira como André Ventura e o Chega falam sobre corrupção e dos partidos políticos, é porque falhei. Acho que é por demais evidente que muita daquela narrativa monteirista facilmente encontramos hoje em André Ventura.

Em todo o caso, a reação que há contra o Chega é diferente daquela que houve com o CDS de Manuel Monteiro e Paulo Portas.

Porquê?

Uma das razões tem a ver com o facto de a sociedade portuguesa ter mudado. Houve mudanças demográficas, culturais. Somos uma sociedade muito mais multiétnica. Isso gerou novas sensibilidades, novos tabus. Há temas que não podem ser abordados como eram há 20, 30 anos. Há frases e comentários de líderes políticos que atualmente iriam gerar enormes convulsões mediáticas ou políticas.

Portanto, dizer que não há populismo em Portugal passou a ser uma posição populista?

Nesta última década falou-se tanto que Portugal não era populista. Era uma exceção. Já reparou como Portugal era sempre uma exceção? Portugal era uma exceção no populismo, não havia populismo em Portugal. Portugal era uma exceção no sucesso da direita radical, não havia direita radical em Portugal. Dizem que Portugal é um sucesso nas questões da emigração, do multiculturismo. E a questão que coloco no final do livro: e se essa exceção estiver errada? Quais as consequências?

Há um potencial para que um populismo mais identitário em Portugal comece a ter sucesso, à medida que há mudanças demográficas, culturais, sociais, na sociedade portuguesa. Podemos assistir à emergência de um populismo mais identitário e não tanto de protesto, como o Chega tem tido: políticos, corrupção, alguns comportamentos, minorias. Pode surgiu populismo em defesa do povo português como algo físico, enraizado, territorial, esse tipo de populismo ainda não levantou bem a cabeça em Portugal. Acho que se as atuais dinâmicas continuarem podemos assistir a isso e mais uma vez lá vai uma exceção portuguesa por água a baixo.

13.8.21

O populismo virou-se para a ciência e combater a desconfiança que semeou “exigirá um esforço a longo prazo”

Joana Gonçalves, in RR

“Os alicerces do populismo são semelhantes à base de qualquer teoria da conspiração”, defende Jakob-Moritz Eberl, em entrevista à Renascença. Para o investigador austríaco, este é um problema que atinge sobretudo as gerações mais velhas e que dificilmente será combatido a curto prazo. Restabelecer a confiança dos cidadãos na ciência é o desafio.

Se no início da pandemia os portugueses se viraram para a ciência em busca de respostas e orientação, nos últimos meses parece ter aumentado um movimento de ceticismo e, nalguns casos, até, de reprovação e descrença perante os mesmos especialistas que, desde março de 2020, procuram respostas para pôr fim a esta crise.

As teorias da conspiração, que já antes circulavam sobre a Covid-19, ganharam um novo impulso com a chegada da vacina e a ciência, que há um ano triunfou, regrediu agora para um estatuto menos digno, aos olhos de alguns. Mas como se explica este fenómeno?

Para Jakob-Moritz Eberl, investigador da Universidade de Viena e membro do ACPP - Austrian Corona Panel Project, a resposta é simples: o populismo chegou à ciência.

Aos atores políticos e aos media, que eram até aqui os principais alvos do discurso populista, juntaram-se, recentemente, as instituições científicas e os académicos que as representam.

“Abrimos uma caixa de pandora”, defende o académico austríaco, em entrevista à Renascença. “Esta desconfiança que observamos agora [em relação à ciência] é a mesma a que assistimos contra os media e que aumentou significativamente depois da crise migratória de 2015. Temos de equacionar isto a longo prazo, e tentar compreender de que forma vamos recuperar essa confiança”.

Para o investigador, membro do Centro de Investigação Eleitoral de Viena, “os alicerces do populismo são, de certa forma, muito semelhantes à base de qualquer teoria da conspiração” e a resposta não será alcançada no curto prazo, mas exigirá um esforço contínuo durante os próximos tempos, para lá do fim da pandemia.

Aumentar a literacia científica e promover o diálogo ciência-sociedade pode ser a solução.

Num artigo científico, de que é autor principal, defende que o “populismo científico” está no centro das teorias da conspiração sobre a pandemia da Covid-19. De que forma?

