Bruno Contreiras Mateus, in Correio da Manhã
Com o País em crise, será que quem vive na capital, sem laços de vizinhança, em caso de extrema necessidade, vai poder comer ou ter tecto para dormir? A Domingo testou o sistema de emergência social em Lisboa
Não há quem repare na pobreza quando todos são pobres. Ninguém aponta as bainhas nas calças pretas rasgadas para se estenderem ao porte de um metro e oitenta; os ténis a arrastar lama das poças; um casaco de malha, azul-escuro, repleto de borbotos e frio para a época; o cabelo sujo e revolto; os óculos reparados com fita adesiva negra. Só um sem-abrigo sabe que nenhum outro na sua condição o vê como tal – é redundante. Escusado será dizer que o mal-menor entre eles é ter rótulo de 'expulso de casa' – usado pela Domingo para testar o sistema de emergência social em Lisboa.
O estômago ronca de fome. Ninguém o ouve ao subir pela Almirante Reis, no sentido Martim Moniz para o Areeiro – ou, para quem o sente e conhece, o sentido dos bairros mais pobres para os de classe média-alta. Se a travessia se fizer em passo acelerado, os ossos vão ficando menos gelados. São 12h15. De um lado da rua, a escadaria da Igreja dos Anjos é uma massa consistente de homens – as mulheres são poucas – sentados à espera do almoço. 'O Benfica perdeu por 1-1', sentencia um jovem, de boné na cabeça, sobre o jogo entre os encarnados e o FC Porto. Percebe-se pelos grupos ali formados que a maioria são portugueses, longe ainda da meia--idade, mas há muitos provenientes dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) e, menos, vindos do Leste. Se não chove, é lá que estão: em frente à 'sopa dos pobres' (o Centro de Apoio Social dos Anjos).
No átrio da entrada, há cadeiras onde se sentam mulheres, idosos e quem está de perna engessada. Quem chegou tira a senha 92. Vai no número 35. O ‘porta--moedas’ é um cartão de utente, entregue pelos Serviços de Acção Social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que, além de refeições gratuitas dá acesso ao balneário, lavandaria e gabinete médico. E quem não tem cartão? 'Vais lá e dizes que não tens. Eles servem-te na mesma' – aconselha quem come lá já há quatro meses. 'Se fores à tua junta de freguesia ou à Segurança Social, eles tratam disso. Se viveres na rua como eu, conheces a praça da Alegria? Sobes aquilo tudo e no 35 da travessa do Rosário, dão-te o cartão.' Poucos se metem nas conversas. Mas a entreajuda revela-se. Quem, por infortúnio, passar à mesma condição que eles, será aceite. 'Se tu não puderes almoçar aqui' – acrescenta um rapaz negro, alto como os jogadores de basquete –, 'tenta a Vida e Paz, em Alvalade'.
A fome obriga a tentar aqui. Antes de entrar no refeitório, um cartaz aconselha a lavar as mãos. Evita doenças. Como não há filas, todos preparam a senha e o cartão para quando chegar a sua vez. O 92 não pode fazê-lo. 'Espere aqui que já vem alguém falar consigo', indica o funcionário que anota os dados dos utentes. É normal sentir-se medo na primeira vez. Pouco depois, um responsável tenta saber as razões para se estrear na conhecida – mas estigmatizada – 'sopa dos pobres'. 'Expulso de casa no sábado', escreveu o técnico superior numa ficha. 'Pode almoçar hoje, mas vai ter que ir ao Serviço de Emergência Social, que pertence à Santa Casa.' E escreve num papel a tal morada junto à praça da Alegria.
A partir daqui a fila do refeitório é rápida. Há sopa de nabiças. E escolhe-se entre peixe cozido com batatas e chocos fritos com arroz de legumes. Para a sobremesa, iogurte ou maçã. Nem pensar em beber álcool. Só água.
