Ana Fernandes, in Jornal Público
Para o presidente da maior organização de agricultores portuguesa, o futuro da política agrícola europeia está no desenvolvimento rural, que não pode vergar-se às pressões da Organização Mundial de Comércio
Até dia 10, o mundo agrícola nacional converge para Santarém, onde, este ano, os biocombustíveis ocupam o palco central. Depois de dois anos de conflito, a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) volta a ser um interlocutor do Governo, junto de quem quer ter voz para influenciar políticas de forma a que Portugal responda ao maior desafio que enfrenta: não deixar despovoar 80 por cento do seu território, apostando na dimensão, diz o seu presidente, João Machado.
PÚBLICO - As relações entre a CAP e o ministério estão agora pacificadas. Houve concessões?
JOÃO MACHADO - Tínhamos, e continuamos a ter, divergências muito profundas. Mas estamos a tentar construir uma plataforma de entendimento que fecha o capítulo do passado. Neste início de um novo quadro comunitário, era importante que houvesse diálogo para o futuro para termos alguma influência para alterar algumas coisas no Plano de Desenvolvimento Rural (PDR).
Quais?
O plano não garante um desenvolvimento nem sustentado nem harmónico da agricultura nacional. Mesmo a agricultura que pode ter algum impacto positivo deste PDR tem limitações que lhe são impostas por outras medidas.
Que limitações?
Defender a competitividade é também defender, no mínimo, condições de igualdade para os produtores portugueses e para os produtores dos outros países europeus, porque estamos num mercado único. E não se pode dizer que se vai investir nessa competitividade e, ao mesmo tempo, retirar 20 por cento do RPU [Regime de Pagamento Único] que todos os outros vão ter.
Está a falar da modulação?
Sim. Portugal vai aplicar esta modulação sozinho. Essa é uma ajuda que é do agricultor e que é 100 por cento comunitária. Estamos a retirar competitividade àqueles que são mais competitivos, que têm dimensão e produções maiores, retirando-lhe uma parte da ajuda, sem saber quem é que esse dinheiro vai beneficiar.
O ministro tem dito que é para o ambiente e para concluir infra-estruturas de regadio.
As questões ambientais na política agrícola actual têm um local próprio que é o eixo 2 e que são as agro-ambientais, que, manifestamente, não são o forte deste Governo. Para todas as medidas agro-ambientais temos três por cento do total do Quadro Comunitário, muito menos que o anterior, e temos medidas de acesso muito restritivas e ligadas ao mercado. Quando isso acontece estamos a fazer uma subversão da política agro-ambiental, que é de defesa do ambiente.
E quanto ao regadio?
Hoje não há agricultura moderna em países mediterrânicos sem água. Tudo o que é consolidar sistemas de regadio está correcto. O problema é quando a prioridade desta consolidação não é pôr água disponível em todo o país mas sim para fazer grandes obras públicas.
É o caso do Alqueva?
Onze por cento do total do quadro vai para o Alqueva. Nós não somos contra o Alqueva, mas os fundos agrícolas deveriam ser mais bem repartidos por sistemas de regadio ao longo de todo o país, fazendo mais investimentos menores que teriam mais impacto em número de hectares.
Quais são os grandes desafios da agricultura portuguesa?
Fazer com que este quadro comunitário tenha um impacto decisivo na agricultura nacional.
Mas nos últimos anos houve uma grande injecção de capital na agricultura sem que tenha havido um retorno equivalente.
O produto agrícola aumentou, mas concordo que os três quadros anteriores deveriam ter tido mais impacto na agricultura portuguesa do ponto de vista estrutural.
O que é que falhou?
Faltou uma visão estratégica de médio e longo prazo para a agricultura, o que fez com que as políticas fossem erráticas. A política agrícola não deveria ser uma mesa de apoios onde os agricultores se servem. Os fundos deveriam servir para mudar aquilo que está mal.
O quê?
A dimensão das propriedades. Parece que temos medo de encarar o desafio de fazer com que numa parte significativa do nosso país - Centro e Norte - esses agricultores venham a ser menos no futuro mas mais competitivos com propriedades maiores.
Como é que isso se faria?
Tem de se usar medidas da política agrícola e da política nacional com o mesmo objectivo. Primeiro, dificultando a divisão da propriedade. Depois privilegiando-se a dimensão. Mas em Portugal, à medida que os projectos aumentam, diminuem os apoios por hectare. Devia ser ao contrário.
Mas isso não prejudicaria uma boa parte dos agricultores?
Não, porque os agricultores podem ter dimensão agrupados.