O que acho interessante é que, quando pensamos em populismo, na maioria das vezes, só nos ocorre o populismo político. Associamo-lo à noção de "adorar e zelar pelo povo" e em como as elites políticas são percepcionadas como “malévolas” ou “perversas”, com intenções próprias que só as beneficiam. Na maioria das vezes, também associamos, automaticamente, o populismo a uma ideologia nativista e de direita.

O que defendemos neste artigo é que temos de dar um passo atrás e olhar para as atitudes populistas dos eleitores, por um lado, independentemente da sua ideologia - não interessa se são de direita ou esquerda, mas sim se apresentam atitudes populistas, algumas associadas ao anti-elitismo, outras a uma visão maniqueísta do mundo - e, por outro lado, compreender esta crença de que os cidadãos representam boas intenções e sabem sempre o que é melhor para todos. Esta é a ideia chave do populismo.

Os alicerces do populismo são muito semelhantes à base de qualquer teoria da conspiração"

Defendemos, por isso, que, especialmente nesta pandemia, o populismo não se centra apenas nas elites políticas, mas também nas elites científicas, representadas por académicos, especialistas e instituições científicas que detêm o poder sobre o que é verdade. E, uma vez mais, os populistas defendem que esta verdade está a ser utilizada contra o cidadão comum.

Crê que todas as pessoas que agora acreditam em teorias da conspiração relacionadas com a Covid-19 já antes apresentavam uma atitude anti-ciência, de ceticismo perante o conhecimento científico? Por exemplo, acredita que estes cidadãos são anti-vacinação? Ou não é possível identificar uma relação direta entre uma atitude prévia anti-ciência e a crença nestas teorias da conspiração, no contexto da pandemia?

Essa relação nunca é absoluta. Não é certo que todas as pessoas anti-ciência sejam anti-vacina, como também não há uma garantia de que todas as pessoas anti-vacina sejam, de forma generalizada, anti-ciência. Mas há uma correlação muito forte entre as duas.

A questão é: o que surgiu primeiro? E nós sabemos que já existiam movimentos populistas políticos antes de concebermos a ideia de populismo científico. Por isso, temos de olhar para os agentes que alimentam ideias populistas. O facto é que a fonte do populismo científico é a mesma do populismo político, tem origem nos mesmos atores políticos: partidos populistas de direita, na maioria dos países, e partidos populistas de esquerda, nalguns casos também. Apesar de que os populistas de esquerda tendem a defender uma visão tecnocrática, onde a ciência é vista como importante e fundamental.

Por isso, o que observamos é que o populismo científico provém, sobretudo, de partidos populistas de direita, que transitaram de uma ideia de que as elites políticas e os media são maus, para um novo discurso focado nas elites científicas, nos académicos.

Se ouves constantemente que os especialistas têm más intenções e que há uma complô académico, que une os media, os peritos e os políticos, num plano macabro que decidirá o destino da humanidade, então tendes a acreditar em teorias da conspiração, porque os alicerces do populismo são, de certa forma, muito semelhantes à base de qualquer teoria da conspiração. Há sempre uma elite algures, mal intencionada, que nos tenta controlar. Esta é a essência do populismo e das teorias da conspiração.

Não deixa de ser curioso que, aparentemente, e no caso particular de Portugal, parte dos cidadãos que no início da pandemia se viraram para a ciência e para os académicos em busca de respostas, conselhos e orientações sobre como escapar ao vírus e controlar a pandemia, são também os mesmos que começam agora a duvidar das novas informações científicas e das decisões políticas tomadas com base nesses conhecimentos e orientações. Como é que se explica esta mudança na perceção dos cidadãos relativamente à ciência e aos especialistas?

Não conheço os dados para a população portuguesa em específico, mas na Áustria o que observamos é que são grupos muito distintos de pessoas. Mas, de forma geral, diria que é natural que tenhamos algum grau de ceticismo, tanto em relação ao Governo, como aos media e instituições científicas.

Contudo, o que é muito importante compreender é que há todo um processo até à aquisição de conhecimento. E neste processo vamos sempre encontrar um cientista, um especialista que nos dirá que as máscaras não são eficazes, que certas medidas não deveriam ser tomadas ou que o vírus não é perigoso. Porém, temos que ver as coisas em perspetiva e entender que neste caso há um grande grupo de cientistas que discordam, há um consenso científico do outro lado. O que pode nem sempre ser fácil de compreender por parte destas pessoas, mesmo que tenham o interesse de pesquisar sobre o que se passa.