Não se vê crianças, como é suposto. As mesas são de quatro lugares. Sentado numa está António (nome fictício) de cabelo grisalho, óculos de massa acinzentados e vestido com um casaco cinza sobre uma sweatshirt azul-escura a dizer: ‘Free Time’ (‘tempos livres’). Há dois meses que toma ali as refeições e, desde então, alugou um quarto para não ficar na rua. Depressa responde ao novato, se a comida é sempre assim? 'Umas vezes interessa outras não. É melhor que passar fome', diz, enquanto tenta, arreliado, cortar os chocos. 'Queres?' – pergunta, com a faca prestes a empurrá-los borda fora.
'Não.' António viria, mais à frente, a insistir. Entretanto, mergulhou o arroz na sopa e comeu. Levantou-se e trouxe outra tigela de sopa e repetiu a dose. Há gostos para tudo. 'Se não puderes jantar aqui, passa uma carrinha em frente ao jardim Constantino, às 19h00, ou, às 20h30, em frente à Igreja dos Anjos', aconselha. As várias organizações que distribuem alimentos pela cidade, à noite, cobrem os pontos onde pernoitam os sem-abrigo. Todos conhecem a rotina. Entretanto, António saiu com o iogurte e o pão nas mãos. Não terá gasto mais de 15 minutos a comer.
Ali fala-se sobretudo da comida, com vozes nada sobressaltadas. O ambiente é pouco barulhento – e muito organizado. Ao lado, senta-se agora um homem de cabelo tão curto quanto possível e os dedos anulares cheios de anéis de prata brilhante. 'Quando era a outra empresa a cozinhar, comíamos peixe frito, peixe- -espada.' À sua frente, outro homem, mais gordo, de bigode e casaco castanho, acrescenta: 'Febras, grelhada mista.' Pode ser que ao jantar as ervilhas guisadas com entrecosto ou a carne de vaca estufada com arroz os deixem saciados. É verdade que quem passa na Almirante Reis dificilmente se apercebe das boas condições do refeitório.
O início da tarde vem com a necessidade de encontrar um sítio para jantar. Perto das 17h00, no Serviço de Emergência Social da Santa Casa, uma assistente social avalia o caso de quem dorme na rua porque foi 'expulso de casa'. Era preciso dirigir-se à junta de freguesia da área de residência mas, dada a hora avançada, tem que se resolver o problema rapidamente. 'Encontrámos uma solução de emergência. Hoje, pode dormir no nosso centro de acolhimento. E jantar também' – anuncia a técnica, empunhando um papel onde escreveu a morada: rua da Mãe de Água, 35. O Centro de Acolhimento Nocturno da Glória (CANG) tem perto de três dezenas de camas destinadas a recolher pessoas em situação de carência, sem--abrigo ou sem domicílio fixo, ou em situação de emergência social, como famílias maioritariamente monoparentais femininas.
Armando (nome fictício), de 63 anos, é doente de Parkinson. As mãos e boca tremem. Perdeu também a perfeição no andar. À noite, no CANG, enfiou--se no vão das escadas de acesso aos quartos. Está a engomar uma camisa com listas diagonais vermelhas, da marca Victor Emanuel. Foi-lhe oferecida. Apesar dos gestos debilitados, espera-o uma pilha de roupa sua para passar.
Nascido há apenas 12 dias, já a vida lhe pregava a primeira partida: encontraram-no no lixo e levaram-no para a Santa Casa. Ficou institucionalizado lá até aos 6 anos, tendo sido depois educado na Casa Pia, até aos 17. 'Eram outros tempos', diz, à cautela. Saiu com o curso industrial de tipógrafo de 'primeira classe', acrescenta garboso.
Quando a mulher e o filho morreram, entregou-se à vida na rua. Foi recolhido, há bem pouco tempo, da estação do Oriente. Continua a visitar velhos amigos de mais de uma década de sem-abrigo mas não os pode ter ao lado dele sob o mesmo tecto. 'A maioria deles bebem ou são toxicodependentes', explica. No CANG divide o quarto com um ucraniano e outro sem-abrigo. Todos eles se preocupam bastante com o seu estado de saúde, já debilitado.
Enquanto conta a vida dele desde que se lembra, vai engomando calças de fazenda castanhas, pretas, azuis; camisas azuis, às riscas e, algumas, com pequenas manchas de óleo.
