Por Cristina Margato (entrevista a Gilles Lipovtsky), in Expresso
Autor do clássico “A Era do Vazio”, ensaio sobre o individualismo, o filósofo francês fala sobre como o “be yourself” e a procura de autenticidade está a mudar profundamente a sociedade e o sistema políticoNo início dos anos 80, Gilles Lipovetsky teve uma intuição. A palavra é dele. Escreveu “A Era do Vazio” (Edições 70), livro que era já um ensaio sobre o individualismo contemporâneo, numa época em que ainda não existiam selfies nem redes sociais. Lê-lo passadas quatro décadas não é um desperdício de tempo. Está lá tudo o que veio a existir de uma forma exacerbada neste nosso tempo e que levou ao que o filósofo chama de radicalização do princípio da autenticidade, do be yourself, bem presente até no discurso religioso católico. As raízes desta forma de estar, a que corresponde uma “revolução antropológica”, são antigas e devem ser procuradas no século XVIII, desde que Rousseau, Emerson, Nietzsche e todos os outros que se seguiram vieram dizer “não à razão e sim a mim mesmo, à minha subjetividade e à minha singularidade”. Aí nasce aquilo que Lipovetsky chama de individualismo de singularidade, ou individualismo ‘singularista’. É todo um programa individual de emancipação (em qualquer idade) que visa o bem-estar da pessoa, a sua liberdade, o seu interesse próprio — produzindo ondas de choque que agitam o sistema político. A conversa com Lipovetsky teve lugar na Embaixada francesa, em março de 2023, a propósito do lançamento de “A Sagração da Autenticidade” (Edições 70), o seu último livro.
Como surgiu a ideia, o conceito de autenticidade?
Dois fenómenos conduziram-me a esta ideia. O primeiro resulta da observação. A autenticidade está em todo o lado, da decoração à moda, ao turismo. Procura-se o autêntico e o rústico. Tudo é autêntico: uns óculos, um queijo ou um destino de viagem... O segundo fenómeno passa pelo facto de esse ideal de autenticidade individual estar a mudar-nos de forma profunda, a transformar o modo como vivemos a nossa vida, como vivemos em democracia e como concebemos o futuro. O ideal de autenticidade corresponde ao princípio que diz: “Sê tu mesmo, obedece ao teu coração, aos teus sentimentos, aos teus desejos, e não ao exterior.” Esta ética e este princípio são excecionais na nossa História. Nenhuma civilização, desde o Paleolítico até hoje, seguiu esta ética. Até agora, e em todas as civilizações anteriores, devíamos viver segundo a tradição, obedientes aos mandamentos de Deus, ao modelo de Jesus e ao dos nossos antepassados; ou seja, a algo exterior a nós. Mesmo os filósofos gregos, que inventaram a filosofia e a sabedoria, defendiam a obediência à razão universal, à razão do mundo. O século XVIII veio dizer não à razão e sim “a mim mesmo”, à minha subjetividade e à minha singularidade. Nessa altura, nasce aquilo a que se pode chamar individualismo de singularidade, ou individualismo ‘singularista’. O que corresponde, de certa forma, ao que Rousseau inventa ao dizer que todos somos diferentes e que devemos viver a nossa vida consoante o nosso ser e não através do que nos é imposto, usando a nossa consciência para julgar o bem e o mal. Para Rousseau, o homem é bom, tem um bom coração. Mas a sociedade, enquanto camisa de forças, com as suas normas, hábitos e convenções, é má. É a sociedade que distorce o homem, que o leva a mentir a si próprio, a viver com falsas necessidades de luxo, para corresponder a uma imagem que não está de acordo com o verdadeiro ser. Para Rousseau, o conformismo é o mal absoluto. E é evidente que Rousseau não está só. Ao longo do século XIX, Emerson, John Stuart Mill, Nietzsche vão colocar o indivíduo contra a sociedade e as suas convenções. O que é imoral a partir daí é ir contra a natureza. Vivemos a radicalização do princípio da autenticidade. À exceção dos fundamentalistas islâmicos, todos reclamam o princípio da autenticidade individual.
Assistimos a uma autodeterminação individual, depois da consolidação do princípio do Estado-nação?