É possível que caiam na armadilha do viés de confirmação, onde encontram uma pessoa que seja, pode até ser um investigador, que lhes diz que as máscaras não funcionam e, discordando pessoalmente do uso da máscara, optam por ouvir este especialista e é nele que depositam a sua confiança, mesmo que represente uma posição minoritária, na comunidade académica.

Temos de conseguir explicar as nossas dúvidas e incertezas, mas com o cuidado de as apresentar em perspectiva

Desvalorizar estas preocupações não é, por isso, a solução. Aumentar o contacto entre o público e a ciência pode ser o caminho? Acredita que esse esforço já está em curso?

Acho que o importante é que sejamos o mais transparentes possível. Isto também quer dizer que se houver efeitos secundários da vacina, devemos ser transparentes quanto a isso e não limitar-nos a dizer "és anti-vacina, só te focas nos efeitos secundários, não quero falar contigo, és maluco, um conspiracionista".

Temos de ser abertos e transparentes sobre estes efeitos secundários e temos de conversar com estas pessoas, procurar o diálogo. No fim de contas, a evidência é clara e cada vez mais precisa. No início da pandemia tínhamos informações com um elevado grau de incerteza e essa informação foi ficando cada vez mais clara. E este é, também, um processo que temos de explicar aos cidadãos, que ainda estamos a aprender, mas há coisas que por esta altura já sabemos e são cada vez mais evidentes.

Temos de conseguir explicar as nossas dúvidas e incertezas, mas com o cuidado de as apresentar em perspetiva. Até ao momento, é claro que o vírus continua a ser mais perigoso do que todas as alternativas que temos vindo a apresentar.

Em conversa com outros académicos, ouvi várias vezes que desistiram de tentar explicar os benefícios da vacinação a pessoas que se recusam a aceitar a vacina. Acredita que é possível alterar a perceção de um cidadão que é contra a vacinação, de forma a aumentar a confiança que este tem na ciência e, em último caso, a aceitar ser vacinado contra a Covid-19?

Não acredito que o consigamos fazer a curto prazo. Terá de ser um esforço a longo prazo e é algo que teremos de combater mesmo depois da pandemia terminar. E repare que não estou a dizer "se a pandemia terminar", mas "quando a pandemia terminar". O que significa que isto é uma espécie de "caixa de pandora" que abrimos.

Esta desconfiança que observamos agora é a mesma desconfiança a que assistimos contra os media e que aumentou significativamente depois da crise migratória de 2015. Temos de equacionar isto a longo prazo, e tentar compreender de que forma vamos recuperar essa confiança.

É algo que os media tentaram através do reforço da transparência e é algo que a academia, os governos e os media terão de fazer, juntos, durante a pandemia, mas também quando ela terminar, muito depois de terminar. Porque as pessoas não vão simplesmente parar de acreditar nestas teorias da conspiração e abandonar o ceticismo perante a ciência, quando a pandemia chegar ao fim.

Não sabemos se não virá outra pandemia, ou outra crise. Aliás, continuamos a ter que lidar com as alterações climáticas, que enfrentam o mesmo problema e as mesmas pessoas que tendem a desconfiar do conhecimento científico sobre o SARS-CoV-2 também desconfiam das evidências das alterações climáticas.

Por que motivo é acentuada essa tendência de desconfiança, hesitação e ceticismo relativamente a estes dois temas. O que têm em comum que parece promover este tipo de discursos populistas e anti-ciência, que contrariam a evidência científica?

É muito difícil apontar uma característica específica, mas o que observamos em ambos os discursos e nos dois casos é que se tratam de matérias internacionais, problemas a nível global que estão a ser discutidos ao nível das elites e de forma complexa. Não há respostas simples, respostas fáceis.

Para além disso, em ambos os casos, apesar de que a escalas diferentes, as consequências exatas da inação estão no futuro e são difíceis de antecipar e compreender. O que significa, por exemplo, que daqui a 30 anos podemos chegar a um ponto de não retorno com o clima? Ou como explicar o que poderia ter acontecido se não tivéssemos adotado medidas de controle da pandemia?

