Francisca Gorjão Henriques, in Jornal Público
Wen lamenta o "comportamento miserável" do manifestante que atirou um sapato no fim da sua operação de charme na Europa
A realidade pode ser ainda mais grave, mas, segundo dados oficiais divulgados ontem, cerca de 26 milhões de trabalhadores migrantes na China estão sem emprego. Milhares de fábricas chinesas fecharam devido à crise económica mundial - que ocupou a ronda europeia do primeiro-ministro Wen Jiabao, terminada ontem no Reino Unido, com um manifestante a atirar-lhe um sapato em sinal de protesto.
Todos os anos, durante o Ano Novo chinês, milhões de pessoas deixam as zonas industrializadas onde trabalham para visitar os familiares no interior, na maior movimentação populacional do mundo. Mas, desta vez, a viagem de regresso foi só para alguns. Uma sondagem feita pelo Ministério da Agricultura mostra que 15,3 por cento dos 130 milhões de trabalhadores vindos das regiões rurais ficou sem emprego.
A este número juntam-se os entre cinco e sete milhões de novos trabalhadores que anualmente deixam as suas terras para arranjar trabalho nas cidades. "Se juntarmos os dois números, temos entre 25 e 26 milhões de trabalhadores migrantes rurais que estão sob pressão para ter emprego", afirmou aos jornalistas Chen Xiwen, director de um grupo de planeamento rural, que faz aconselhamento ao Governo.
Ainda no mês passado, o Governo tinha avançado com um número - quase um terço deste - já considerado alarmante, e que levou mesmo as autoridades a anunciar um plano de investimento público para impedir a queda acentuada do consumo. Alguns observadores comentam que a realidade pode ser ainda mais grave, uma vez que o regime chinês sempre controlou as estatísticas.
Mais de 750 milhões de chineses vivem nas zonas rurais, onde a qualidade de vida tem vindo a aumentar sobretudo nos últimos cinco anos. Mas os milhões que agora regressam a casa dificilmente encontrarão trabalho. O crescimento económico chinês abrandou para níveis inéditos em sete anos - nove por cento - e o regime já afirmou que oito por cento de crescimento é a barreira para manter a estabilidade no país.
Foi Wen Jiabao quem teve de dizer aos chineses que 2009 seria "o ano mais difícil do século". Ontem, depois de um encontro com o seu homólogo britânico, Gordon Brown, Wen disse "ver luz ao fundo do túnel" com a aplicação de um plano de estímulo económico - o regime anunciou mais 458 mil milhões de euros para ajudar a aumentar a procura interna.
Em entrevista ao Financial Times (que refere que as expectativas externas sobre Wen são quase tão elevadas como as que pesam sobre o Presidente Barack Obama), o primeiro-ministro afirmou que irá fazer tudo o que for necessário para manter um crescimento "de cerca de oito por cento". "Gerir bem os nossos negócios internos é o nosso maior contributo para a humanidade", afirmou, comentando a acusação de alguns responsáveis ocidentais de que o enorme volume de poupanças na China terá sido uma das causas da crise, ao reduzir os prémios de risco em todo o mundo.
O incidente do sapato
Wen não teve só de enfrentar o imprevisto trazido pela pior tempestade em Londres dos últimos dez anos - que, no entanto, não o impediu de fazer jogging em Hyde Park.
Quando discursava na Universidade de Cambridge, um manifestante lançou-lhe um sapato, que falhou o alvo por um metro (imitando o gesto de um jornalista iraquiano que quase atingiu o ex-Presidente norte-americano George W. Bush, numa visita de despedida em Dezembro).
"É um escândalo!", gritou o manifestante quase no fim da intervenção de Wen, segundo a AFP. "Esse ditador! Como podemos ficar a ouvir as suas mentiras?" Enquanto era levado pelo segurança, ainda lançou à assistência, essencialmente composta por estudantes chineses: "Levantem-se e protestem!", ouvindo como resposta: "Tenha vergonha!".
A questão tibetana e a dos direitos humanos terão sido abordadas por Brown no encontro horas antes, embora não tenham sido adiantados detalhes.
"Este comportamento miserável não terá efeitos nas relações entre a China e o Reino Unido", comentava depois Wen Jiabao. Horas antes, Brown tinha anunciado que Londres fixara como objectivo a duplicação das suas exportações para a China daqui a 18 meses, adianta a AFP.
E o primeiro-ministro chinês tinha também sublinhado a necessidade de cooperação económica internacional, já que "todo o mundo está no mesmo barco". Chamando ao seu périplo europeu a "viagem da confiança", Wen admitiu: "Em alguns locais, as pessoas estão desiludidas, frustradas e pessimistas", cita a Reuters. "Peço confiança, cooperação e responsabilidade... porque, se fizermos isso, conseguimos salvar o mundo".
Antes de Londres, o chefe do Governo chinês esteve na Alemanha, Suíça (para a cimeira de Davos), Bélgica e Espanha, para estreitar os laços com a Europa, danificados depois dos incidentes com o Dalai Lama e as manifestações que antecederam os Jogos Olímpicos.