Sim. É necessário dizer que a autodeterminação ganhou uma esfera de existência em cada um. Cada um é reconhecido como presidente do governo de si próprio. E o be yourself não nasce do nada, tem uma história, e os filósofos, por vezes, deixam essa história de lado. É um erro. Eles dizem que o be yourself é um princípio absoluto, mas, na verdade, esse princípio absoluto vai mudando ao longo da História, de Rousseau até Sartre. O princípio da autonomia e da autenticidade começou por ser limitado, deixando as mulheres de fora, circunscritas à casa e aos filhos. É importante levar isso em conta, porque, durante dois séculos, o princípio da autonomia individual defendido pelos intelectuais, homens das letras e espíritos progressistas deixou de fora as mulheres, os jovens, os gays, as lésbicas e todos os LGBTQ. Não se reivindicava a autenticidade destes, porque a consideravam uma perversão. Uma mulher que não quisesse ter e criar filhos seria considerada uma desnaturada. Agora, já não há limites. As mulheres conquistaram o poder sobre elas mesmas. Podem aceder a meios tradicionalmente masculinos, às altas esferas da política, casar ou não, ter crianças ou não. É um princípio consensual da nossa cultura. A minha tia, por exemplo, casou com quem os meus avós decidiram, contra a sua vontade. Hoje, no Ocidente, isso seria impensável e insuportável. Seria um ato bárbaro. Os pais deixam que os filhos decidam sobre a sua vida. O princípio do be yourself impôs-se e está a ser cumprido também pelas pessoas LGBTQ. Há uma explosão do princípio da autenticidade...
Não sou pela cultura de cancelamento. Devemos apreciar e valorizar os criadores mesmo quando estes têm ideias diferentes das nossas”
Freud disse que a descoberta de Copérnico, de que o Sol não anda à volta da Terra, abre uma ferida no ser humano. Ele percebe que já não está no centro, e isso remete-o à sua insignificância...
Conheço bem esse texto, é um belo texto. Freud fala no orgulho humano ferido. Durante muito tempo, o homem esteve no centro da Terra. A partir de certa altura é parte do Universo e mais tarde, com Darwin, descende do chimpanzé. A psicanálise e a descoberta do inconsciente dizem ao homem que ele já nem senhor de si é.
Poder-se-á falar num “renascimento” do homem enquanto centro do mundo?
Sim. De facto, com a generalização do princípio da autenticidade individual, singular, todos podem ter orgulho, alcançar a felicidade, mas também experimentar a dificuldade de se construir a si mesmo. Há na ética da autenticidade qualquer coisa de conquistador, cada um deve conquistar-se a si próprio, deve tornar-se no que é, como diria Nietzsche. E este é um princípio válido para todos, mesmo para as crianças. Os pais não querem constranger os filhos. A mim, ninguém me perguntava o que queria comer ou vestir, qual era o meu desejo... Hoje, o desejo de autonomia é legítimo. O princípio da autenticidade não é apenas a tese deste meu livro. É algo que mudou a nossa relação com o mundo e connosco próprios. É um agente produtor.
Uma revolução?
Sim, completamente. É uma revolução antropológica.
A força dos ucranianos nesta guerra pode vir dessa vontade de pertencer a este novo mundo, por oposição ao russo, que ainda pertence ao mundo antigo?
É importante que me coloque essa questão, porque ela permite corrigir uma imagem muito pessimista do hiperindividualismo contemporâneo. Os intelectuais e filósofos que evocam o individualismo tendem a apontar apenas os malefícios. E, de facto, eles existem. Mas nem tudo é negativo. Nem sempre o individualismo destrói o altruísmo e a virtude e faz com que o indivíduo só pense no seu benefício. O que está a acontecer na Ucrânia é muito importante. Os ucranianos têm os mesmos desejos e comportamentos hiperindividualistas, querem viver bem, comer bem, fazer turismo, ser sexualmente livres e ser eles mesmos, como nós. Mas, face à invasão russa, reagem coletivamente e lutam. Têm coragem democrática. Na verdade, as pessoas não são mais egoístas do que já foram no passado. Temos de olhar para o trabalho das associações, organizações não-governamentais que não perseguem o lucro e que querem ajudar os outros e com as quais as pessoas se comprometem — porque querem fazer o bem, ser útil aos outros. Isso dá-lhes uma felicidade que o mercado e o consumo não lhes podem dar.
Já não é o individualismo de “A Era do Vazio”. Quais são os riscos graves do hiperindividualismo...