É algo muito difícil de comunicar, porque são coisas que ainda estão para acontecer e se as pessoas não estiverem realmente interessadas em entender estes fenómenos não vão ter uma reação emotiva ou empática e, por isso, também não compreenderão imediatamente a importância de agir de certa forma.

As redes sociais são mesmo as principais responsáveis pela emergência e divulgação destas teorias da conspiração?

A OMS alertou, muito cedo, para uma "infodemia" [isto é, uma pandemia de desinformação] que agravou o cenário já preocupante da pandemia da Covid-19, com informação incorreta e falaciosa a espalhar-se como um vírus. Isto é, definitivamente, algo que observamos nalguns grupos da população.

No entanto, a maioria da informação enganosa, aquela chega a mais pessoas e é lida e vista por mais cidadãos, vem de líderes políticos. Nos EUA foi divulgada, sobretudo, através do Presidente Donald Trump, que partilhou um número enorme de informação enganadora sobre o vírus. Isto é algo que vemos, também, em vários agentes populistas na Europa.

É, sobretudo, importante entender que este não é um problema das novas gerações"

Mas tudo é muito mais facilmente divulgado, através das redes sociais. Qualquer pessoa pode fazer uma alegação e são precisamente as mais descabidas e surpreendentes que recebem mais "gostos" e mais partilhas, aumentando assim a probabilidade de surgir no nosso feed, mesmo que não conheçamos essa pessoa.

É, definitivamente, um problema. Sabemos que estas grandes plataformas continuam a tentar encontrar uma forma de controlar este fenómeno, a questão que se coloca é se devemos depositar todas as nossas esperanças na tecnologia, quando foi precisamente a tecnologia que nos trouxe até aqui.

Não deveríamos, então, tentar aumentar o nível de literacia científica, mediática e política?

Sem dúvida. A literacia mediática, de saúde e política é definitivamente um aspecto em que temos que melhorar.

E é, sobretudo, importante entender que este não é um problema das novas gerações. É comum ouvirmos que os jovens não sabem o que se passa na internet, não entendem o mundo. Mas a verdade é que este também é um problema das gerações mais velhas, em particular das faixas etárias acima dos 60 anos, pessoas que provavelmente já estão reformadas e não são nativos digitais. É muito difícil para estas pessoas distinguir um site legítimo e oficial de uma página bem conseguida por um anónimo.

Como podemos, então, pôr fim à adesão do público a novas teorias da conspiração e aumentar a confiança dos cidadãos na ciência? Serão as instituições científicas, ainda, muito elitistas?

Acredito piamente que há várias soluções e não uma única resposta milagrosa. Mas há diversas formas de enfrentar este problema. Por um lado, acho que os especialistas e académicos têm que vir mais cá para fora, dar mais entrevistas e partilhar cada vez mais o seu conhecimento com o público em geral.

Também é importante que os partidos políticos no poder sejam mais inclusivos, de certa forma. É crucial que sejam mais transparentes relativamente aos fundamentos que estão na base das decisões que tomam, das políticas que implementam.

E no fim de contas, temos mesmo que ter uma conversa séria com os partidos e os agentes populistas e explicar-lhes - eles já o devem saber, mas pelo menos reforçar - as consequências reais destes sucessivos ataques às instituições científicas e democráticas. Eles diminuem a confiança dos cidadãos em instituições centrais para democracias liberais e só nos aproximam de democracias iliberais, onde a maioria dos cidadãos europeus não deseja viver.

28.1.21

"Pilar social é a melhor vacina contra o populismo" na Europa, diz Costa

Paulo Ribeiro Pinto, in Dinheiro Vivo

Na apresentação das prioridades da presidência portuguesa da União Europeia, o primeiro-ministro prometeu também dar prioridade à diretiva sobre o salário mínimo europeu.

O primeiro-ministro, António Costa, afirmou esta quarta-feira que melhores empregos e condições de trabalho são a "melhor vacina" para combater os populismos.

"Os populismos que minam as nossas democracias alimentam-se do medo e concretizar o pilar social é a melhor vacina contra as desigualdades, contra o medo e contra o populismo", afirmou na audição no Comité Económico e Social, um órgão consultivo que representa as organizações de empregadores e de trabalhadores, bem como outros grupos de interesse junto das instituições europeias.

