16.11.20

Covid-19 — a tempestade ideal para o populismo em Portugal?

David Veloso Larraz, in Público on-line

Até à entrada do Chega no Parlamento há um ano, Portugal era considerado um caso paradigmático pela ausência de populismo. Mesmo que o seu resultado tenha sido mínimo (um deputado), a atestar pela cobertura mediática, o impacto político do Chega está a ser notório. Será a conjuntura crítica da covid-19 a tempestade perfeita para um enraizamento do populismo em Portugal?

A maioria das democracias tem testemunhado um forte crescimento do populismo nas últimas décadas. O populismo tem sido articulado da esquerda à direita, quer por partidos dominantes ou minoritários, quer por governos ou movimentos sociais. Na pesquisa sobre o populismo, a procura de uma definição mínima continua a ser um dos desafios mais importantes. O populismo é definido como um estilo, um discurso, uma ideologia ou uma estratégia. Embora o populismo possa ser tudo isso, dificilmente será tudo isso ao mesmo tempo. Para superar estas limitações apriorísticas, o filósofo político Ernesto Laclau defende uma abordagem fundamentada, não nos conteúdos “característicos” do populismo, mas na forma de articulação populista dos seus conteúdos. Desta maneira, o populismo é antes uma forma de fazer política.


Mais recentemente, os cientistas sociais portugueses Filipe Carreira da Silva e Mónica Brito Vieira acrescentam que esta forma de fazer política tem no ressentimento a sua própria lógica política. Assim, o populismo pode mobilizar a indignação ou a inveja. Mas em qualquer dos casos aparecem de forma simultânea os seguintes elementos: uma relação normativa entre a igualdade e a soberania popular, isto é, a ideia de povo como fundamento da legitimidade política; uma dimensão comparativa guiada por um sentimento de inferioridade imerecida; uma rivalidade entre as partes, sendo a elite responsabilizada pela inferioridade imerecida do povo; e um apelo à restauração da igualdade realizada por uma parte em nome do todo. O ressentimento também é utilizado por forças alheias ao populismo, mas o certo é que se não há ressentimento, não há populismo.

A lógica do ressentimento populista mostra que a relação entre ordem (impugnada) e povo (imaginado) é incompatível. Para alguns autores, esta oposição sugere uma separação entre populismo e democracia liberal. A partir deste ângulo, o populismo baseia-se na ideia de um povo homogéneo e, portanto, exclui outras identidades; guiado por um líder que pretende apropriar-se da vontade popular, e que concebe a disputa política a partir de uma lógica divisória entre “nós” e “eles” que ataca as bases do pluralismo. Apesar disso, o populismo não implica como premissa a construção ideológica de um povo puro, uma liderança com intenções autoritárias ou uma rivalidade antagónica fundamentada na inimizade.

Para o politólogo uruguaio Francisco Panizza, esta perspectiva não tem em conta a ambivalência do populismo, ou seja, tanto pode ser uma ameaça como um corretivo à democracia, estando a sua compatibilidade condicionada nas suas relações com outras lógicas do imaginário da democracia. Embora não tenha sido sempre assim, a discussão atual sobre o populismo tem-se centrado mais nos seus termos negativos para a democracia. Isto ocorre por duas razões principais: por um lado, a identificação do populismo com a extrema direita, e por outro lado, uma visão que o associa a um fenómeno sociopolítico próprio das democracias menos maduras.

A relativa ausência do populismo em Portugal

O início da representação em 2019 na Assembleia da República de um “partido populista”, o Chega, no mesmo ano da sua fundação, acabou com o mito da imunidade portuguesa. Isto não significa que antes de 2019 não tivessem surgido expressões menores, fragmentadas ou muito localizadas de populismos. O caso mais emblemático era o protagonizado pelo antigo líder do PSD na Madeira, Alberto João Jardim, que esteve 37 anos no poder do Governo Regional.

Apesar desta falta de tradição política populista, alguns historiadores da Universidade Nova de Lisboa estão a analisar os indícios do populismo no Portugal contemporâneo, nomeadamente em períodos agitados onde a soberania popular e a igualdade tiveram um peso importante nas mobilizações sociais. Ainda hoje, são escassos os estudos sobre o populismo em Portugal.

No passado recente, por exemplo, nos anos da intervenção da troika (FMI, BCE, CE) surgiram alguns atores que articularam de diferentes formas a lógica do ressentimento populista, mas as suas ações não tiveram grande continuidade.