Queria começar por dizer que, no início dos anos 80, quando escrevi “A Era do Vazio”, tive a intuição de estarmos perante um novo individualismo. A evolução que o mundo tomou confirmou essa intuição, e o narcisismo não pára de se desenvolver. Rousseau inventou a autobiografia, sem, contudo, avançar tantos detalhes quanto o narcisismo digital das selfies avança. Hoje, as pessoas colocam-se num palco como se fossem estrelas e falam e partilham o que fazem e o que acontece na vida delas de modo permanente. Dito isto, o maior perigo que vejo no hiperindividualismo é o da forma como se estabelece a relação das pessoas com a política. Interessa-me e preocupa-me o modo como os cidadãos colocam o bem-estar individual, a vida privada, à frente da vida pública social. Uma grande proporção não vai votar porque é domingo, o tempo está bom e é melhor ir nadar... Há uma despolitização e um desinteresse preocupantes. O mesmo acontece na educação, e é grave. Deu-se nos últimos 20 anos uma verdadeira revolução. Nos anos 50 e 60 era a autoridade dos pais e a obediência dos filhos que estava primeiro. A partir do Maio de 68 dá-se uma inversão — passa-se a escutar as crianças. A criança é o rei. Nem tudo está mal, porque é bom escutar as crianças. Penso que neste momento já estamos muito longe do liberalismo educativo. Os pais agem com medo de perder o amor dos filhos. Não lhes querem dizer não, com receio de que os filhos não os amem. E isso dá muitos maus resultados ao nível psiquiátrico.
O pior efeito é ao nível mental?
Sim, o ideal da autenticidade não pode ser um princípio educativo forte. Educar não é ouvir a criança e fazer tudo o que ela quer, educar é, como disse Freud, contrariar, constranger. As crianças têm de aprender a respeitar os outros, a seguir as regras, a escutar, repetir, aprender... E aprender é sair de si próprio. O mérito da cultura está em extrair a criança do que é. Não é agradável repetir exercícios, mas como se aprende a tocar piano se não o fizer? Esses princípios educativos antigos foram deitados fora, e isso não é bom. Temos de defender que é preciso manter algum controlo, alguma disciplina, e ensinar que há regras, porque os adultos sabem coisas que as crianças não sabem.
Há a ideia de que ao procurar-se a autenticidade se vai alcançar a felicidade. No entanto, não é assim...
Tem razão. Hoje, os coachers e as psicoterapias e todas as escolas de desenvolvimento pessoal dão-lhe a promessa de felicidade. A felicidade não aparece na primeira fase da autenticidade. Ralph Waldo Emerson, Rousseau, Heidegger, Sartre não têm uma única palavra para a felicidade. Eles não falam de felicidade, mas de dignidade, de ética, de compromisso. Em Heidegger, por exemplo, é a morte, o trágico e heroico que aparece e que corresponde a uma autenticidade heroica. Deu-se uma viragem, e nós vivemos no tempo da autenticidade hedonista, dos vendedores de felicidade, do mercantilismo, e há muita ilusão. Para a felicidade não existe uma única solução, mas várias. E o que acontece é que as pessoas acreditam que pode existir uma solução.
Antes existia uma estrutura face à qual se desenvolvia a hipocrisia. Na era da autenticidade e da liberdade temos a angústia dos órfãos...