As palavras do primeiro-ministro surgem num momento em que a extrema-direita populista conseguiu o terceiro lugar nas eleições presidenciais em Portugal.

Na intervenção inicial, António Costa afirmou que o "desenvolvimento do pilar social é fundamental para dar confiança aos europeus de que as mudanças que estamos a viver na transição digital, na transição climática não são uma ameaça, mas pelo contrário, uma oportunidade para termos mais e melhor emprego, para termos empresas mais fortes, mais competitivas, e uma economia mais próspera".

O primeiro-ministro lembrou que sob a presidência portuguesa, vai realizar-se a Cimeira Social nos dias 07 e 08 de maio, no Porto e que António Costa espera que "dê um forte impulso político ao pilar europeu dos direitos sociais", concretizando os "20 princípios gerais proclamados em Gotemburgo", indicou.

Salário mínimo europeu

A presidência portuguesa da União Europeia definiu três prioridades para o semestre: a recuperação económica, o pilar social e o reforço da autonomia estratégica da UE face ao resto do mundo.

A primeira prioridade esta relacionada com a recuperação da economia pós-pandemia, sendo que muito vai depender da distribuição da vacina, com o primeiro-ministro a esperar que não haja mais problemas com o fornecimento. O objetivo é ter, até ao verão, imunidade de grupo.

A segunda - o pilar social - está relacionada com a criação de empregos e o desenvolvimento de redes de apoio às famílias em toda a Europa, com uma "recuperação justa que beneficia todos os cidadãos", afirmou o primeiro-ministro

"Sem recuperação económica não há coesão social", frisou o chefe do Governo, acrescentando que "o pilar social é fundamental para dar confiança aos europeus".

O primeiro-ministro espera ainda durante a presidência portuguesa avançar na "revisão do regulamento dos sistemas de segurança social que se arrasta há demasiados anos", esperando adotar legislação sobretudo tendo em conta os cidadãos que trabalhem em diferentes Estados-membros.

Também outra prioridade é a "diretiva sobre salários mínimos e em matéria de direitos e condições de trabalho", indicou.

A definição dos critérios para um salário mínimo "justo e digno" promete ser a batalha mais difícil da negociação do plano de ação do Pilar Social, que Portugal quer ver aprovado durante a sua presidência da UE.

A Comissão Europeia, que apresentou em outubro a sua proposta legislativa sobre a matéria, tem insistido que não quer impor aos países valores, mas sim indicadores, critérios e objetivos que assegurem uma qualidade de vida decente aos trabalhadores, compatível com o padrão de vida do país onde exercem a atividade.

O primeiro-ministro defendeu ainda que os problemas de abastecimento nas cadeias internacionais mostram que a Europa pode beneficiar através da reindustrialização do velho Continente.

"É por isso que a nossa autonomia e o debate sobre a politica industrial e de concorrência tem de acontecer, tal como as vulnerabilidades. É fundamental encurtarmos as cadeias de valor que não dependam tanto de fornecedores externos", dando os exemplos do álcool gel ou das máscaras cirúrgicas.

António Costa apontou ainda a "vantagem comparativa e a capilaridade das pequenas e médias empresas (PME) de todos os Estados-membros", e da "inovação", avisando que essa estratégia "não passa pela criação de campeões europeus, mas sim com a cooperação desta diversidade de agentes que são as empresas europeias", concluiu.

16.11.20

Covid-19 — a tempestade ideal para o populismo em Portugal?

David Veloso Larraz, in Público on-line

Até à entrada do Chega no Parlamento há um ano, Portugal era considerado um caso paradigmático pela ausência de populismo. Mesmo que o seu resultado tenha sido mínimo (um deputado), a atestar pela cobertura mediática, o impacto político do Chega está a ser notório. Será a conjuntura crítica da covid-19 a tempestade perfeita para um enraizamento do populismo em Portugal?

A maioria das democracias tem testemunhado um forte crescimento do populismo nas últimas décadas. O populismo tem sido articulado da esquerda à direita, quer por partidos dominantes ou minoritários, quer por governos ou movimentos sociais. Na pesquisa sobre o populismo, a procura de uma definição mínima continua a ser um dos desafios mais importantes. O populismo é definido como um estilo, um discurso, uma ideologia ou uma estratégia. Embora o populismo possa ser tudo isso, dificilmente será tudo isso ao mesmo tempo. Para superar estas limitações apriorísticas, o filósofo político Ernesto Laclau defende uma abordagem fundamentada, não nos conteúdos “característicos” do populismo, mas na forma de articulação populista dos seus conteúdos. Desta maneira, o populismo é antes uma forma de fazer política.