O que em Portugal não é fácil.
Não é verdade. Sempre que houve políticas nesse sentido na agricultura portuguesa elas foram conseguidas. Só assim se chegou ao nível que o leite tem hoje, em que se produz mais e melhor, com menos produtores, mas com os terrenos todos utilizados.
Por que é que isso não se replicou para os outros?
Porque houve política no leite. Quando há medidas inteligentes, os agricultores aderem voluntariamente. Se não elegermos a dimensão como a grande prioridade, não resolvemos o problema do envelhecimento.
Mas haverá tempo, já que se diz que estamos no último grande quadro de apoio?
Claro que há tempo, porque não é crível que, em Portugal, 80 por cento do território possa ser abandonado pelas populações. Este novo quadro tem uma nova filosofia que é a do desenvolvimento rural. Deixámos de ter uma política de apoio ao produto para passarmos a ter uma de ocupação dos territórios. Ninguém acredita que a UE, depois de 2013, abandone o desenvolvimento integrado das suas zonas rurais.
Como vê o futuro da PAC?
Vai aparecer outra política agrícola que é a de desenvolvimento rural com produção mas aliada a outras actividades como o turismo, a gastronomia, a cultura, com uma nuance que se vai desenvolver muito nos próximos tempos: o ambiente, agora com um enfoque especial na agricultura por causa dos biocombustíveis.
Mas a agricultura europeia vê-se perante produtores imbatíveis como é o Brasil. Qual é a saída?
Não é possível para a Europa ter um objectivo de povoamento do território e ao mesmo tempo ter uma política junto da OMC de liberalização total das trocas comerciais. As condições de produção europeias são as mais caras do mundo. A mão-de-obra que respeita o modelo social europeu é cara, a terra é cara, os impostos também, as condições de produção ambientais e de segurança alimentar são as mais restritivas. Tudo isto torna os produtos mais caros. Pensar que depois disto tudo um quilo de soja europeu pode competir com o do Brasil é impossível. Portanto tem de haver mecanismos de compensação.
Mas dentro da própria União, a PAC também é atacada.
Não é necessário manter os níveis de apoio que têm vindo a ser dados à agricultura europeia. Mas o orçamento poderia ser melhor distribuído porque há uma preponderância de alguns Estados-membros que recebem a maioria das ajudas. E isso deve ser revisto.
A Feira de Santarém vai dar um grande enfoque às bioenergias. É um desafio para a agricultura nacional?
É um desafio extraordinariamente interessante, mas se vai ser sério e cumprido, veremos.
Porquê?
O Governo definiu metas ambiciosas. Resta saber se o desafio posto ao país engloba a agricultura nacional. As regras do jogo só estão meio definidas. É o caso da isenção do ISP para o etanol, que está previsto mas não está implementado.
a Com a recente queda de granizo, evidenciou-se a falta de adesão dos agricultores aos seguros. O que fazer?
Uma questão recorrente. A CAP tem propostas para alteração do SIPAC [Sistema Integrado de Protecção contra as Aleatoriedades Climáticas] em Portugal, há muitos anos, mas até agora ninguém mexeu nisso. O SIPAC é um mau sistema e é caro para o Estado, que paga 65 por cento dos prémios dos seguros. Isto depende que quem faz seguro todos os anos, mas varia entre 35 milhões e 50 milhões de euros gastos anualmente.
Perante esses valores, não vale mais ao Estado esperar que haja uma catástrofe e ser ele a indemnizar os agricultores?
Exactamente. Isto faz com que o sistema seja perverso. E é um sistema caro e que leva a que cada vez que há uma calamidade, ou os agricultores não fizeram seguros, ou os que fizeram têm dificuldade em receber, ou o sistema não é aplicável ali. Mas isto custa uma fortuna ao país todos os anos. Por que é que não fazemos como os espanhóis? Deveríamos pegar neste dinheiro que o Estado e os agricultores pagam, fazer um fundo e geri-lo, capitalizando-o - porque não há calamidades todos os anos. Há 20 anos que existe este sistema em Espanha e nunca o Estado teve que pôr mais dinheiro, nem agora com o granizo nem em 2005 com a seca.
E só abrange aqueles que participam no fundo?
Não. Em concelhos onde mais de metade dos agricultores fizeram seguro, automaticamente todos têm de fazer, passa a ser obrigatório. E quem não fez não recebe. O problema aqui é que o Estado português anda três anos atrasado com as companhias de seguros e para mudar tinha de pagar o que está para trás e o ano seguinte. Portanto, para acabar com o sistema o Estado terá um ano com uma grande despesa.