Depois das grandes concentrações nas ruas das cidades de Lisboa e Porto, as mobilizações contra a intervenção financeira da troika, com alguns traços populistas, dissolveram-se rapidamente, não tendo canalizado a formação de uma nova força política como aconteceu no país vizinho. Com a sua retórica populista de combate contra a corrupção e regeneração democrática da política portuguesa, o outsider Marinho Pinto, antigo bastonário da Ordem dos Advogados, teve um notável sucesso nas eleições europeias (7% dos votos), porém, a criação do Partido Democrático Republicano não lhe permitiu obter os mesmos resultados a nível nacional, sendo claramente derrotado nas eleições legislativas (1,14% dos votos em 2015 e 0,2% em 2019).

A renovação estratégica do Bloco de Esquerda, conectando a sua linha política à indignação da sociedade civil organizada, permitiu-lhe recuperar as perdas sentidas nos comícios para as legislativas de 2011 e para as europeias de 2014; mas o forte populismo articulado contra a troika foi-se moderando para não quebrar os acordos decorrentes da legislatura, redefinindo-se como um partido titular capaz de aceitar o desafio pós-eleitoral da “nova geringonça”.

A literatura existente, diz-nos que no contexto das conjunturas críticas, tanto do lado da oferta como da procura, aumentam as condições para o sucesso do populismo. O falhanço do populismo em Portugal no contexto da recente Grande Recessão continua a ser uma das questões de maior interesse para compreender.

O impacto do Chega no sistema partidário

O impacto mediático do Chega não corresponde ao seu impacto nas eleições, na medida em que alcançou apenas 1,3% dos votos. Esta tipologia de partidos da família da direita radical expandiu-se pela Europa a partir da década de 90, sendo Portugal um dos poucos países onde ainda não tinha emergido. A representação parlamentar do Chega significou assim uma viragem no imaginário político sobre a ausência do populismo, como também a sua institucionalização na esfera pública política.

Uma primeira leitura da politóloga Marina Costa Lobo ressaltava que o sistema partidário português ficou ferido, com o coração ainda a pulsar, mas em perigo vital. Assim, o risco de quebra do sistema partidário estaria no eventual realinhamento eleitoral, isto é, caso o eixo socioeconómico dominante na política portuguesa desde 1976, estivesse a perder o seu domínio a favor de agendas identitárias.

Os primeiros passos da gestão política da pandemia confirmaram, para alguns, a boa saúde democrática. O sucesso político, elogiado internacionalmente, fundamentava-se no peso da institucionalidade para atingir compromissos entre o Presidente da República e o primeiro-ministro e os partidos políticos da direita à esquerda (a posição do Chega ficou isolada).

FotoA cabeça da manifestação convocada pelo Chega, que desceu a Avenida da Liberdade, em Lisboa, a 27 de Junho NUNO FERREIRA SANTOS

Como está a acontecer noutros países neste momento, devido ao chamado “efeito bandeira”, que explica o apoio inicial à unidade nacional e ao principal partido no poder nas situações críticas, a pandemia fortaleceu o Governo; mas, apesar da sua não cooperação, o Chega também saiu reforçado e as intenções de voto continuam a subir. Contudo, depois do levantamento do estado de emergência, o líder do PSD, Rui Rio, e o seu homólogo na Madeira, Miguel Albuquerque, mostraram disponibilidade para futuros entendimentos, o que vislumbra a fragilidade do “cordão sanitário” que o partido do centro-direita tinha estabelecido inicialmente. O Chega, com apenas um deputado, continua desde a sua emergência a desafiar a competência no lado da direita, sendo a sua tensão ainda mais forte para o CDS, que obteve nas últimas eleições o pior resultado da sua história.

Para a politóloga Mariana Mendes, na estratégia política de Chega o espelho do Vox está muito presente. Assim, o objetivo do Chega seria a formação de uma coligação com as direitas, tal como já aconteceu em Espanha a nível municipal e regional. A acelerada mudança do programa eleitoral com que o Chega se apresentou nas eleições de 2019, parece responder à evidência empírica de outros países, que mostra que após do sucesso eleitoral os partidos populistas moderam o seu populismo com o desejo de formar futuras coligações.