Mais recentemente, os cientistas sociais portugueses Filipe Carreira da Silva e Mónica Brito Vieira acrescentam que esta forma de fazer política tem no ressentimento a sua própria lógica política. Assim, o populismo pode mobilizar a indignação ou a inveja. Mas em qualquer dos casos aparecem de forma simultânea os seguintes elementos: uma relação normativa entre a igualdade e a soberania popular, isto é, a ideia de povo como fundamento da legitimidade política; uma dimensão comparativa guiada por um sentimento de inferioridade imerecida; uma rivalidade entre as partes, sendo a elite responsabilizada pela inferioridade imerecida do povo; e um apelo à restauração da igualdade realizada por uma parte em nome do todo. O ressentimento também é utilizado por forças alheias ao populismo, mas o certo é que se não há ressentimento, não há populismo.

A lógica do ressentimento populista mostra que a relação entre ordem (impugnada) e povo (imaginado) é incompatível. Para alguns autores, esta oposição sugere uma separação entre populismo e democracia liberal. A partir deste ângulo, o populismo baseia-se na ideia de um povo homogéneo e, portanto, exclui outras identidades; guiado por um líder que pretende apropriar-se da vontade popular, e que concebe a disputa política a partir de uma lógica divisória entre “nós” e “eles” que ataca as bases do pluralismo. Apesar disso, o populismo não implica como premissa a construção ideológica de um povo puro, uma liderança com intenções autoritárias ou uma rivalidade antagónica fundamentada na inimizade.

Para o politólogo uruguaio Francisco Panizza, esta perspectiva não tem em conta a ambivalência do populismo, ou seja, tanto pode ser uma ameaça como um corretivo à democracia, estando a sua compatibilidade condicionada nas suas relações com outras lógicas do imaginário da democracia. Embora não tenha sido sempre assim, a discussão atual sobre o populismo tem-se centrado mais nos seus termos negativos para a democracia. Isto ocorre por duas razões principais: por um lado, a identificação do populismo com a extrema direita, e por outro lado, uma visão que o associa a um fenómeno sociopolítico próprio das democracias menos maduras.

A relativa ausência do populismo em Portugal

O início da representação em 2019 na Assembleia da República de um “partido populista”, o Chega, no mesmo ano da sua fundação, acabou com o mito da imunidade portuguesa. Isto não significa que antes de 2019 não tivessem surgido expressões menores, fragmentadas ou muito localizadas de populismos. O caso mais emblemático era o protagonizado pelo antigo líder do PSD na Madeira, Alberto João Jardim, que esteve 37 anos no poder do Governo Regional.

Apesar desta falta de tradição política populista, alguns historiadores da Universidade Nova de Lisboa estão a analisar os indícios do populismo no Portugal contemporâneo, nomeadamente em períodos agitados onde a soberania popular e a igualdade tiveram um peso importante nas mobilizações sociais. Ainda hoje, são escassos os estudos sobre o populismo em Portugal.

No passado recente, por exemplo, nos anos da intervenção da troika (FMI, BCE, CE) surgiram alguns atores que articularam de diferentes formas a lógica do ressentimento populista, mas as suas ações não tiveram grande continuidade.

Depois das grandes concentrações nas ruas das cidades de Lisboa e Porto, as mobilizações contra a intervenção financeira da troika, com alguns traços populistas, dissolveram-se rapidamente, não tendo canalizado a formação de uma nova força política como aconteceu no país vizinho. Com a sua retórica populista de combate contra a corrupção e regeneração democrática da política portuguesa, o outsider Marinho Pinto, antigo bastonário da Ordem dos Advogados, teve um notável sucesso nas eleições europeias (7% dos votos), porém, a criação do Partido Democrático Republicano não lhe permitiu obter os mesmos resultados a nível nacional, sendo claramente derrotado nas eleições legislativas (1,14% dos votos em 2015 e 0,2% em 2019).