Sim, de facto. É complicado, não só devido à autenticidade. Existem outros fatores para a existência desse sentimento. As pessoas têm medo de perder o trabalho, as mulheres sofrem de assédio, e daí o movimento Me Too, e isso não decorre da autenticidade. Uma pessoa até pode ser autêntica, mas o cônjuge não é, e até se pode ir embora, os filhos são autênticos, mas não têm bons resultados na escola, e etc. Depois há a guerra, a crise climática, o desconhecido... Pode-se estar em casa e de repente um furacão destrói-a. Há uma ansiedade ecológica. O medo e a ansiedade são constantes. Vivemos numa cultura de medo, de insegurança global. Não se pode comer isto e aquilo. É a gordura, o açúcar... Respiro o suficiente? E a poluição? E as ameaças terroristas? Os islamitas? O meu trabalho vai acabar? E a globalização? A incerteza é constante, também nas relações humanas. O indivíduo constrói a sua identidade num mundo incerto, e essa incerteza gera uma ansiedade geral. Antes podíamos divorciar-nos, mas agora tudo pode acontecer a qualquer momento. Havia regras, mesmo que não as conseguíssemos cumprir. E agora? Antigamente aos 75 anos preparava-se a morte, agora o marido pode chegar a casa e dizer à mulher: “Encontrei uma jovem formidável e vou de férias para a Grécia com ela!” Nota-se uma obsessão estética nas mulheres, ao ponto de fazerem cirurgias estéticas aos 18 anos, como acontece, por exemplo, no Brasil. Acredito que para fazer face a isto é fundamental apostar na educação. Se me perguntar se a educação dá felicidade, direi que não dá. Mas dá possibilidades de construirmos uma vida, de nos reciclarmos e de nos adaptarmos a um mundo que está em constante mudança. E com uma educação mais cultural, mesmo que a educação não dê felicidade, dará alguns momentos de felicidade, que não são momentos de consumo. Caso contrário, a vida não é mais do que produzir e consumir. O consumo tomou demasiado espaço na sociedade e não dá felicidade. Não é a mesma coisa quando as pessoas se juntam para cantar em coro, ou tocam piano com os amigos, ou ouvem música. Essa é uma felicidade que se aprende na escola, em criança, e que será formidável ao longo da nossa vida. Devíamos ter uma educação mais global que permitisse aos seres humanos equilibrar os excessos do produtivismo e do consumismo. Há anos que não sou um crítico radical do consumismo, porque o consumismo também traz coisas importantes. Os intelectuais denunciam o consumismo, mas consomem como os outros, há muita hipocrisia nesse tipo de pensamento. Tenho amigos que são contra o consumismo e depois têm uma segunda casa, vão de férias para a Venezuela, visitam os Estados Unidos, conduzem um Audi. É fácil dizer que se é contra o consumismo. Acredito que o consumo não é um ideal que se deva colocar na cabeça das crianças. Devemos retomar o que os filósofos gregos nos ensinaram, a sabedoria deles, e delimitar os limites. Devemos desenvolver uma cultura de autolimites. Para muitos, se não se puder ir de férias ou jantar fora, parece que a vida desaparece. Compreendo que se possa pensar assim, mas é excessivo. Penso que devemos trabalhar para reabilitar os limites e não acredito na moral. Acredito na paixão, no desejo, por isso devemos procurar que as nossas paixões e desejos sejam outros. Se tiver outras coisas na vida, talvez não fique tão triste por não poder ir de férias para a Grécia. Sou contra a moralização. Penso que, durante a crise de covid, as pessoas que tinham uma riqueza cultural aceitaram melhor os limites. Não devemos ser escravos de qualquer coisa que nos é exterior.
Disse que tem de se aceitar os homens como são...
Sim, penso que tem de se aceitar o homem como ele é e não se sonhar com uma Humanidade sábia. E isto não significa que devemos aceitar tudo, significa que não devemos sonhar com uma Humanidade sábia em que bastaria dizer que algo não é bom e que é preciso mudar para as pessoas mudarem. Isso não se irá passar. A crise climática é um bom exemplo disso. Greta Thunberg diz que é horrível andar de avião, que não devemos comer carne ou aquecer a casa, o que está correto do ponto de vista dos princípios. Mas é uma ilusão pensar que o desejo de consumo vai mudar. Cada um de nós aspira a uma vida melhor, e isso é próprio do homem moderno. As pessoas até podem fazer esforços, mas não vão fazer a mudança necessária. Essa é uma falsa imagem do ser humano. Não podemos pedir a total transformação do homem. Fazê-lo é ter uma imagem falsa do que é o homem. Veja o que aconteceu depois da covid: os aeroportos estão cheios. O homem moderno adora viajar. Veja os chineses. Acredita que não vão querer apanhar os aviões? É preciso desenvolver a inteligência, mobilizar politicamente, mas quem irá resolver estas questões é a ciência, não é a “autenticidade”. É preciso desenvolver as energias adequadas. Quem vai resolver esta questão é a ciência, a técnica, os financiamentos. Os Estados devem assumir a responsabilidade com planos de financiamento para ajudar o desenvolvimento sustentável de energia limpa. Temos de regulamentar, criar impostos. Pensar que o mundo vai mudar porque o homem vai mudar é um mito. Não acredito nisso. Mas acredito que a aventura tecnocientífica do homem vai continuar e que é a única solução, embora tenhamos de perceber quais são as ameaças que isso nos coloca. Sem desenvolvimento, sem inovação da ciência e da técnica, sem investimento na pesquisa não haverá solução. Tem de haver também compromisso e regras.