À mesma hora, os outros residentes daquele espaço estão a ver televisão na sala de convívio. Ninguém fala nada. Todos estão absortos no LCD, que transmite ‘A Vida Privada de Salazar’. Apenas há quem desvie o olhar para ler os desportivos do dia, ou alguma revista cor--de-rosa. Antes, cearam sopa e pão com chourição. Como a maioria deles passa o dia – entre as 9h00 e as 18h30 –, necessariamente, na rua, almoçam e jantam na 'sopa dos pobres'.
Ao chegar ao CANG, os 'novatos' são atendidos por outro assistente social, que tenta perceber se será necessário apoio psicológico ou médico. Todos primam pela delicadeza e simpatia no trato. O prédio, dividido por três andares de quartos colectivos, mais um piso térreo, tem uma construção recente. Tudo cheira a novo. E com tantas regras de utilização, nada está fora do sítio. Com o cair da noite, desliga-se a televisão e pousa-se o ferro de engomar. Às 23h00 todos se recolhem para dormir. No último quarto, perto da cama 40, houve tempo ainda para conhecer um guineense que foi evacuado do seu país na sequência de um acidente de viação. Chegou a Portugal para ser operado à bacia e está há quatro meses em convalescença no CANG. Dormiu esta noite num quarto com um imigrante de Leste e com alguém que se foi embora às 7h00, com as mesmas calças pretas, o mesmo casaco e os mesmos óculos, mas já de banho tomado.
Na emergência social não interessa colocar mais barreiras. Importa resolver o problema. É a forma de dar oportunidade para um sem-abrigo se reconciliar com a vida. E funcionou.
REFEIÇÃO CUSTA 3,05 EUROS À SANTA CASA
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) gasta 3,05 euros por refeição na “sopa dos pobres” (Centro de Apoio Social dos Anjos). Em 2008 foram servidos diariamente 300 almoços e 230 jantares – que custam 1616,5 euros por dia. “Apesar de vivermos tempos difíceis do ponto de vista da economia e do emprego, em 2008 apenas foram servidas diariamente mais 24 refeições do que em 2007”, diz fonte oficial da SCML. No ano passado serviram 193 282 refeições. “Quando esse contacto é feito – e o recurso às nossas refeições é muitas vezes o único contacto das pessoas com uma qualquer instituição nacional – inicia-se um laço e um trabalho que depois os nossos técnicos prosseguem.” Dos 1150 utilizadores do refeitório, 84% são homens.
PERFIL DOS SEM-ABRIGO DA CAPITAL
Em Lisboa há 447 camas para os sem-abrigo, distribuídas por seis centros de acolhimento: Beato (271 camas), Xabregas (75) e Graça (26) resultam de parcerias que envolvem a autarquia lisboeta; o da Glória (35 camas) e Anjos (15) são da Santa Casa; e o de São Bento (55 camas) é mantido pela Associação dos Albergues Nocturnos de Lisboa. Segundo uma caracterização feita pela Câmara de Lisboa, foram identificados 1187 sem-abrigo na capital, durante o ano de 2007. Cerca de 83% destes são homens que ainda não atingiram a meia-idade. São sobretudo cidadãos portugueses, embora cerca de 12,9% sejam naturais dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) e 12,1 por cento provenham de países do Leste europeu. O alcoolismo afecta praticamente metade desta população, associado, em 32% dos casos, à toxicodependência e, em 20%, a problemas mentais. A toda esta problemática social, cerca de 57% dos sem-abrigo têm rendimentos insuficientes, 34% estão ligados à prostituição, 30% declarou que não tinha quaisquer rendimentos e, por fim, 17% afirmaram estar desempregados.
REGRAS RÍGIDAS NO ACOLHIMENTO
No (CANG), em Lisboa, há regras, como entrar entre as 18h30 e as 21h00 e sair até às 9h00, nos dias úteis. Ao fim-de-semana podem sair de manhã e à tarde, regressando até às 21h00. Quando chegam recebem um documento com as normas (na foto). São proibidos álcool e drogas. Há também regras de higiene e limpeza.