A renovação estratégica do Bloco de Esquerda, conectando a sua linha política à indignação da sociedade civil organizada, permitiu-lhe recuperar as perdas sentidas nos comícios para as legislativas de 2011 e para as europeias de 2014; mas o forte populismo articulado contra a troika foi-se moderando para não quebrar os acordos decorrentes da legislatura, redefinindo-se como um partido titular capaz de aceitar o desafio pós-eleitoral da “nova geringonça”.

A literatura existente, diz-nos que no contexto das conjunturas críticas, tanto do lado da oferta como da procura, aumentam as condições para o sucesso do populismo. O falhanço do populismo em Portugal no contexto da recente Grande Recessão continua a ser uma das questões de maior interesse para compreender.

O impacto do Chega no sistema partidário

O impacto mediático do Chega não corresponde ao seu impacto nas eleições, na medida em que alcançou apenas 1,3% dos votos. Esta tipologia de partidos da família da direita radical expandiu-se pela Europa a partir da década de 90, sendo Portugal um dos poucos países onde ainda não tinha emergido. A representação parlamentar do Chega significou assim uma viragem no imaginário político sobre a ausência do populismo, como também a sua institucionalização na esfera pública política.

Uma primeira leitura da politóloga Marina Costa Lobo ressaltava que o sistema partidário português ficou ferido, com o coração ainda a pulsar, mas em perigo vital. Assim, o risco de quebra do sistema partidário estaria no eventual realinhamento eleitoral, isto é, caso o eixo socioeconómico dominante na política portuguesa desde 1976, estivesse a perder o seu domínio a favor de agendas identitárias.

Os primeiros passos da gestão política da pandemia confirmaram, para alguns, a boa saúde democrática. O sucesso político, elogiado internacionalmente, fundamentava-se no peso da institucionalidade para atingir compromissos entre o Presidente da República e o primeiro-ministro e os partidos políticos da direita à esquerda (a posição do Chega ficou isolada).

FotoA cabeça da manifestação convocada pelo Chega, que desceu a Avenida da Liberdade, em Lisboa, a 27 de Junho NUNO FERREIRA SANTOS

Como está a acontecer noutros países neste momento, devido ao chamado “efeito bandeira”, que explica o apoio inicial à unidade nacional e ao principal partido no poder nas situações críticas, a pandemia fortaleceu o Governo; mas, apesar da sua não cooperação, o Chega também saiu reforçado e as intenções de voto continuam a subir. Contudo, depois do levantamento do estado de emergência, o líder do PSD, Rui Rio, e o seu homólogo na Madeira, Miguel Albuquerque, mostraram disponibilidade para futuros entendimentos, o que vislumbra a fragilidade do “cordão sanitário” que o partido do centro-direita tinha estabelecido inicialmente. O Chega, com apenas um deputado, continua desde a sua emergência a desafiar a competência no lado da direita, sendo a sua tensão ainda mais forte para o CDS, que obteve nas últimas eleições o pior resultado da sua história.

Para a politóloga Mariana Mendes, na estratégia política de Chega o espelho do Vox está muito presente. Assim, o objetivo do Chega seria a formação de uma coligação com as direitas, tal como já aconteceu em Espanha a nível municipal e regional. A acelerada mudança do programa eleitoral com que o Chega se apresentou nas eleições de 2019, parece responder à evidência empírica de outros países, que mostra que após do sucesso eleitoral os partidos populistas moderam o seu populismo com o desejo de formar futuras coligações.

À semelhança do Vox, o Chega conseguiu evitar o estigma do extremismo para conquistar eleitores descontentes. No entanto, se é certo que nessa mudança corrigiu a sua posição radical a respeito do papel do Estado no serviço nacional de saúde e na educação, a sua moderação populista ainda não se plasmou. Para além das diferenças na classificação do Chega, se este deverá ser considerado como ultradireita, direita radical ou extrema direita, as suas práticas políticas apresentam um partido político que em cada uns dos seus discursos articula intensamente a lógica populista do ressentimento, desafiando muitas vezes os limites da democracia e os direitos consagrados na Constituição portuguesa.
A covid-19 e o populismo

Como outros assuntos relativos à democracia, o debate sobre a incidência da pandemia no populismo não tardou. Seguindo uma visão liberal, alguns políticos e académicos pensaram que o domínio dos especialistas para liderar as soluções a implementar e a falta de identificação de um inimigo visível, seriam razões suficientes para pôr fim ao populismo. Para Cas Mudde, no campo do populismo, alguns actores ganharam, outros ficaram na mesma e outros perderam posições. Ou seja, a pandemia não será determinante para a morte do populismo por não ter havido uma forma específica e unitária nas ações dos populistas. O recente estudo de Katsambekis e Stavrakakis sobre como os governos populistas e as forças da oposição reagiram à pandemia, confirmam as observações de Mudde sobre a amálgama de formas de atuar dos populistas.