O que pensa de Elon Musk?
Não gosto de julgar as pessoas. É um formidável homem de negócios, mas não é só um visionário, quando tomou o controlo do Twitter fê-lo como ideia política, e depois tem toda a loucura californiana. Queremos ser imortais? Eu não sou contra a tecnologia, mas o ‘transumanismo’, a ideia de vida que nos querem propor, é um pesadelo. A juventude eterna a que ele quer chegar é uma coisa terrível. Toda uma vida obcecada pelo controlo de tudo o que se come e se faz. Penso que a sabedoria está em sabermos que podemos progredir, sem dúvida, continuar atraentes, como acontece com as mulheres que têm hoje 50 ou 60 anos, mas em nome do futuro não vamos sacrificar a felicidade do presente.
Annie Ernaux, ganhando o Nobel, transforma-se num bom exemplo desta tendência para a autenticidade?
Penso que todos os grandes escritores, e não apenas Annie Ernaux, são autênticos. Porque todos os grandes escritores são singulares. Se copiam, já não são grandes escritores. A invenção de um estilo é uma forma de autenticidade, porque durante séculos as formas de cultura não foram singulares. Não havia singularidade, seguiam-se os rituais, respeitava-se a tradição. No mundo moderno, um criador tem de ter essa singularidade, caso contrário é um artista comercial.
Como Ernaux faz biografia pura, não está mais próxima da autenticidade?
Desde “Confissões”, de Rousseau, que existe biografia, e essa é uma forma de autenticidade, ainda que nem tudo seja autêntico. Desse ponto de vista, parece-me que Ernaux é autêntica. Mas ela também está próxima de Mélenchon, que é um populista, e isso faz com que ela me pareça conformista, embora isso não diminua o seu mérito enquanto escritora. É como Houellebecq. Ele exagera muito, mas é um escritor formidável, apesar de não partilhar a visão dele. Não sou woke, não sou pela cultura de cancelamento. É muito perigoso o que se está a passar com o movimento woke. Penso que devemos apreciar e valorizar os criadores mesmo quando estes têm ideias diferentes das nossas. O que o movimento woke quer é eliminar Houellebecq.
Vamos ser capazes de fazer face aos populismos e à extrema-direita?
Não sei... Na política, as previsões, em particular dos intelectuais, são desastrosas. A inteligência política dos intelectuais é bem menor do que a de muitas pessoas. Serei muito prudente. Na vida moderna é extremamente perigoso fazer prognósticos ou diagnósticos. Vou usar um exemplo simples. Há 20 ou 30 anos seria impensável que Le Pen ia chegar ao poder e agora já não é. A vida política no mundo moderno está sujeita a mudanças bruscas. Há um risco, de facto. Não é só para nos assustar, é real. Mesmo assim, na Itália isso mudou. Na França parece improvável, mas é algo em que já se pode pensar. Os governantes atuais têm de ouvir a sociedade civil, caso contrário vão alimentar esses movimentos populistas.
Não está a acontecer na França, com os protestos contra o aumento da idade de reforma...
Não. Mesmo que as medidas do Governo possam ser certas, chegam tarde. Os riscos políticos são grandes porque os governos não ouviram a sociedade civil e os populistas ouvem. As elites políticas atuais não ouvem o povo, e o populismo ouve o povo. Isso reforça as possibilidades de sucesso do populismo. É de facto um grande problema. A medida implica trabalhar mais porque se tem uma maior esperança de vida, mas politicamente é perigosa.
E os discursos identitários são perigosos no contexto do populismo?
Não sou favorável aos discursos identitários, porque fecham os indivíduos no coletivo, e são particularmente perigosos por exemplo para as jovens de meios muçulmanos. Há uma primazia do coletivo sobre o indivíduo. Devemos defender a autenticidade individual, o princípio da subjetividade, a liberdade individual. Os movimentos identitários constituem uma ameaça contra as mulheres. Elas são as primeiras vítimas. Há uns anos, as mulheres não usavam véu como hoje, agora têm receio do julgamento da coletividade. A grandeza da modernidade é a invenção da liberdade e da autenticidade individual. Depois podemos ter afinidades eletivas. A república deve defender os interesses de todos.