À semelhança do Vox, o Chega conseguiu evitar o estigma do extremismo para conquistar eleitores descontentes. No entanto, se é certo que nessa mudança corrigiu a sua posição radical a respeito do papel do Estado no serviço nacional de saúde e na educação, a sua moderação populista ainda não se plasmou. Para além das diferenças na classificação do Chega, se este deverá ser considerado como ultradireita, direita radical ou extrema direita, as suas práticas políticas apresentam um partido político que em cada uns dos seus discursos articula intensamente a lógica populista do ressentimento, desafiando muitas vezes os limites da democracia e os direitos consagrados na Constituição portuguesa.
A covid-19 e o populismo

Como outros assuntos relativos à democracia, o debate sobre a incidência da pandemia no populismo não tardou. Seguindo uma visão liberal, alguns políticos e académicos pensaram que o domínio dos especialistas para liderar as soluções a implementar e a falta de identificação de um inimigo visível, seriam razões suficientes para pôr fim ao populismo. Para Cas Mudde, no campo do populismo, alguns actores ganharam, outros ficaram na mesma e outros perderam posições. Ou seja, a pandemia não será determinante para a morte do populismo por não ter havido uma forma específica e unitária nas ações dos populistas. O recente estudo de Katsambekis e Stavrakakis sobre como os governos populistas e as forças da oposição reagiram à pandemia, confirmam as observações de Mudde sobre a amálgama de formas de atuar dos populistas.

Em Portugal, o eixo político das políticas de saúde pública marcou as primeiras decisões na gestão política da pandemia. Não houve por parte de nenhum partido qualquer subestimação sobre os efeitos da pandemia. Diferente de Donald Trump, Jair Bolsonaro ou Boris Johnson, que optaram inicialmente por uma resposta libertária frente à pandemia, André Ventura apostou na relevância da segurança sanitária para articular os conteúdos que até agora salientaram o seu populismo.


O plano de confinamento específico para a população cigana (racismo), a rejeição da libertação dos presos (lei e ordem) ou a reprovação da comemoração no Parlamento do aniversário de 25 de Abril (regime político), foram “resignificados” em nome da saúde pública dos portugueses. De facto, o líder do Chega gaba-se nos seus discursos de ter sido o primeiro a pedir que se decretasse o estado de emergência para Portugal, quando, já nessa altura, o Presidente da República tinha anunciado a convocatória do Conselho de Estado para apreciar a aprovação do mesmo.

As críticas ao Presidente da República foram, aliás, uma constante por parte de André Ventura e até o isolamento voluntário a que Marcelo Rebelo de Sousa se submeteu por causa da pandemia foi motivo para questionar a sua liderança e compromisso político. A candidatura presidencial de André Ventura parece agora ter sido um dos motivos para o foco desse antagonismo.

Contudo, o afundamento económico ameaça tornar-se na questão chave no futuro próximo. Um estudo recente do FMI mostra que as desigualdades aumentam nos cinco anos depois de crises de saúde no mundo. A economia portuguesa contraiu-se em 16,5% neste segundo trimestre de 2020, o que é a maior queda histórica desde que há registos oficiais. Neste ponto, é importante ter em conta que o populismo interage com as duas dimensões da democracia que podem ser danificadas, a inclusão e a contestação pública. Para o historiador Walter Scheidel, as catástrofes são as grandes niveladoras das desigualdades da história, quanto mais traumática e prolongada for a catástrofe, maior é o seu potencial nivelador para reverter as desigualdades. Como sublinham Brito-Vieira e Silva, a história parece dar razão a Scheidel, mas nada garante que essa “verdade histórica” se repita. O exemplo imediato da saída da Grande Recessão confirma esta suspeita.

A performatividade populista durante a Grande Recessão não teve sucesso eleitoral, mas será a pandemia uma janela de oportunidade para um aumento do populismo? Desta vez, a atribuição da culpa pode não ser repartida nos dois partidos dominantes. Aliás, desde o seu nascimento o Chega foca o seu antagonismo no governo socialista e já tem manifestado a sua disposição para se converter na alavanca que permitisse uma mudança para a formação de um governo do signo contrário.

Existe uma lacuna teórica sobre os falhanços e emergências populistas em Portugal. Na minha tese de doutoramento pretendo analisar o impacto do populismo nas estratégias partidárias durante o tempo que abrange a saída da intervenção financeira até o primeiro ano da nova crise da covid-19 (2014-2021). Esta investigação enquadra-se na minha pesquisa como bolseiro de investigação do Projeto POPULUS (http://populus.ics.ulisboa.pt) coordenado pelo professor doutor Filipe Carreira da Silva e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

O Instituto de Ciências Sociais (ICS) é uma escola da Universidade de Lisboa e um Laboratório Associado do Sistema Científico Nacional dedicado à investigação, aos estudos pós-graduados e à divulgação de ciência nas áreas de Antropologia, Ciência Política, Economia, Geografia, História, Psicologia Social e Sociologia (www.ics.ulisboa.pt). Durante um ano, todos os domingos, investigadoras e investigadores com diferentes formações, idades e percursos académicos partilham o seu trabalho com os leitores do P2.