Em Portugal, o eixo político das políticas de saúde pública marcou as primeiras decisões na gestão política da pandemia. Não houve por parte de nenhum partido qualquer subestimação sobre os efeitos da pandemia. Diferente de Donald Trump, Jair Bolsonaro ou Boris Johnson, que optaram inicialmente por uma resposta libertária frente à pandemia, André Ventura apostou na relevância da segurança sanitária para articular os conteúdos que até agora salientaram o seu populismo.


O plano de confinamento específico para a população cigana (racismo), a rejeição da libertação dos presos (lei e ordem) ou a reprovação da comemoração no Parlamento do aniversário de 25 de Abril (regime político), foram “resignificados” em nome da saúde pública dos portugueses. De facto, o líder do Chega gaba-se nos seus discursos de ter sido o primeiro a pedir que se decretasse o estado de emergência para Portugal, quando, já nessa altura, o Presidente da República tinha anunciado a convocatória do Conselho de Estado para apreciar a aprovação do mesmo.

As críticas ao Presidente da República foram, aliás, uma constante por parte de André Ventura e até o isolamento voluntário a que Marcelo Rebelo de Sousa se submeteu por causa da pandemia foi motivo para questionar a sua liderança e compromisso político. A candidatura presidencial de André Ventura parece agora ter sido um dos motivos para o foco desse antagonismo.

Contudo, o afundamento económico ameaça tornar-se na questão chave no futuro próximo. Um estudo recente do FMI mostra que as desigualdades aumentam nos cinco anos depois de crises de saúde no mundo. A economia portuguesa contraiu-se em 16,5% neste segundo trimestre de 2020, o que é a maior queda histórica desde que há registos oficiais. Neste ponto, é importante ter em conta que o populismo interage com as duas dimensões da democracia que podem ser danificadas, a inclusão e a contestação pública. Para o historiador Walter Scheidel, as catástrofes são as grandes niveladoras das desigualdades da história, quanto mais traumática e prolongada for a catástrofe, maior é o seu potencial nivelador para reverter as desigualdades. Como sublinham Brito-Vieira e Silva, a história parece dar razão a Scheidel, mas nada garante que essa “verdade histórica” se repita. O exemplo imediato da saída da Grande Recessão confirma esta suspeita.

A performatividade populista durante a Grande Recessão não teve sucesso eleitoral, mas será a pandemia uma janela de oportunidade para um aumento do populismo? Desta vez, a atribuição da culpa pode não ser repartida nos dois partidos dominantes. Aliás, desde o seu nascimento o Chega foca o seu antagonismo no governo socialista e já tem manifestado a sua disposição para se converter na alavanca que permitisse uma mudança para a formação de um governo do signo contrário.

Existe uma lacuna teórica sobre os falhanços e emergências populistas em Portugal. Na minha tese de doutoramento pretendo analisar o impacto do populismo nas estratégias partidárias durante o tempo que abrange a saída da intervenção financeira até o primeiro ano da nova crise da covid-19 (2014-2021). Esta investigação enquadra-se na minha pesquisa como bolseiro de investigação do Projeto POPULUS (http://populus.ics.ulisboa.pt) coordenado pelo professor doutor Filipe Carreira da Silva e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

O Instituto de Ciências Sociais (ICS) é uma escola da Universidade de Lisboa e um Laboratório Associado do Sistema Científico Nacional dedicado à investigação, aos estudos pós-graduados e à divulgação de ciência nas áreas de Antropologia, Ciência Política, Economia, Geografia, História, Psicologia Social e Sociologia (www.ics.ulisboa.pt). Durante um ano, todos os domingos, investigadoras e investigadores com diferentes formações, idades e percursos académicos partilham o seu trabalho com os leitores do P2.